sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Top 10: Filmes 2019

Mais um ano chega ao fim e, com isso, as tradicionais listas de melhores do ano. Antes de mais nada, é preciso dizer: 2019 foi um excelente ano para o cinema. Nunca achei tão difícil reunir as 10 melhores obras do ano e colocá-las em ordem, o que demonstra a grande qualidade das películas, além de uma diversidade incrível. Filmes comerciais, independentes, nacionais... Todos tiveram seu espaço devido à relevância das obras. Vale lembrar que a lista leva em conta apenas os filmes lançados comercialmente no Brasil no ano de 2019. Assim, existem alguns filmes de 2018 na lista, mas que chegaram aos cinemas brasileiros somente no início desse ano. Para começar, devo fazer algumas menções honrosas - filmes que gostei de assistir em 2019, mas não o suficiente para estarem entre os 10. Durante a temporada do Oscar, tivemos o lançamento do estupendo Guerra Fria - drama polonês que trata com muita sensibilidade os encontros e desencontros do amor. Além disso, A Favorita foi um destaque devido à sua fluidez narrativa e suas inovações técnicas e Vice se mostrou um importante documento histórico. Se a Rua Beale Falasse foi um filme que passou batido por aqui, mas merece destaque devido às suas sutilezas. Outros filmes que merecem ser citados são Vidro e Creed 2. Mesmo não sendo à altura de seus predecessores, são continuações justas e um entretenimento digno. Também gostaria de exaltar algumas obras que merecem destaque pela leveza. Filmes que podem não ser tão geniais, mas que dão uma sensação muito boa ao serem assistidos. São eles Turma da Mônica: Laços, Toy Story 4 e Yesterday. Cada um à sua maneira consegue emocionar, divertir e entreter - dependendo do seu envolvimento emocional com cada história. Além deles, Rocketman representou a carreira de Elton John de forma bastante autoral, conseguindo incluir elementos fantásticos em uma cinebiografia, de modo a enriquecer a obra. No que tange os lançamentos da Netflix, Democracia em Vertigem demonstrou força histórica ao retratar um dos lados da moeda no impeachment de 2016. Breaking Bad: El Camino foi um digno fim de arco para um dos melhores personagens da série tão consagrada. Por fim, Dois Papas e História de Casamento são filmes que colocam de vez a Netflix no patamar dos grandes estúdios de cinema, investindo em histórias intimistas e elencos fabulosos. Não seria estranho observar ambas as obras no Oscar 2020. Por fim, a última menção honrosa fica com o excelente Entre Facas e Segredos - suspense ágil que conta com boas reviravoltas e uma montagem de ponta. Sem mais delongas, eis os dez melhores:


