domingo, 24 de fevereiro de 2019

Palpites para o Oscar 2019

Um dos dias mais esperados pelos cinéfilos ao redor do mundo chegou: hoje tem Oscar! E como todo amante da sétima arte, também tenho os meus palpites para a premiação. Lembrando que trata-se de uma opinião baseada na temporada de premiações (SAG, DGA, PGA, Critics Choice, Globo de Ouro, Bafta, ...) e no histórico da Academia - e não nas minhas crenças pessoais. Então vamos ao que interessa:

Melhor curta em live-action: Marguerite - "Fauve" é o meu favorito, mas a abordagem doce e sensível de "Marguerite" tende a agradar mais os votantes da Academia.

Melhor curta em documentário: Black Sheep - Embora o emocionante "End Game" e o socialmente relevante "Period. End of Sentence" tenham mais apelo por estarem vinculados à Netflix, seria um absurdo a Academia não reconhecer a grandeza e o impacto desse filme.

Melhor curta animado: Bao - Ainda que "One Small Step" conte uma história linda, será muito difícil tirar o Oscar das mãos do surpreendente - e impactante - filme da Pixar.

Melhor filme estrangeiro: Roma - Inserido em uma categoria recheada de grandes obras, tais como "Guerra Fria" e "Assunto de Família", Roma é uma das maiores realizações cinematográficas dos últimos anos e este talvez seja seu prêmio mais certeiro.

Melhor animação: Homem-Aranha no Aranhaverso - É a melhor animação do ano e ganhou todos os prêmios até agora. Fácil.

Melhor documentário: RBG - A força político-social da trajetória de RBG deve suplantar a técnica de "Free Solo". Uma escolha que tende mais ao conteúdo do que a forma, apesar das duas obras serem excelentes.

Melhores efeitos visuais: Vingadores: Guerra Infinita - Um filme que trata, basicamente, do estudo de um personagem criado por computação gráfica. Os efeitos são incríveis.

Melhor mixagem de som: O Primeiro Homem - Um filme que sabe encaixar os sons harmonicamente para criar uma completa imersão.

Melhor edição de som: O Primeiro Homem - Inventivo na criação dos diversos rupidos relacionados à espaçonave, a edição de som do filme de Chazelle também é um dos pontos altos do filme.

Melhor edição: Bohemian Rhapsody - Um filme que, apesar de tudo, consegue ter um ritmo agradável à sua proposta, conseguindo encaixar os shows com o resto da história.

Melhor fotografia: Roma - Outra categoria de altíssimo nível, mas em "Roma" a fotografia em preto e branco não só provê quadros lindos, mas também auxilia na construção narrativa.

Melhor canção original: Shadow, de Nasce uma Estrela - A categoria mais fácil de todas. "Shallow" está no coração de todos até hoje.

Melhor trilha sonora original: Se a Rua Beale Falasse - Talvez este seja o prêmio da Academia que redima a esnobada que essa obra tão carinhosa recebeu. É uma trilha suave, doce e encantadora.

Melhor design de produção: A Favorita - Tudo técnico do filme de Lanthimos é perfeito, inclusive a sua escolha por ambientação e os diversos cenários que compõem o filme.

Melhor maquiagem/cabelo: Vice - A transformação de Christian Bale em Dick Cheney diz por si só. Trabalho fenomenal.

Melhor figurino: A Favorita - Mais uma vez, "A Favorita" deve levar uma categoria essencialmente visual devido ao seu esmero conceitual.

Melhor roteiro adaptado: Infiltrado na Klan - Provavelmente o único prêmio dado a esse importante longa. Uma forma de reconhecimento ao gênio Spike Lee.

Melhor roteiro original: A Favorita - A Favorita conta com a abordagem mais autoral da temporada, mas não seria surpresa de "Green Book: O Guia" levasse.

Melhor direção: Alfonso Cuarón, por Roma - Em uma categoria recheada de bons nomes, Cuarón deve levar pelo conjunto da obra.

Melhor ator coadjuvante: Mahershala Ali, por Green Book:O Guia - Outra categoria fácil, já que Ali é o dono do longa e ganhou todos os prêmios até aqui.

Melhor atriz coadjuvante: Rachel Weisz, por A Favorita - Categoria extremamente difícil, mas o recente crescimento de "A Favorita" tende a facilitar as coisas para o segundo Oscar da atriz. Porém, não descartaria a presença de Regina King, por "Se a Rua Beale Falasse".

Melhor ator: Rami Malek, por Bohemian Rhapsody - Apesar das controvérsias, Rami Malek deve levar o prêmio pela persona que Freddie Mercury inspira e pelo intenso lobby em torno do ator.

Melhor atriz: Gleen Close, por A Esposa - Dona do filme, esse prêmio não incluirá só "A Esposa", mas toda uma carreira competente. Merecido.

Melhor filme: Roma - É o melhor filme da temporada e seria uma premiação interessante para o futuro do cinema em streaming. "Infiltrado na Klan", "Green Book: O Guia" e "A Favorita" correm por fora.

