Mas é justamente essa forma de abordagem do filme que o torna primoroso. Escrito e dirigido pelo excelente Darren Aronofsky, o longa acompanha um casal (Jenniefer Lawrence e Javier Bardem) que vive em uma casa isolada no campo, em decorrência do trabalho do homem: ser poeta. A vida do casal passa por mudanças a partir da chegada de visitantes inesperados. Esse é o máximo da história que pode ser contado sem que se estrague a profunda experiência cinematográfica que é "Mãe!". Todavia, existem metáforas essenciais para compreender a proposta da obra, as quais deixarei no final do texto. O roteiro talvez seja o ponto alto do filme por conseguir imprimir camadas e sub-textos a um ambiente relativamente limitado, através do uso de diversas figuras de linguagem. A apresentação do contexto em que o filme está inserido é feita de uma forma perturbadora, porém agridoce. O espectador consegue perceber que aquilo não é totalmente normal, mas os pequenos devaneios e artifícios utilizados pelo roteiro, como a apresentação de determinados personagens ou a elaboração de diálogos, permitem criar uma familiaridade com o filme. Apesar da estranheza inerente, "Mãe!" consegue prender do início ao fim, muito facilitado pelo excelente trabalho de montagem, edição e mixagem de som, que conferem ao longa a fluidez e o dinamismo necessário para o desenrolar do enredo. O trabalho de montagem consegue relacionar diferentes momentos ao longo do filme que criam rimas narrativas que, muitas vezes, têm papel fundamental no desenvolvimento da metáfora principal. Por exemplo: em uma cena fecha-se uma porta e na seguinte abre-se outra. É um simboliso simples (encerra-se um núcleo da história, inicia-se outro), porém pertinente.
Darren Aronofsky (responsável por "Noé", "Cisne Negro", "Réquiem para um Sonho", "O Lutador") apresenta como marca a forma psicodélica de se dirigir, através de cortes rápidos que dão agilidade para seus filmes. No entanto, em "Mãe!" o diretor mostra-se versátil, optando por uma proposta oposta ao seu estilo, mas essencial para o cumprimento do roteiro. A direção de Aronofsky é bem contida, optando por planos longos e planos-detalhe que focam no rosto dos personagens. A câmera sempre opta por viajar pelo cenário em um movimento bem retilíneo; é como se o diretor quisesse que o espectador estivesse realmente assistindo aquilo na "vida real", sendo a câmera apenas um meio para isso, nunca algo a ser notado. Mesmo assim, a forma estática da câmera nunca torna o filme teatral e monótono, haja vista que o senso de espacialidade do diretor mostra-se extremadamente apurado. Apesar do filme se ambientar em uma única casa, sem nenhuma tomada externa, a câmera de Aronofsky consegue realizar "travellings" oportunos, corroborando a excelência de ritmo conseguida pelo trabalho do montador. O diretor também tem o mérito de criar um ambiente de extrema confusão, já que o espectador se vê perdido na maior parte do tempo. A falta de entendimento e a progressão dos fatos causa uma sensação angustiante, pois a cena seguinte é totalmente imprevisível. Aronofsky acerta ao realizar um trabalho competente de apresentação de universo, direção de atores e criação de símbolos e imagens que só farão sentido ao final da projeção.
Apesar das inúmeras qualidades técnicas e criativos artifícios de roteiro, "Mãe!" é um daqueles filmes que depende muito da química entre os protagonistas. Felizmente, vemos dois atores em grande forma: Jennifer Lawrence e Javier Bardem. Jennifer Lawrence, que há muito já demonstra sua incrível capacidade dramática, confere à sua personagem um toque de inocência e incredibilidade que são essenciais para a construção da narrativa. Aliás, é como se sua personagem fosse os olhos do espectador na tela, pois ela parece ser a única a perceber os absurdos que acontecem e a única com sensatez nas tomadas de decisões. Por outro lado, Javier Bardem interpreta um papel difícil e desafiador, cujos intuitos e preceitos são sempre escondidos por uma máscara que inspira confiança e segurança. As expressões faciais do ator são tão sutis que ele consegue realizar variações dramáticas enormes, mas sempre mantendo a harmonia que seu personagem pede. A dualidade entre a visceralidade de Lawrence e a compassividade de Bardem reforça a perfeita química entre os atores, visto que é a relação entre os dois que move a história. O elenco de apoio também está satisfatório; todos os atores parecem compreender a ousadia de Aronofsky e embarcar no mundo criado por ele.
As metáforas e interpretações decorrentes do filme são diversas, mas todas têm um peso enorme. É visível a ambição e a ousadia do diretor na idealização de uma obra como essa, já que, simplesmente, existem pessoas que se sentirão extremamente ofendidas. Cabe à cada um fazer sua própria análise, lembrando sempre de que os recursos utilizados no filme são exagerados e propositalmente conturbadores. Muitas vezes a arte precisa chegar fazendo barulho para, na verdade, fazer uma crítica muito mais sutil do que parece. "Mãe!" é um filme inteligente, perturbador, angustiante, quebrador de paradigmas, que se apresenta com um ritmo extremamente fluido, devido à sua montagem competente e ao excelente trabalho de câmera do diretor, além de ser completamente visceral e contar com uma dupla de protagonistas em excelente forma.
SPOILERS:
A metáfora principal:
A principal leitura do filme depreende que Javier Bardem representa Deus e Jennifer Lawrence a Mãe Natureza. Os primeiros visitantes da casa (que seria a própria Terra) seriam Adão e Eva (note que o homem passa mal e apresenta um corte na costela. Além disso, o casal possui dois filhos, porém um irmão mata o outro - Caim e Abel). As pessoas que chegam à casa representam o próprio progresso da humanidade, com a adoração à Deus ficando cada vez mais forte, a ponto de causar guerras, destruição e prisões. Além disso, as pessoas passam a retirar coisas da casa, mesmo com os avisos da Mãe. Isso pode ser relacionado com a própria degradação que a natureza sofre e como os homens insistem em se comportar desse jeito, mesmo depois de tantos avisos. O filho da Mãe Natureza com Deus seria Jesus, que é morto na mão dos adoradores de Deus, que comem sua carne (clara alusão ao processo de eucaristia da Igreja Católica). Por fim, a Mãe Natureza mostra-se saturada com a situação e destrói a casa (desde o início é perceptível a íntima relação entre a mãe e a casa). Depois disso, na cena final, vemos que Deus recomeça o ciclo, agora com uma outra mulher representando a natureza, o que pode representar uma espécie de vida cíclica na Terra.
Críticas: Ao abordar a exploração humana, o filme critica o desmatamento, a idolatria, as guerras, a fome, a miséira, enfim, todas as mazelas sociais que sempre assolaram a humanidade. Além disso, existe uma clara crítica à própria Igreja Católica e até mesmo à figura de Deus, fato que pode desagradar grande parte do público, já que a Mãe Natureza (original) é sacrificada pelos humanos (inquilinos), cuja presença é estimulada por Deus.
Nota:
- João Hippert