  • Parasita"Parasita" é, de fato, muito bom. Contando com um sub-texto social marcante, o longa sul-coreano é uma experiência altamente imersiva, tensa, reflexiva, configurando-se como um dos melhores filmes do ano.
  • O Irlandês - "O Irlandês" é definitivamente uma combinação de elementos que não teria como dar errado. Um grande estúdio com capacidade de investimento, um grande diretor com liberdade criativa, um roteiro funcional e minucioso e um grande elenco. "O Irlandês" demonstra a força do streaming ao prover uma película intimista, envolvente e, acima de tudo, tecnicamente perfeita.
  • Bacurau Bacurau é "uma canção singela, brasileira", que inspira resistência, tanto na sua história quanto na sua proposta temática, utilizando-se de um roteiro repleto de sub-textos sociopolíticos relevantes para a conjuntura atual e de uma direção que remonta aos clássicos do Cinema Novo, de modo a se configurar como uma das mais relevantes experiências cinematográficas nacionais dos últimos anos.
    • Era Uma Vez em.. Hollywood "Era Uma Vez em... Hollywood" pode não ser o filme mais memorável de Tarantino, mas com certeza é um dos mais reflexivos. O cinema respira.
    • Coringa - Contando com uma levada autoral totalmente bem-vinda, "Coringa" é um profundo estudo de um personagem esférico, com um sub-texto social marcante e que ganha destaque por uma das maiores atuações dos últimos anos. Joaquin Phoenix é assustadoramente fantástico.
    • Assunto de Família"Assunto de Família" é um poderoso estudo social que ganha força com o afeto transmitido, por meio de uma família que, mesmo sendo desfuncional, também mostra-se deveras amorosa e completamente aconchegante.
    • Nós - Contando com referências a "O Iluminado" e "Tubarão", "Nós" é um filme de terror rico em sub-textos, que conta com uma atuação fortíssima de Lupita Nyong'o e fortalece, ainda mais, a imagem de Jordan Peele enquanto grande cineasta.
    • Vingadores: Ultimato -  "Vingadores: Ultimato" é o filme de uma geração, marcado por um roteiro capaz de emocionar e empolgar, por um elenco totalmente empenhado e uma direção que entende onde quer chegar, fazendo isso com maestria.
    • A Vida Invisível - "A Vida Invisível" surge como uma obra que valoriza o amor na sua mais pura forma, utilizando de sutilezas do roteiro para fazer uma análise profunda acerca das raízes do patriarcalismo brasileiro.
    • Homem-Aranha no AranhaversoMesmo que aposte no tom lúdico inerente das histórias em quadrinho, "Homem-Aranha no Aranhaverso" aborda questões existenciais sobre relações familiares e exibe, com técnica e visual arrebatadores, a necessidade da representatividade étnica, por meio de um protagonista totalmente carismático e de uma experiência imersiva.




    - João Hippert

    segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

    Crítica de "O Irlandês"

    Falar de Martin Scorsese é falar, possivelmente, do maior diretor da história dos Estados Unidos. Não só pela imensa lista de filmes memoráveis, mas também pela longevidade de sua carreira. É impressionante a forma com que o diretor consegue adaptar a sua linguagem ao tempo em que está inserido, sem perder a sua mão. Se nos anos 1970/1980 o diretor apostava em uma abordagem mais crua e visceral acerca da criminalidade, como vimos em "Taxi Driver", por exemplo, recentemente temos visto propostas bem diferentes do padrão. Basta pegarmos os 5 filmes feitos por Scorsese na década: "Ilha do Medo", "A Invenção de Hugo Cabret", "O Lobo de Wall Street", "Silêncio" e "O Irlandês". Um thriller psicológico, uma aventura infantil, uma comédia totalmente sem escrúpulos, um drama histórico introspectivo e um filme de máfia. Parece que, com a idade, Scorsese tem experimentados os diferentes gêneros cinematográficos e obtendo bastante êxito com isso. Hoje em dia não podemos falar que Scorsese é um excelente diretor de filmes de máfia. Ele tem se mostrado muito além disso. Contudo, quando o diretor em parceria com a Netflix, monta um elenco com Robert De Niro, Joe Pesci, Harvey Keitel e Al Pacino é impossível não termos expectativas altas no que tange o tema máfia. Voltando ao gênero que o consagrou com filmes como "Os Bons Companheiros" e "Os Infiltrados", "O Irlandês" é um retrato da vida de Frank Sheeran (Robert De Niro) e todas as tramas envolvendo política, confiança, traições e violência no submundo da máfia. O filme é narrado em primeira pessoa por Sheeran e adota uma estrutura de flash-backs, onde são contados diversos momentos-chave da presença do personagem entre os mafiosos italianos. É interessante notar como os arcos da narrativa são muito bem definidos e esquematizados. Tendo em vista a duração demasiada longa (são 3 horas e meia de filme), é importante contar com uma montagem ágil e clara, que defina com precisão os diferentes arcos da narrativa. E tudo isso é feito com maestria, de modo que o peso das horas não recaia em momento algum sobre o espectador.