Confira abaixo críticas de alguns dos filmes indicados no Oscar 2019:

- João Hippert

sábado, 23 de fevereiro de 2019

Crítica de "A Favorita"

Existe determinado tipo de filme que, realmente, não se encaixa em um padrão palatável para todos. Às vezes, um roteiro escrito de uma forma não-convencional e uma direção mais autoral inspiram uma espécie de repulsa por parte do público, que considera o filme "diferentão" ou, talvez, pretensioso demais. "Trama Fantasma", por exemplo, que é o melhor filme da temporada de premiações de 2018, não foi completamente aceito, principalmente devido a suas inovações conceituais e seu jogo psicológico entre os personagens. Coube ao amável - porém pouco inspirado - "A Forma da Água" ser o grande vencedor do Oscar, o que demonstra uma certa aversão aquilo que é original pela indústria. Dito isso, chegamos na grande persona que caracteriza esse estilo de filme: Yorgos Lanthimos. O grego é responsável por obras cheias de criatividade, tais como "O Lagosta" e "O Sacrifício do Cervo Sagrado" - filmes nada óbvios que buscam desenvolver conceitos complexos por meio de um roteiro que tende ao absurdo. Nesse sentido, quando foi anunciada a produção de "A Favorita" houve um estranhamento inicial. Como um diretor desses seria capaz de realizar uma obra de época, baseada em personagens reais e que se passa, basicamente, dentro de uma Corte? O que Lanthimos demonstra, no entanto, é uma completa habilidade em transferir o seu estilo cinematográfico para qualquer tipo de história, o que corrobora a sua original voz artística. E é sempre bom quando artistas como ele são reconhecidos pelas premiações, pois isso estimula filmes que "pensam fora da caixinha" e contribui para a fuga do processo de padronização hollywoodiano. "A Favorita", portanto, conta a história da rainha inglesa Anne (Olivia Colman), em um período de guerra com a França. Ela é aconselhada pela Lady Sarah (Rachel Weisz), que parece ser quem, de fato, toma as decisões. As coisas começam a mudar quando uma serva, Abigail (Emma Stone), entra em cena e estimula uma série de conflitos.

O roteiro é, sem sombra de dúvidas, o ponto alto do filme. Isso porque o mérito de "A Favorita" está totalmente na abordagem diferente que se dá para o enredo, já que as passagens históricas são apenas plano de fundo para um profundo estudo de personagens. Os roteiristas Tony McNamara e Deborah Davis apostam no desenvolvimento conceitual acerca do poder nas relações, dentro de um próprio ambiente de poder. É como se todo o "storytelling" do filme se baseasse na relação entre o trio protagonista, e o eterno embate entre elas para ver quem tem o domínio de determinada situação. Dessa forma, é impossível não lembrarmos da dialética do senhor e do escravo de Hegel: o filósofo defendia uma tese de que todas as relações humanas são baseadas em um jogo de poder entre dominador e dominado, sendo tal jogo definidor dos alicerces da História. Assim, "A Favorita", por meio de uma construção de personagens incrível, traduz tal teoria a ponto de ser um filme que conta, basicamente, os conflitos entre as personagens. É interessante notar que, as três personagens, mesmo que ocupando classes sociais diferentes, assim como cargos de influência distintos, apresentam uma relação de poder bastante única. Por exemplo: a rainha Anne é claramente bastante subordinada aos desejos de Lady Sarah que, por sua vez, sente a chegada iminente de uma ameaça: Abigail. Mesmo assim, tais nuances narrativas nunca permanecem estáticas: somos apresentados sempre a situações que subvertem a posição de cada personagem em relação à outra, e esse é o grande mérito do roteiro em prender a atenção do espectador. "A Favorita" trata, basicamente, das intrigas nos bastidores do poder, em um contexto onde a amoralidade é celebrada. Além disso, é perceptível o revisionismo histórico a respeito da banalização das cortes, já que somos apresentados a jogos, festas, corridas de pato e ornamentos que tendem ao ridículo.

Entretanto, mesmo que o roteiro original seja a base para um bom funcionamento da narrativa, "A Favorita" também é um filme de elenco. Afinal, seriam necessárias três grandes atrizes para interpretar toda a complexidade de cada personagem. Felizmente, aqui temos um dos melhores elencos do ano, com um nível de destaque altíssimo. Olivia Colman, no papel principal, é a que mais impressiona, principalmente, nas cenas em que a personagem reage a determinadas situações. Colman é capaz de transmitir uma espécie de inocência aliada a uma pitada de paranoia, envolta em um passado de perdas e tragédias que expulsam a rainha Anne de qualquer traço convencional. Colman retrata uma rainha quebrada, com graves problemas de autoestima e emocional, mas que nunca deixa de ser menos imponente por causa disso. A rainha Anne só parece recuar diante de Lady Sarah, interpretada por Rachel Weisz. Esta apresenta-se como um contraponto à rainha, mostrando confiança e certeza de suas próprias ações. Weisz consegue construir um tom ameaçador a cada fala da personagem, assim como uma passionalidade em tudo relacionado à rainha e à Inglaterra. Trata-se de uma atuação extremadamente poderosa, e que impacta devido à intensidade demonstrada. Por fim, Emma Stone demonstra sua versatilidade ao interpretar a personagem mais dúbia da história. Se ao início da sessão somos impelidos a torcer por Abigail, seja pelo seu jeito doce, seja pelo seu passado; com o decorrer da metragem não temos mais tanta certeza assim. E a cena em que a personagem diz: "Eu estou do meu lado. Sempre." corrobora muito esse fato, já que Abigail mostra jogar de acordo com o jogo, sendo capaz de ser gentil, mas também de ser má, variando de acordo com a situação. Emma Stone apresenta um domínio muito grande nas transições emocionais às quais a personagem é submetida, e, devido ao seu forte carisma, nunca é capaz de afastar completamente a torcida do público por Abigail.

