segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Crítica de "Nasce uma Estrela"

Em tempos de ódio e intolerância, o amor sempre aparece como um lembrete. Provavelmente esse é um dos clichês mais repetidos na história da humanidade. Afinal, independentemente do momento histórico em que vivemos, parecemos estar sob uma eterna luta entre o bem e o mal. E quando tudo parece desfalecer, quando as coisas parecem não fazer mais sentido, sempre surge um alívio em forma de amor. Nesse caso, o amor sob a forma de arte. "A arte existe porque a vida não basta". É exatamente isso; a arte existe porque somos frágeis, mesquinhos, contraditórios e insuficientes. A arte nos mostra a beleza escondida por trás das coisas, aquilo pelo que vale a pena lutar e, em alguns momentos, nos dá um propósito. O cinema, como a representação visual mais "pop" da arte, tem um papel sociocultural muito grande. Afinal, a mensagem que um filme passa pode influir diretamente na vida de cada telespectador. E, ao mesmo tempo que é surpreendente, é estarrecedor falar isso: "Nasce uma Estrela" faz renascer a estrela individual que cada um de nós tem. Lady Gaga e Bradley Cooper são responsáveis por um verdadeiro soco no estômago, nessa linda história de amor que nos faz refletir e emocionar. O filme acompanha o início da relação entre Jack (Cooper) e Ally (Gaga). Ele é um cantor de rock famoso que, por coincidências da vida, acaba se encontrando com Ally e eles se apaixonam. Ela inicia uma carreira ao lado dele, até que vai traçando seu próprio caminho com o passar da metragem.

O roteiro, que contém participação de Cooper, pode parecer, para muitos, simplório. A estrutura narrativa sob a qual está baseada a história de amor entre Ally e Jack segue um estereótipo conhecido. Ela é o que falta nele e vice-versa. Mas, ao analisarmos o script de forma mais geral, percebemos que o enfoque de toda a trama está na mensagem do filme. Mesmo que o relacionamento dos dois se baseie em um clichê romântico, ele serve de pano de fundo para discutir assuntos mais sérios. É aqui que retomo a discussão acerca da função social do cinema. Grande parte do marketing do filme e inclusive os comentários informais tratam como "o filme da Lady Gaga". Os mais desavisados podem até chegar na sessão esperando algum tipo de documentário sobre a cantora. Esse tipo de coisa possibilita um grande público ter acesso ao filme, o que se faz extremamente válido. Ao invés de ser apenas sobre uma história de amor perfeita, "Nasce uma Estrela" utiliza-se desse sentimento para incluir sub-textos muito mais densos. Afinal, o filme discute alcoolismo, fama, ciúmes, suicídio. E a forma como o roteiro aborda isso é tão crua que chega a assustar o espectador. A quebra com o clichê romântico é feita de tal forma que o público, ao final da sessão, não sabe mais o que esperar. Se ao início esperamos uma relação tal qual vimos em "La La Land", ao final simplesmente esperamos que não se torne um novo "Mãe". E essa dubiedade e impresivibilidade do roteiro simplesmente engrandecem toda a experiência cinematográfica.

Nesse sentido, é impossível analisar a película sem enaltecer o trabalho musical comandado por Lady Gaga. É aqui que a cantora surpreende ao prover canções originais totalmente diferentes do seu gênero corriqueiro. As músicas aqui presentes, além de comporem o filme enquanto artifício técnico, configuram uma identidade sonora louvável. É impossível escutar a trilha sonora de "Nasce uma Estrela" sem ser remetido imediatamente às situações em que as músicas são apresentadas durante o filme. E, dessa forma, as músicas se confundem com a própria relação de amor entre os protagonistas. Se na vida real nos conectamos a pessoas amadas por meio de canções, aqui não é diferente. Ao escutarmos "Shalow", por exemplo, somos remetidos ao casal que aprendemos a amar. E, sim, o verbo certo é "aprender". Outro ponto alto do filme, já que a identificação com os personagens é construída de forma natural, à medida que ambos vão se conhecendo e se aceitando, apesar de suas limitações. Essa falibilidade humana - retratada na figura de Jack primordialmente - dá o balanço ideal para o filme servir como um retrato verossímil de uma relação amorosa. Tudo isso possibilitado pela excelente química entre os atores. Se por um lado Cooper vive um astro de rock alcóolatra, solitário e misterioso; o que foge bastante da filmografia do autor, Gaga transparece segurança ao assumir um protagonismo inédito, compondo de forma deveras autoral uma personagem multifacetada. As atuações de ambos merecem aplausos, mas é inevitável reconhecer o talento de Gaga na sétima arte. E, por outro lado, também é interessante acompanhar o desenvolvimento de Cooper enquanto músico, já que o ator participa muito bem dos momentos musicais.

Talvez essas sejam algumas das interpretações possíveis que o título nos traz. "A Star is Born": Gaga como atriz principal e Cooper como músico. Mas, ao mesmo tempo, a estrela que nasce é a relação entre eles; o amor que é crível, palpável e que faz nascer uma estrela em nós mesmos. Afinal, "Nasce uma Estrela" transcende os meros aspectos técnicos. O filme é recheado tão imensamente com sentimento cru e emoções genuínas, que fica impossível se ater aos elementos formais. Trata-se de uma experiência visceral, contemplativa, reflexiva e - acima de tudo - emocionante. A estreia de Bradley Cooper na direção nos mostra um possível acerto na carreira do ator. Afinal, a sensibilidade e a maturidade que ele apresenta no andamento do filme são louváveis. Cooper parece muito seguro com a câmera na mão e o fato de também ser ator protagonista do filme não diminui em nada sua qualidade. Pelo contrário: Cooper parece ter o timing necessário para contar a história, de modo que o ritmo é fluido e dinâmico. Além disso, o diretor se destaca ao impedir que a trama se torne piegas, ao saber conduzir com brilho os diferentes atos da metragem. Em um momento de tanto desespero ao redor do mundo, Gaga e Cooper nos relembram que o amor é necessário, e que a arte existe justamente para cumprir esse vazio que existe - e sempre existirá - em nós. "A Star is Born" parece abraçar a falibilidade humana, mas sem julgamentos, resultando em uma emocionante (e necessária) história de amor.

Nota: 

- João Hippert