    O roteiro de Steven Zaillian ("Gangues de Nova York", "A Lista de Schindler") é muito hábil em desenvolver, de maneira íntima e introspectiva, o seu protagonista. Através, inicialmente, de uma narração feita em primeira pessoa por um senhor já no fim da vida, o público se vê compadecido com a situação de Frank. É como se estivéssemos sentados na frente de um avô que venha contar uma história de sua juventude. Isso faz com que, desde o princípio, estejamos impelidos a nos envolver emocionalmente com a narrativa, tornando o nosso juízo de valor um pouco mais flexibilizado. Não é que as atitudes de Frank sejam menos condenáveis, porém a forma como fomos apresentados ao personagem nos faz ter um mínimo de empatia com ele. Além disso, um dos grandes pontos altos do filme é a criação de diálogos rápidos e inteligentes entre os personagens. Como "O Irlandês" se preza por retratar os bastidores do poder, conseguimos perceber as minúcias e os detalhes inseridos, paulatinamente, nos diálogos. Repare como ouvimos em um primeiro momento: "Quando os mafiosos dizem que estão um pouco preocupados, isso significa que eles estão muito preocupados". Posteriormente, no ato final da metragem, esse diálogo é relembrado de maneira sutil. Porém, o espectador envolvido com a história já entende o seu significado, justamente por tal rima narrativa. Essas pequenas inserções e detalhes acrescidos dentro do longa engrandecem a experiência à medida que dão, para o espectador atento, pequenas recompensas até o final da jornada. Outro ponto alto é a interessante discussão histórica e política que o filme traz à tona. Ora, poder e política sempre andaram juntos e seria lógico pensar que a máfia teve muito papel em diversos momentos da história política estadunidense. Nesse ínterim, o longa não mede esforços para abordar esse verdadeiro jogo de xadrez, de maneira extremamente didática e que se apresenta como um fiel retrato histórico. Por outro lado, fica evidente que essa habilidade do roteiro em criar situações pertinentes e diálogos marcantes advém do excelente elenco que Scorsese tem nas mãos. Talvez seja até redundante falar isso, mas seria praticamente impossível a reunião de De Niro, Pacino e Pesci não se configurar como o melhor elenco do ano.

    Robert De Niro é o grande centro do filme, conseguindo prover uma atuação bastante contida, que realça o grande peso que o personagem carrega internamente. É como se ele sempre estivesse rodeado pelo caos e tendo que manter a calma. Por isso, demonstra-se um homem frio, metódico, mas que, através dos olhares dóceis para a família e das hesitações em momentos importantes da trama, acabam por conquistar. Al Pacino, por sua vez, cria um Jimmy Hoffa passional e envolvente, em uma clara homenagem de Scorsese à figura. Através de discursos apaixonados e de uma posição extremamente convicta, Al Pacino demonstra-se versátil ao exibir um homem que acredita nos seus ideais e não teme o que isso pode acarretar na sua vida. Por fim, fechando o trio protagonista, temos um Joe Pesci bem mais moderado do que aquele de "Os Bons Companheiros", mas que demonstra um ar de liderança e superioridade através dos seus movimentos sóbrios e pensados. É como se o seu personagem Russel Bufalino sempre tivesse tudo nas mãos, remetendo, de certo modo, ao grande Vito Corleone, de "O Poderoso Chefão". Além deles, o filme conta com participações pontuais de Harvey Keitel e Bobby Cannavale que desempenham bem seus papéis coadjuvantes. Contudo, o que faz realmente "O Irlandês" funcionar é o grande arquiteto por trás disso tudo, capaz de conectar os diferentes elementos cinematográficos em uma obra tecnicamente perfeita. Scorsese, aqui, demonstra, mais uma vez, uma incrível sobriedade com a câmera na mão. Através de planos-sequência e planos longos, o diretor é capaz de criar ambientações incríveis. Todas as escolhas de câmera de Scorsese fazem sentido, o que potencializa ainda mais a narrativa do filme. Explico: não é suficiente que o roteiro estabeleça um diálogo tenso. Também é importante que o diretor saiba focar nas expressões faciais de maneira certa, transitar entre os personagens no tempo correto, além de exibir os detalhes para o espectador no momento devido. A junção dessas coisas é capaz de prover uma experiência muito mais satisfatória. Além disso, Scorsese acerta na escolha das músicas que permeiam a metragem. Sempre estão presentes músicas que remetem ao tempo da narrativa, dando ao longa uma espécie de nostalgia e glamour muito bem vindos. Aqui, diferentemente de seus demais trabalhos relacionados ao tema de criminalidade, Scorsese não aposta numa abordagem da violência crua. A escolha é por um desenvolvimento íntimo dos personagens e de seus dilemas morais, sendo a violência um plano de fundo desse mundo caótico. O foco são as histórias dos protagonistas, e não seus assassinatos. Dessa forma, o filme parece ser uma grande homenagem aos filmes de máfia - tão populares no passado - e (por que não?) uma própria autorreferência à filmografia do diretor.