Toda essa complexidade narrativa e de relações é competentemente orquestrada pelo diretor Yorgos Lanthimos, que parece ter controle sobre tudo que temos em tela. Aqui, Lanthimos utiliza do artifício dos planos abertos que exaltam a ambientação do longa. Além disso auxiliar no trabalho fotográfico, que é lindíssimo, tal decisão serve para enaltecer o ambiente de poder em detrimento à pequenez do ser humano. É como se o mundo fosse grande demais para tamanha mesquinharia e, dessa forma, uma Corte gigantesca reflete justamente essa desigualdade de poder que o filme tanto aborda. Além disso, Lanthimos também faz uso de lente "fish-eye" para prover um senso de profundidade interessante, que auxilia na imersão do espectador na história. Aliás, tecnicamente o filme também merece elogios devido ao seu figurino, maquiagem e direção de arte fantásticos. O contraste entre as intrigas das personagens e o ambiente fabuloso contribuem para o tom cômico que o filme procura. "A Favorita", apesar de abordar temas filosoficamente complexos, também pode ser analisado como uma peça teatral cômica, que se utiliza das situações absurdas e do desdém dos personagens em relação a determinadas construções sociais para conferir humor ao longa. Em aliança a isso, temos uma trilha sonora bastante oportuna e atuante, que dá tom sarcástico às inúmeras situações absurdas apresentadas. "A Favorita", logo, não é um filme para qualquer um, por apostar em conceitos muito diferentes, uma direção inovadora e um roteiro baseado em conflitos entre as personagens. Mesmo assim, trata-se de um complexo estudo filosófico acerca dos bastidores do poder que merece ser visto. Contando com uma limpeza visual estonteante, "A Favorita" se baseia em um roteiro atilado que trata das diferentes facetas acerca da relação dominador-dominado, expresso pelo melhor elenco do ano, sob uma direção inovadora e segura.

Nota: 


- João Hippert

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Crítica de "Assunto de Família"

Uma das grandes maravilhas da sétima arte é a sua possibilidade de nos transportar para ambientes inimagináveis, e não precisa ser um filme de fantasia para atingir tal objetivo. Basta estarmos imersos em uma realidade diferente da nossa - seja no contexto social, histórico ou espacial - que já somos impelidos a exercer um dos sentimentos mais nobres do ser humano: a empatia. O cinema, como arte imersiva que se propõe, tem muita capacidade empática por, através da visão de um diretor, conseguir nos fazer enxergar realidades diferentes de maneiras distintas. É por isso que quando um filme totalmente original sobre um contexto diverso tem o poder de impactar tanto. Nesse sentido, "Assunto de Família" se ampara muito no impacto que produz, tanto sociologicamente quanto (por que não?) existencialmente. Vencedor da Palma de Ouro em Cannes e indicado ao Oscar de filme estrangeiro, o filme acompanha uma família de baixa renda no Japão, que vive de pequenos furtos e trabalhos temporários. Mesmo assim, não há espaço para tristeza - muito pelo contrário - somos apresentados a um ambiente que, apesar de contraditório, mostra-se bastante acolhedor, principalmente depois que a pequena Yuri se junta ao grupo. Porém, não se engane: o filme, em nenhum momento, busca romantizar a pobreza: as dificuldades são evidentes e os furtos, por exemplo, não são isentos de conflito moral. A qualidade do roteiro, contudo, é deixar tudo imersivo e verídico e, mesmo que possamos não concordar com as situações sob um ponto de vista frio, é impossível não se importar com os personagens sob um ponto de vista mais passional.

Aliás, o roteiro de Hirokazu Koreeda tem muito mérito na transmissão dos sentimentos ao público. Mesmo que os moradores da casa não apresentem grau de parentesco em sua maioria, as relações entre eles são construídas de uma forma bastante sutil. Repare que, embora existam 6 integrantes na casa (a avó, o casal adulto, a mulher adulta e as duas crianças), todos têm as suas características definidas, assim como a sua própria jornada. E é interessante notar como a mescla das diversas situações não complicam o filme, mas sim facilitam sua proposta. Por exemplo: por um lado somos apresentados a uma avó cuidadosa que recebe uma indenização pelo fato de morar sozinha, mas, na verdade, abriga 5 pessoas em sua casa. Nesse sentido, a senhora não segue a lei estritamente, mas ao mesmo tempo, tem seus últimos dias de vida ao lado de pessoas que, apesar de tudo, se importam com ela. Por outro lado, temos um casal aparentemente feliz, mas que, devido à correria do cotidiano, não se permite mais o prazer do sexo. Os dois parecem estar em uma busca por sintonia e um retorno à sensualidade, o que o roteiro desenvolve com certa destreza. Ainda assim, temos duas crianças com suas brincadeiras pelas ruas japonesas e uma jovem adulta que trabalha em uma espécie de bordel para obter uma renda maior. Embora o número de personagens pareça excessivo, assim como as suas histórias, o grande mérito do longa é juntar tudo isso de forma a transparecer o real retrato de uma família. Como o próprio nome em português já diz, "Assunto de Família" busca fazer um estudo meticuloso da reunião de pessoas queridas em uma casa, mesmo que não seja por laços sanguíneos. E a habilidade em definir o conceito de família como algo construído através de carinho e amor é gerada, também, pela apresentação de outros núcleos familiares, que, por sua vez, são tóxicos e prejudiciais ao desenvolvimento dos membros.

Nesse sentido, é impossível não interpretar tal história como um reflexo da modernidade líquida, afinal as relações parecem não ter fortaleça, mesmo sendo de sangue. A família a que somos apresentados, no entanto, apesar de seus meios ilícitos (aparentemente todos têm algo a esconder), parece sustentar uma base forte de relacionamento, o que torna tudo tão aconchegante. "Assunto de Família" é um filme doce, repleto de carinho e paixão, ao mesmo tempo que não se exime de realizar críticas sociais a respeito da diferença de classes. Outro grande ponto da metragem no que diz respeito ao conceito de família em si é a construção das diferentes relações possíveis em um ambiente familiar. Com a chegada da pequena Yuri, o espectador percebe a jornada da menininha se tornando irmã do menino Shota e filha de Osamu e Nobuyo, o que se desenvolve de maneira bastante calma, todavia verossímil. Nesse ínterim, a direção do também roteirista Koreeda é competente assertiva em criar tal ambientação agradável, desde o início da metragem. Como a principal proposta do filme é desenvolver a relação dos moradores daquela casa, as tomadas se desenvolvem de maneira muito fechada, e a movimentação se limita, basicamente, à própria casa. Mesmo assim, através de um movimento de câmera bem lento e, muitas vezes estático, Koreeda é capaz de criar esse senso de imersão, fazendo o público se sentir confortável em acompanhar a jornada diária daqueles personagens. Quando um filme consegue fazer com que nos importemos com seus personagens, não importando as consequências, o diretor merece muito mérito por conseguir arquitetar tal realização. E aqui, o que acontece é isso: em "Assunto de Família" nós achamos fofo, nós nos emocionamos, nós sentimos raiva - enfim, nós sentimos. É um filme de puro sentimento que desenvolve seu conceito principal de maneira cativante.

Ademais, é válido ressaltar a parte final do longa, quando o clímax é atingido. Koreeda toma uma decisão muito ousada, pois desconstrói tudo que foi apresentado durante o longa. Mas, ao invés disso invalidar o próprio discurso do filme, ele se engrandece, devido ao forte comentário social que acarreta. E, mais uma vez, o filme se afasta de uma possível romantização da pobreza para, no fim, defender, mais uma vez, a validade das relações familiares pautadas no carinho e na importância que se dá ao outro. "Assunto de Família" encanta mesmo pela versatilidade quanto aos temas, assim como em relação à profundidade como são abordados. Trata-se de uma película que diverte pelas situações cotidianas, emociona pelas chegadas e partidas e, simplesmente, retrata uma realidade completamente diferente da que estamos acostumados, de forma crítica e desconstruída. "Assunto de Família" é um poderoso estudo social que ganha força com o afeto transmitido, por meio de uma família que, mesmo sendo desfuncional, também mostra-se deveras amorosa e completamente aconchegante.

Nota: 


- João Hippert

Crítica de "Guerra Fria"

A temporada de premiações, apesar de suscitar diversas críticas e ser mais política do que artística, também tem seus méritos por popularizar determinado tipo de filme que o público em geral não tem acesso. A categoria de filme estrangeiro no Oscar, por exemplo, normalmente contém as películas mais autorais e diferenciadas do ano, o que é ótimo para valorizar o trabalho de diferentes diretores ao redor do mundo. E quando a Academia tira o chapéu para um filme estrangeiro a ponto de indicá-lo também a outras 2 categorias (fotografia e direção), o filme merece atenção. "Guerra Fria" conta, basicamente, a história de um maestro e compositor polonês chamado Wiktor (Tomasz Kot), durante os anos 1950, nas suas indas e vindas pelo país com uma companhia de música folclórica, onde encontra o amor de sua vida: a extrovertida cantora Zula (Joanna Kulig). A partir daí somos apresentados à relação entre os dois: seus momentos de felicidade juntos, assim como as dificuldades que enfrentam. O roteiro de Pawel Pawlikovski e Janusz Glowacki é de uma destreza enorme por conseguir desenvolver temas profundos em praticamente 80 minutos de metragem. É como se o roteiro se preocupasse basicamente em situar os personagens em determinada época e ambiente, e deixasse o resto por conta dos atores. Em nenhum momento somos apresentados a alguma exposição do roteiro e ele não se preocupa em explicar, de maneira explícita, o porquê das situações. Assim, o texto é capaz de criar uma atmosfera vintage deveras interessante que corrobora o tema que o filme propõe: os amores perdidos.

 Além disso, podemos citar a validade histórica do longa como algo importante, já que conta um lado da história que raramente é transferido para as telonas devido ao predomínio da indústria cultural estadunidense. Aqui, somos apresentados a um ambiente que contém camponeses e proletários na parte comunista do planeta no auge do stalinismo. É interessante a ambientação que o filme propõe, principalmente no que diz respeito aos costumes e, é claro, às músicas. Aliás, a parte lírica do longa é excelente: além de funcionar com a estética do filme, a trilha sonora conversa com os acontecimentos retratados em vídeo, criando um senso de harmonia muito oportuno. Mesmo com esse acerto de abordagem histórica, "Guerra Fria" é um filme que fala, essencialmente, dos encontros e desencontros do amor, das suas chegadas e partidas, dos seus desejos e de seus medos. Partindo para uma abordagem bem mais crua do que melodramática,  "Guerra Fria" desenvolve a relação de Wiktor com Zula de forma tão arrebatadora que é impossível não acreditar naquela história. Como tudo na vida, as pessoas creem naquilo que é feito com sinceridade e a exposição das fraquezas dos protagonistas auxiliam nesse processo de identificação com o casal. E não se engane com o título do longa, afinal "Guerra Fria" pode significar apenas um momento histórico pelo qual os personagens passaram juntos, mas também pela própria relação deles em si. Ora, existe uma áurea em volta de Wiktor e Zula que inspira uma espécie de insegurança, como algo que estivesse prestes a explodir a qualquer momento. Isso demonstra o interessante trabalho do roteiro na construção dessa relação, assim como a química do casal.