    Por fim, é interessante analisar o contexto da obra. Trata-se de um filme de 3 horas e meia, que conta com uma produção milionária, atores renomados, e que vai direto para o "streaming" da Netflix. Já ficamos espantados com o que a Netflix foi capaz de fazer com "Roma", o melhor filme de 2018. Mas aqui, porém, o nível é outro. Estamos falando do diretor americano mais consagrado da atualidade retornando ao seu gênero mais familiar. "O Irlandês" representa, de vez, uma incrível capacidade do serviço de "streaming" em apostar em produções originais que atendam aos diversos tipos de público. E, com certeza, a computação gráfica realizada no rejuvenescimento dos personagens foi algo impactante. É claro que o nível da computação não chegou no patamar da completa perfeição, mas, depois de um estranhamento inicial, o espectador consegue tranquilamente imergir naquela história. E pensando que tudo isso acontece em um filme feito somente para o "streaming", percebemos que a era do cinema está, de fato, em transformação. Tendo em vista que as salas de cinema estão cada vez mais preenchidas por "blockbusters" que são, na maior parte das vezes, previsíveis, o cinema em "sreaming" surge como uma possibilidade de exibir filmes como esse para um público mais variado. "O Irlandês" é definitivamente uma combinação de elementos que não teria como dar errado. Um grande estúdio com capacidade de investimento, um grande diretor com liberdade criativa, um roteiro funcional e minucioso e um grande elenco. "O Irlandês" demonstra a força dos serviços em "streaming" ao prover uma película intimista, envolvente e, acima de tudo, tecnicamente perfeita.

    Nota: 

    - João Hippert


    domingo, 22 de dezembro de 2019

    Crítica de "Parasita"

    É interessante notar, sob uma perspectiva um tanto quanto sociológica, que, em determinados momentos da história da humanidade, as diferentes obras de arte convergem na discussão de um mesmo tema. 2019 parece que foi, no cinema, o ano em que se tratou da desigualdade, em seus diversos âmbitos possíveis. Aquela velha máxima de que quanto maior o abismo social existente, maior é a incidência de violência. Uma realidade presente em todo o mundo, desde o nosso tão familiar contexto de subdesenvolvimento até aqueles países ditos desenvolvidos. A percepção interessante de ser ter em relação aos melhores filmes do ano giram em torno disso. No Brasil, por exemplo, fomos presenteados com a obra "Bacurau". Polêmico, violento, metafórico: o filme apresenta diversas camadas interessantes, mas a que parece ser mais evidente é a do grande contexto de desigualdade. Desigualdade esta que chega a criar na mente da classe dominante um sentimento de que o outro é inferior, de alguma forma diferente. Em "Bacurau" vemos isso na maneira nítida que os personagens estadunidenses se dirigem ao interior de Pernambuco para realizar seus desejos mais sórdidos. Enquanto a população de Bacurau busca apenas manter sua vida pacata, o desejo dos americanos é de dominar e tratar aquela população de maneira completamente desumanizada. A desigualdade aqui seria justamente entre os países detentores do capital e aqueles que acabam servindo como fantoche para as grandes potências econômicas. Outro filme marcante no ano é "Coringa". O longa de Todd Phillips aborda a questão no tratamento que a sociedade dá a um doente mental. A desigualdade aqui reitera a não-aceitação ao diferente e demonstra o que a falta de oportunidades pode fazer.

     A comparação temática entre os dois filmes citados (nota-se que um é brasileiro e outro é hollywoodiano) nos faz chegar a "Parasita". Vencedor da Palma de Ouro em Cannes, o filme sul-coreano aborda o cotidiano da família Kim, que mora no subúrbio da cidade, sem uma renda fixa. Isso muda quando o filho Ki-woo consegue o emprego de professor particular na casa de uma família rica - a família Park - e busca inserir os seus próprios entes naquele contexto. O grande mérito do roteiro de Bong Joon Ho e Jin Won Han é trabalhar de maneira inteligente com o elemento surpresa. O filme é repleto de reviravoltas surpreendentes que alteram completamente o rumo da história. Mesmo assim, tais "twists" apresentam razão de ser; eles engrandecem a riqueza da narrativa. Isso se dá também pela preocupação do roteiro em humanizar os personagens, dando camadas interessantes a eles. Inicialmente, somos impelidos a gostar da família Kim pela simplicidade com que levam a vida. Não chega a ser uma "glamourização" da pobreza, mas o carisma com que a família é apresentada é fundamental para que torçamos para o seu sucesso. Repare que, inicialmente, o filho tem suas dúvidas quanto a dar a aula particular por não estar na faculdade. A solução encontrada é a de falsificar o documento. O interessante de notar, no entanto, é o discurso do rapaz ao sair de casa: "Isso aqui é temporário. No ano que vem estarei cursando uma faculdade de verdade". Essa pequena flexibilização moral abre caminho para os diversos acontecimentos que virão na história, mas é interessante notar como o filme aborda toda essa questão social. Assim como "Coringa" não ameniza a crítica aos comportamentos doentios do seu protagonista, "Parasita" também não o faz. Mas, ao mesmo tempo, ele apresenta, de maneira clara, que o jogo não é justo e, através desses pequenos dilemas morais, coloca o espectador para pensar: "Será que eu não agiria da mesma forma sob essas circunstâncias?".

     Outro grande mérito do "script" é retratar a família Park da maneira mais dócil possível, fugindo de uma possível construção maniqueísta. Ora, o filme trata justamente da dicotomia entre uma família pobre e que busca emprego formal para melhorar suas condições e uma família rica, que já tem tudo nas mãos. Entretanto, essa família rica é tratada de forma muito gentil: todos parecem tranquilos, pessoas que tratam o outro de maneira digna. Assim, a crítica que "Parasita" faz é muito mais contundente, já que não fica limitada a um contexto em si. A família Park é produto de um contexto desigual que cria tais situações, mas não tem culpa por isso. Essa inversão da lógica maniqueísta é extremamente positiva para a trama e acrescenta sub-textos deveras interessantes. Ademais, a direção de Bong Joon Ho ("O Hospedeiro", "Expresso do Amanhã") também é um ponto alto do filme. Ele é capaz de criar situações através do movimento de câmera que demonstram uma técnica muito refinada. Apesar de todo esse contexto social em que "Parasita" está inserido, ainda estamos falando de um filme que, na maior parte do tempo, flerta com o suspense. Desse modo, as diversas escolhas narrativas feitas ao longo da metragem necessita de uma direção bastante segura a fim de que as emoções tiradas do espectador sejam certeiras. E isso é feito com maestria, já que "Parasita" consegue ser tenso na maior parte do tempo, além de prender a atenção durante toda a projeção. Além disso, o diretor conta com a ajuda de uma mixagem de som e uma montagem que engradecem a obra, deixando a história mais fluida. "Parasita" é um filme enérgico quando precisa, mas também não se exime de ter a calma necessária para apresentar os personagens. Isso tudo é feito por meio de diálogos muito bem escritos que, em nenhum momento, pesam para a exposição gratuita. O espectador consegue identificar as relações em tela através das pequenas falas cotidianas de cada um. Isso é um mérito muito grande, afinal trata o público de maneira inteligente e deixa tudo mais palpável.