Aliás, nesse sentido, a presença dos atores é crucial. Tomasz Kot entrega um homem bruto, reservado, cultíssimo, mas com muitos medos e receios, devido ao seu posicionamento político e a sua insegurança pessoal. Kot é capaz de desenvolver diversas facetas em um personagem que trafega na linha tênue entre o mocinho e o anti-herói, já que muitas das ações são controversas, e o personagem nunca parece mostrar seu verdadeiro lado. Joanna Kulig, por sua vez, apresenta uma das atuações mais encantadoras do ano, por, justamente, prover um carisma fora do comum à sua personagem. Se Wiktor se mostra um homem frágil e inseguro, Zula é o fiel retrato de uma mulher ousada e que sabe o que quer. Dessa forma, sua presença em cena é muito marcante, e extremamente preponderante para o sucesso do longa. A química entre os dois é favorecida, também, pelo excelente trabalho do diretor Pawel Pawlikovski ("Ida"). Aqui, temos o uso de uma câmera bem estática, que aproveita das ações e reações dos próprios atores. Além disso, o diretor em aliança com o diretor de fotografia, é capaz de prover quadros belíssimos, com um tom completamente contemplativo e agridoce. A fotografia em preto e branco serve para situar o filme historicamente - parece que estamos acompanhando um filme dos anos 1950 -, mas, assim como em "Roma", também tem um significado narrativo muito poderoso. Note que, mesmo sem cores, o filme parece ter um brilho próprio à medida que o amor entre Wiktor e Zula se desenvolve, e a escolha de Pawel em deixar o público tomar fôlego para absorver cada momento de contemplação é deveras acertada.

Outro grande acerto da metragem é sua duração. São 80 minutos muito bem montados, que remontam a um trabalho de direção meticuloso e um roteiro bem redondo. "Guerra Fria" é capaz de se fazer entender, assim como emocionar, em um curto espaço de tempo, já que, devido às diferentes facetas cinematográficas, se faz eficiente ao extremo. Trata-se de uma experiência deveras sensorial, já que estimula em demasia a visão. Porém, mesmo que tenha uma técnica apurada, o filme não se limita a isso à proporção que desenvolve sua própria história de amor. Aqui o amor não é perfeito, não é idealizado, não é dilacerador, mas é real. Um amor tão real que transcende tempo, espaço, situação política e que, mesmo com altos e baixos, sempre continua ali. Mesmo que adormecido, a presença do outro é sempre sentida e o filme parece querer demonstrar que um coração que um dia ama, jamais esquece. Assim, "Guerra Fria" é uma obra contemplativa, que desenvolve os encontros e desencontros de um amor real, por meio de uma cinematografia estonteante e uma direção absolutamente segura.

Nota: 

- João Hippert

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Crítica de "Vice"

Se tempos atrás, alguém anunciasse que Adam McKay, responsável por filmes como "O Âncora" e "Tudo por um Furo", seria reconhecido pela Academia do Oscar essa pessoa receberia uma bela desacreditada. Contudo, para a surpresa de todos, Adam McKay, no ano de 2015, realizou "A Grande Aposta": filme que funciona demais, em diversos aspectos diferentes. Mesmo tratando de uma história real - a grande crise imobiliária de 2008 -, o filme aposta em uma abordagem mais divertida e cômica para explicar conceitos complexos e situações absurdas. Impossível esquecer da icônica cena em que a Margot Robbie, na banheira, explica diretamente para o espectador os significados de determinados conceitos de economia. Eis que chegamos em 2018, e Adam McKay surge com um projeto que apresenta o mesmo tom proposto por "A Grande Aposta", mas agora sob um viés político. "Vice" acompanha a trajetória política do estadunidense Dick Cheney (Christian Bale), figura deveras controversa e que ganhou destaque quando tornou-se o Vice-Presidente de George W. Bush. Também  somos apresentados à relação de Dick com sua família, principalmente com a esposa Lynne (Amy Adams). Primeiramente, é válido ressaltar a grande semelhança que esse filme possui com o cinema apresentado em "A Grande Aposta", no sentido de que não é para qualquer um. Trata-se de um humor bem ácido, ágil e absurdo - algo que pode vir a incomodar aqueles que esperam um filme pragmático sobre um político pragmático. Definitivamente não é o que se encontra em "Vice".

O roteiro, de autoria de McKay, tem grandes méritos, principalmente no desenvolvimento do protagonista. Desde o início somos impelidos a gostar de Dick, mas não pela sua índole, o que demonstra um trabalho de articulação narrativa bem interessante do roteiro. Por exemplo: existe uma cena em que um personagem específico exalta a capacidade de convencimento de Dick: é como se tudo que ele fala tivesse uma espécie de áurea de coerência e razoabilidade. E é exatamente esse Dick que é apresentado aqui: um homem que, mesmo com ações extremamente deploráveis, principalmente no que se refere à guerra ao terror, também tinha suas convicções e problemas pessoais. Essa opção por não demonizar totalmente a figura do vice-presidente também serve para ajudar na construção do arco dramático do longa. Uma grande virada narrativa, introduzida pelo desenvolvimento de Dick e sua família, acontece justamente no conflito entre o fato do político ter uma filha homossexual ao mesmo tempo que precisa ser contrário à união homoafetiva devido à sua base eleitoral. Esse pequenos devaneios inseridos na história de Dick trazem uma complexidade muito bem-vinda ao personagem e, não se assuste, se McKay optar por uma pegada similar a de "House of Cards" no final. Não seria absurdo compararmos Dick Cheney com Frank Underwood. Por outro lado, Lynne Cheney também apresenta uma jornada bem palpável: mesmo que acompanhe o marido em sua vida política, Lynne parece sempre tomar as rédeas da situação, mostrando muito segurança em todo o filme. Isso também é facilitado pela excelente atuação de Amy Adams que consegue, com habilidade, trazer diversas facetas à personagem, e seu senso de superioridade convence à medida que o público sempre acha que Lynne tem tudo sob controle, o que também remete à Claire Underwood de "House of Cards".