    Por fim, chegamos a uma discussão a respeito do título. No final das contas, quem é o parasita? Seriam os membros da família Kim por tentarem enganar os Park? Ou o título trata da intensa desigualdade que faz com que as relações humanas sejam um verdadeiro contraste entre hospedeiro e parasita? Aqui, é interessante notar que não existe apenas um resposta correta. "Parasita" é um filme que faz pensar justamente por deixar muitas reflexões no ar. E estas são acompanhadas por um roteiro envolvente, uma direção segura e um elenco afiadíssimo. Não é por um acaso que o filme está cotado para as grandes premiações da temporada: "Parasita" é, de fato, muito bom. Contando com um sub-texto social marcante, o longa sul-coreano é uma experiência altamente imersiva, tensa, reflexiva, configurando-se como um dos melhores filmes do ano.

    Nota: 

    - João Hippert

    quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

    Crítica de "A Vida Invisível"

    Uma constatação óbvia para qualquer cinéfilo e que gosta de discorrer acerca da sétima arte é a de que filmes bons aquecem o coração. A experiência de assistir um filme, por si só, já é um deleite, um refúgio. É o momento de se desconectar da realidade e viver uma história nova, diferente. Nem sempre, contudo, essas experiências são completamente satisfatórias. Mas quando são... Talvez seja o ápice para os amantes do cinema: sair da sala e ter a certeza, naquele exato momento, de que acabara de assistir algo especial. Assim, ver um filme genuinamente bom é uma experiência marcante, uma satisfação quase que instantânea. Dito isso, eu gostaria de acrescentar que, quando isso acontece por um filme nacional, a sensação é ainda mais poderosa. Vivemos em um país que, pouco a pouco, vai acabando com as oportunidades culturais, principalmente para as camadas mais pobres. No quesito cinema, isso é claro: o paradigma é de extinção das salas de cinema de rua, e uma maior inserção nos shoppings, onde o ingresso é mais caro e o público mais elitizado. Ao mesmo tempo, tais salas são dominadas pelas grandes produções hollywoodianas que acabam por, praticamente, monopolizar as sessões. Aqui é válido ressaltar que a discussão não é concernente à qualidade dessas obras ("Vingadores: Ultimato" é um dos meus filmes preferidos do ano, por exemplo), mas sim ao seu amplo domínio. É cada vez mais difícil ter acesso aos filmes feitos no nosso próprio país, ainda mais levando em conta a efervescência política que rodeia as nossas produções. Quando "Bacurau" se apresentou nesse ano, o mundo dos cinéfilos parou. Arrebatador, crítico, reflexivo: todos os ingredientes que o público brasileiro necessitava diante desse contexto. Depois desse choque, "A Vida Invisível" chega para emocionar, acalentar e nos transportar para uma história simples, mas que diz muito sobre o Brasil.