Aliás, em termos de atuação, "Vice" contempla um cenário muito satisfatório. Além da já citada Amy Adams, o elenco coadjuvante conta com o hilário Steve Carell interpretando um político lunático, que representa o exagero da cobiça de determinada classe política e tal opção reverbera a crítica proposta pelo filme, já que não é muito difícil pensar que podem existir políticos exatamente desse jeito atuando ao redor do mundo. Sam Rocwell interpreta o polêmico ex-presidente dos EUA, George W. Bush, e consegue realizar um trabalho eficiente, ainda que não fuja muito da caricatura expressa pela figura pública de Bush. Mas, sem sombra de dúvidas, o grande destaque fica com Christian Bale, que entrega uma das melhores atuações do ano, demonstrando, mais uma vez, sua versatilidade. E ela não se limita à transformação física: Bale incorpora o sotaque de Cheney, suas pausas para falar, sua respiração pesada, seu olhar ameaçador e confiante. Toda a complexidade que o roteiro oferece é extremamente aproveitada por Bale nessa atuação excelente, que consegue, também, criar química com os demais personagens. Os diálogos são bem escritos à medida que acompanham bem o desenrolar da história. Além disso, a quebra da quarta parede - um recurso humorístico pilar dos filmes de McKay - contribui para a quebra de expectativa gerada no espectador, além de conseguir, de forma simplificada, explicar o complicado mundo da política ao leigo. Mesmo que isso acarrete uma exposição demasiada e dificulte um pouco o ritmo da metragem - principalmente no início do terço final -, é importante pelo didatismo que o filme impõe e a relevância de sua mensagem consegue ser mais acessível. Desse modo, "Vice" pode ser controverso, pois tenta explicar demais, ao mesmo tempo que isso pode ser uma qualidade devido à sua preocupação com a didática do longa.

Nesse sentido, porém, a direção de McKay é assertiva durante praticamente toda a obra, contando também com uma montagem bem executada e transições muito meticulosas. O movimento de câmera é bastante coerente: sempre condiz com o que está sendo apresentado em cena. Talvez o grande problema do filme seja a sua duração elevada, pois como existem muitas informações passadas ao espectador, o terço final é realmente cansativo. Uma direção mais acelerada nessa parte em aliança a uma montagem mais corretiva teria dado mais dinâmica ao longa e impediria o enfado final. Mesmo assim, "Vice" é um grande deleite, por, justamente, apresentar um filme histórico, mas que não precisa ser necessariamente um drama. Ao mesmo tempo que é capaz de relatar fatos importantes para o entendimento da geopolítica mundial atual, o filme diverte pela abordagem leve e pelas gags inseridas, que apresentam um timing cômico perfeito. McKay acerta, também, em trazer atores familiarizados com o drama e com a comédia, o que permite a ele transitar com qualidade entre os diferentes gêneros. Ademais, o filme fala sobre os bastidores do poder de uma forma bastante acessível, e as discussões que ele propõe são extremamente pertinentes por, justamente, nos fazer pensar sobre a nossa democracia e o nosso papel como eleitor. "Vice" é uma comédia muito eficiente sobre os bastidores do poder, contando com um elenco de destaque e um roteiro que apresenta um timing cômico ideal.

Nota: 

- João Hippert

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Crítica de "Minha Fama de Mau"

O mercado das cinebiografias está cada vez mais em alta nos dias atuais. Basta reconhecermos o sucesso do controverso "Bohemian Rapsody", que, no Brasil, foi apelidado de "filme do Queen", indicado ao Oscar em diversas categorias, além de ser um completo sucesso de bilheteria. Já no cinema nacional, podemos dizer que existe uma tendência recente das grandes produções retratarem a vida dos nossos artistas. "Tim Maia" e "Elis" são ótimos exemplos de cinebiografias nacionais de qualidade e genuinamente brasileiras. Era somente uma questão de tempo até que um dos movimentos musicais mais populares no nosso país ganhasse sua representação nas telonas. A Jovem Guarda, sob o comando de Erasmo Carlos, Roberto Carlos e Wanderléa foi um programa televisivo de grande audiência na década de 1960. Cantando músicas no estilo "iêiêiê", sem se importar com as críticas da juventude politizada da época, a Jovem Guarda obteve um alcance estrondoso, em todo o território nacional, levando seus protagonistas a um estrelato que perdura até hoje. Apostando em músicas que falavam de amor e romances, Roberto, Wanderléa e Erasmo foram alvo de duras críticas da cena musical da época, por ser considerada uma música alienante, dado o contexto de Ditadura Militar brasileira. Dito isso, "Minha Fama de Mau", baseado na autobiografia de Erasmo, acompanha a ascensão da Jovem Guarda sob o viés do garoto Erasmo - um tijucano sonhador, de muito carisma em busca da afirmação no cenário do rock brasileiro. Primeiramente, é perceptível que esse filme não vai agradar a todos, principalmente porque a própria Jovem Guarda tem seus críticos ferrenhos. Apostando em uma abordagem condizente com o iêiêiê do trio, "Minha Fama de Mau" retrata um Rio de Janeiro romântico, vintage e oportuno para o surgimento de amizades que impactariam todo o território nacional.