    A sinopse resumida da obra é a de que se trata de uma história de duas irmãs, Eurídice e Guida, que moram no Rio de Janeiro ao final dos anos 1950. Por consequências de suas escolhas, as irmãs são separadas e buscam, de alguma forma, retomar o contato. O roteiro de Murilo Hauser é um daqueles que busca, através das nuances narrativas, explorar os temas relevantes para a história. Assim, a narrativa principal assume o papel de plano de fundo para uma verdadeira imersão na vida carioca do final dos anos 50. Como a história acompanha duas personagens femininas, o machismo enraizado na sociedade brasileira é perceptível desde o princípio. O filme brilha em abordar esse tipo de comportamento reiterado de forma a deixar o público incomodado. O brilhantismo está, justamente, na falta de radicalismo. Explico: o roteirista optou por não "demonizar" a figura de nenhum personagem em específico. Por exemplo: o personagem de Gregório Duvivier se mostra como um verdadeiro retrato de seu tempo. Ele tem uma concepção patriarcal da família, mas em nenhum tempo se mostra exagerado ou agressivo quanto a isso. Um filme que não fosse tão perspicaz talvez utilizasse do seu personagem para ser uma espécie de "vilão", o que poderia, até mesmo, diluir a crítica social proposta pelo filme. Apesar disso, os comportamentos pelos diferentes personagens ao longo da metragem demonstram como tal tipo de visão a respeito do papel da mulher na sociedade é algo estrutural. E, mesmo que o filme trate de tempos remotos, fica visível a permanência de certas atitudes que já deveriam ser erradicadas há muito tempo, mas que ainda persistem na sociedade brasileira. Dessa forma, "A Vida Invisível" se torna importante, também, do ponto de vista histórico para demonstrar, de maneira muito verdadeira, os hábitos e comportamentos machistas por parte de toda a sociedade, como forma de tirar um pouco do "glamour" que os livros de história costumam dar a esse período.

    A direção de Karim Aïnouz também segue nessa linha ao tornar a experiência mais impactante para o espectador. O ritmo do filme é muito bem orquestrado: isso também se dá pela ótima trilha sonora que permeia a maioria dos acontecimentos da história e dão uma certa suavidade ao enredo. Mas talvez o grande mérito de Karim é conseguir potencializar os sentimentos do espectador, ao longo de toda a metragem. Como já dito, o tratamento desigual é algo que incomoda durante toda a projeção. Contudo, as relações entre as personagens possuem uma força tão grande que acabam se tornando o grande cerne do filme. O amor entre as irmãs, a admiração, a dificuldade de ser quem você é em um ambiente discriminatório: tudo isso amplifica o sentimento de empatia no público e o consequente apego com a narrativa. Do início ao fim somos impelidos a torcer pelo sucesso de Eurídice e Guida, mesmo sabendo que as chances não são muito favoráveis. Isso se dá pela sinceridade pelo qual o amor entre elas é transmitido. Acaba que esse sentimento fraternal tão único talvez seja um dos poucos elos que nos identificam com tantas histórias diferentes ao longo da vida. E o mérito do diretor em passar isso de maneira honesta, delicada, mas também brutal torna "A Vida Invisível" uma das obras mais emocionantes do ano. Além disso, o tema "família" também é muito debatido. Começamos o longa na casa de um casal de portugueses, extremamente tradicionais, e suas duas filhas. Somente ali já conseguimos identificar o padrão de família tradicional brasileira: arraigado a valores morais e religiosos que talvez perpassam a felicidade dos próprios indivíduos da família. Essa crítica, de certo modo sutil, vem à tona quando entendemos a jornada de Guida, principalmente, na construção de uma nova família. Família esta que não tem nenhuma das características tradicionais, mas que é pautada no amor e no cuidado com o outro. Talvez uma das grandes mensagens do filme seja justamente essa: podemos encontrar família nos lugares mais improváveis. A poesia desse tipo de afirmativa impressiona.