Com roteiro de L.G. Bayão, Lui Farias e Letícia Mey, "Minha Fama de Mau" tem como pilar a sua coragem em permanecer fiel a tudo o que a Jovem Guarda inspira. Criando um personagem extremamente carismático na figura de Erasmo, o roteiro consegue conduzir muito bem as duas horas de filme com uma naturalidade incrível. Alternando momentos de diversão e emoção, a história consegue ter um andamento com uma cadência desejável, tendo um ritmo agradável. Aliás, agradável é o adjetivo que melhor expressa a experiência cinematográfica que é "Minha Fama de Mau": sem se preocupar em desenvolver conflitos de drama profundo, como acontece nos já citados "Tim Maia" e "Elis", o filme aposta em um clima ameno para retratar seus protagonistas. Nesse sentido, o tom que o filme evoca parece comparar, com as devidas proporções, o trio da Jovem Guarda com os Beatles, devido ao estilo das músicas, a histeria das fãs e o sucesso estrondoso. Mesmo assim, conseguimos perceber, de forma nítida, através de gírias e costumes da época, um movimento essencialmente brasileiro, mesmo que possua, até certo ponto, um caráter "acrítico". Tangenciando esse tema por meio de entrevistas de Erasmo, "Minha Fama de Mau" é muito mais nostálgico do que revisionista, o que pode incomodar aqueles que não dissociam movimentos culturais com política. Porém, o trabalho proposto pelo filme é tão leve que diverte, emociona e nos transporta para um tempo passado, conseguindo, com clareza, transmitir as principais fases da carreira de Erasmo, com Roberto e Wanderléa ao fundo. Todo esse didatismo é proporcionado pela opção de um narrador-protagonista, e se não fosse o carisma de Chay Suede, a escolha seria fracassada. Porém, inserindo comentários engraçados e extremamente conectados com o linguajar da época, o narrador cria um vínculo bastante interessante com o público, tornando-se um recurso favorável ao storytelling.

Aliás, Chay Suede impressiona na interpretação de Erasmo Carlos, trazendo um carisma e uma presença de cena condizentes com a proposta do filme. Mesmo que ainda falta alcance dramático ao ator, Chay consegue carregar a metragem com uma facilidade surpreendente e, se o filme funciona como entretenimento, o ator tem muito mérito nesse sentido. Ao mesmo tempo, Gabriel Leone tem a difícil tarefa de dar vida a um dos maiores ídolos da música popular brasileira, que é até chamado de rei. O ator, entretanto, consegue interpretar Roberto de uma forma muito doce e charmosa, fazendo com que o espectador realmente mergulhe na juventude do cantor - e é impossível não sentir simpatia por Roberto no filme. Por último, temos um grande ponto negativo do longa que é a representação de Wanderléa. É difícil culpar a atriz Malu Rodrigues pela falta de carisma conferida à cantora, já que o roteiro não dá profundidade nenhuma à personagem. Aliás, existem até certos conflitos que parecem promissores e são relacionados à Wanderléa que são simplesmente esquecidos. Mas o que mais incomoda é a presença da atriz no palco, pois inspira uma verossimilhança muito baixa - o espectador é capaz de perceber que ela não está realmente cantando, o que prejudica a imersão necessária à história. Aliás, o longa tem uma quantidade excessiva de músicas, o que tem seu lado positivo e negativo. Por um lado, serve como parâmetro temporal para estabelecer os sucessos do trio, mas, por outro, quebra um pouco do ritmo da metragem, principalmente, pela longa duração dos números musiciais. Por exemplo, em certa cena temos um conflito tenso entre dois personagens e na cena seguinte já temos uma sequência musical completa. O público não tem muito tempo para processar os acontecimentos do filme e, talvez esse excesso de músicas tire o encanto das primeiras apresentações que acompanhamos. Desse modo, também se torna uma avaliação subjetiva, já que depende bastante do gosto musical de cada um e sua afinidade ao que foi apresentado pela Jovem Guarda.

A direção de Lui Farias é eficiente na condução do filme como um todo, já que "Minha Fama de Mau" tem seus arcos narrativos muito bem definidos e divididos. O diretor parece ter clareza acerca de onde quer chegar com a história, o que demonstra um domínio narrativo muito grande. Por outro lado, é clara a falta de técnica de Lui, já que existem erros básicos de movimentação de câmera claramente perceptíveis. É como se um corte não encaixasse no seguinte, o que promove um estranhamento em relação à continuidade do longa. Assim, o filme apresenta uma certa negligência com a montagem, que deixa esses pequenos erros passarem, o que diminui a qualidade técnica do filme. Aliás, "Minha Fama de Mau" é um daqueles típicos filmes que se sustentam pela história por trás e não pela realização cinematográfica em si. Mesmo que com roteiro seguro e protagonistas carismáticos, a qualidade de produção é prejudicada pela movimentação de câmera desconexa. Apesar disso, o filme consegue atingir seu objetivo inicial: prover um sentimento de nostalgia a quem vivem essa época ao mesmo tempo que serve de apresentação à geração mais jovem. Por isso, é impossível desmerecer "Minha Fama de Mau", também, pela sua importância cultural, tendo em vista que a Jovem Guarda, mesmo que controversa, impactou toda a nação. Apostando no tom romântico inerente à Jovem Guarda, "Minha Fama de Mau" é uma experiência agradável sobre um dos trios mais influentes da música popular brasileira.

Nota: 

- João Hippert

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Crítica de "Uma Aventura Lego 2"

Em 2014, chegava aos cinemas uma animação bem diferente do padrão do mercado: "Uma Aventura Lego". Em meio a criação de universos fantásticos como os da Dream Works ou das histórias que nos emocionam da Pixar, o filme parecia querer trazer à tona a memória de um brinquedo muito recorrente na vida de milhões de pessoas. Afinal, quem nunca brincou com as peças da Lego quando criança? Seguindo o parâmetro que a empresa já havia estabelecido no mercado dos videogames, "Lego Movie" surgiu como uma aventura despretensiosa, focada na diversão e entretenimento, contando com arcos simples dos protagonistas e muitos crossovers. Nesse sentido, é muito fácil lembrar da presença de um Batman totalmente incomum como coadjuvante e não foi de se assustar a produção de um filme solo do herói: "Lego Batman". Seguindo os mesmos conceitos de seu predecessor, o filme acertava em apostar na diversão escapista e na boa construção de personagens. Eis que chegamos em 2019 com a continuação direta de "Uma Aventura Lego", onde Emmet parte em uma aventura onde precisa provar sua maturidade para salvar seus amigos de uma espécie de apocalipse. Ao mesmo tempo, Lucy busca impedir seus amigos de uma lavagem cerebral promovida por uma princesa deveras duvidosa.

Tendo como referência "Toy Story 3", o roteiro de Christopher Miller e Phil Lord acerta na manutenção de tom do filme anterior. Mesmo que aqui sejamos apresentados a algumas questões mais complexas, o plano de fundo divertido ainda se sobressai. E, pensando no público alvo da película, que é claramente o infantil, "Uma Aventura Lego 2" parece bem seguro da mensagem que quer passar, tanto no conteúdo, quanto na forma. Mesmo que a primeira metade do longa se resuma a uma jornada do herói típica e construa um ambiente de tensão, também é possível perceber uma clara crítica à alienação do mundo pós-moderno, além da própria padronização dos gostos promovida pela ascensão da cultura de massas. Além disso, somos apresentados a um Emmet considerado "fraco" pela sociedade que o rodeia e que, inclusive, é considerado incapaz de ser líder, justamente, por essa sua incapacidade de ser "durão". Emmet, como descobrimos no primeiro filme, é um personagem doce, sensível e esperançoso e, para ele, tudo é realmente incrível. Assim, o filme flerta com a discussão acerca das pessoas sonhadoras de tempos sombrios e como é muito mais fácil se submeter ao caos de um ambiente inóspito. Dessa forma, acompanhamos a jornada de um personagem puro se transformando em um ser amargurado, e o fato disso ser visto de forma benéfica pela sociedade, diz muito sobre a mensagem que o filme quer passar. "Uma Aventura Lego 2" é sobre aceitar a essência do ser, independentemente do ambiente em que estiver inserido, e que mesmo que tudo conspire contra, é necessário sempre ser sincero, principalmente, consigo mesmo. O mais interessante do roteiro, nesse ínterim, é a abordagem que dá à mensagem, por meio de uma reviravolta no início do terceiro ato que engrandece, em muito, a qualidade da metragem.

Aliás, o filme realmente só entrega a sua força no terço final que é, de fato, empolgante, emocionante e inspirador. Contudo, a demora no estabelecimento desse conflito prejudicou o ritmo do longa que, apesar de divertido, torna-se cansativo em determinadas cenas. Pode-se dizer que o filme com 10 a 15 minutos a menos teria uma duração ideal, e o trabalho do montador poderia ser mais ágil para otimizar isso. A direção, de Mike Mitchell ("Shrek Para Sempre"), é assertiva ao saber integrar os diferentes arcos dramáticos da história, assim como em inserir pistas narrativas que serão recompensadas ao final. Apesar de ser prejudicada por essa falta de ritmo inicial, a direção também consegue ser eficiente nas cenas de ação e aproveita-se de um trabalho de animação muito bem realizado, capaz de prover a leveza visual necessária em aliança à identidade visual da Lego. O grande mérito dos animadores do filme é conseguir conciliar as cenas de animação com as do mundo real e fazer com que a movimentação, as construções e tudo relacionado às peças Lego tenham uma coerência com o universo criado. Além disso, vale destacar a presença da música na metragem que, além de importante tematicamente, também auxilia muito na composição das cenas e nos pontos de virada da narrativa.

No quesito referências, as piadas são certeiras e responsáveis por grande parte do humor do filme. O grande leque de opções que a Lego possui contribui para uma liberdade criativa bem grande e o uso de tais referências à Liga da Justiça, à Marvel, ao Gandalf em aliança com a metalinguagem dão a leveza necessária. Porém, o que realmente distancia essa continuação de "Uma Aventura Lego" é sua preocupação com a mensagem final, com caráter bem mais dramático. Mesmo que possa parecer piegas ou forçada em um mundo que não tem mais esperanças, tal mensagem, principalmente em um filme infantil, tem um poder muito grande. Aprendemos com Emmet que não precisamos mudar a nossa essência somente para agradar, nem mesmo às pessoas de que gostamos. Se temos pessoas que gostam da gente atualmente, é justamente por aquilo que nos identifica e nos define, e qualquer mudança forçada seria, com certeza, uma catástrofe. Mas, mesmo assim, descobrimos que a vida de Emmet é uma jornada de autoconhecimento e amadurecimento e, ao final da sessão, conseguimos perceber a sua mudança inconsciente como personagem, capaz de utilizar o que achava uma fraqueza pessoal para tornar sua maior fortaleza. "Uma Aventura Lego 2" nos leva de volta a um mundo aconchegante e divertido, focando em um roteiro composto por uma reviravolta bem criativa e por uma mensagem inspiradora.

Nota: 



- João Hippert