    Por fim, é impossível não sentir o impacto que o título do longa traz consigo. A invisibilidade está justamente na luta das duas irmãs para alcançarem seus sonhos. Desde os anseios mais básicos até os sonhos mais distantes, como o de ser um grande pianista, por exemplo; tudo parece ter um peso diferente para elas. É como se elas tivessem que correr atrás não só dos seus objetivos, mas pela sua própria voz e visibilidade. Essa força narrativa é o grande charme por trás de "A Vida Invisível". E é claro que todo esse mérito também perpassa pelo excelente trabalho da dupla de protagonistas: Julia Stockler e Carol Duarte. Elas são hábeis em transmitir as emoções de maneira genuína, sendo capazes, inclusive, de delimitar de maneira perfeita o tempo em que estão inseridas através de gestos e expressões da época. Mesmo que as atrizes não tenham uma carreira consolidada até aqui, a confiança com que elas carregam a metragem é digna de muito reconhecimento. Por fim, quanto ao elenco, é impossível não citar a participação de Fernanda Montenegro. É impressionante a quantidade de emoção que ela é capaz de transmitir apenas com o olhar. A cena em que ela lê uma carta é uma das cenas mais impactantes que vi no ano. Sua presença vem para coroar um excelente trabalho do elenco. Aliás, é muito bom perceber que os diferentes âmbitos cinematográficos são tratados com muito esmero, o que eleva ainda mais a qualidade da  obra. Não é à toa que "A Vida Invisível" pode ser o representante do Brasil no Oscar de filme estrangeiro e não seria surpresa se fosse indicado. Trata-se de uma obra que trata da discriminação - um tema universal e que vem se mostrado cada vez mais atual. "A Vida Invisível" surge como uma obra que valoriza o amor na sua mais pura forma, utilizando de sutilezas do roteiro para fazer uma análise profunda acerca das raízes do patriarcalismo brasileiro.

    Nota: 

    - João Hippert

    sábado, 5 de outubro de 2019

    Crítica de "Coringa"

    Poucos filmes conseguem promover o impacto que "Coringa" causou desde as suas primeiras exibições em festivais. Todo o material promocional do filme, os trailers, os cartazes, as entrevistas do elenco davam indícios de que a obra seria realmente diferente do padrão comercial em que estamos inseridos. Atualmente, aliás, o domínio dos grandes "blockbusters" de super-herói tem gerado discussão entre importantes cineastas. A polêmica mais recente, por exemplo, advém do gênio Martin Scorsese, que afirmou não ser muito adepto a esse tipo de filme. Dito isso, é válido ressaltar que, independentemente do estúdio, cada filme que contenha super-heróis apresenta propostas diferentes, que podem ser valorizadas ou não, a depender do gosto do público. Parece evidente que a preocupação da Marvel durante todos esses anos foi montar um universo coeso e divertido, transferindo para as telonas a fórmula que a consagrou nas histórias em quadrinho. Ao mesmo tempo, percebemos o surgimento de obras que buscam se desgarrar de qualquer relação com franquias, apostando em histórias originais que pretendem, primordialmente, analisar profundamente esses personagens tão complexos. Claramente estou falando da icônica trilogia do Cavaleiro das Trevas, mas também poderia incluir, sem nenhum remorso, o excelente "Logan". Chegamos então em 2019: um ano recheado de polarizações em todas as searas da vida, a nível mundial. O ano em que a Marvel conseguiu a façanha de terminar o arco que marcou uma geração inteira e, ainda por cima, quebrar o recorde mundial de bilheteria. "Coringa" chega, nesse contexto, como uma grata contraposição, sob o aspecto de um filme angustiante e de ritmo moderado, cuja preocupação visível é incitar a reflexão, para além da bilheteria.

    Infelizmente, além da popularidade advinda dos fãs de história em quadrinhos, "Coringa" tem ganhado as capas de veículos de informação por um motivo muito mais sério. Assim como "Batman: O Cavaleiro das Trevas" fez em 2008, o filme atual foi vítima de ataques a cinemas por pessoas que se identificam com o personagem-título. Essa situação, por si só, já demonstra o quanto esse filme pode ser perigoso se analisado de maneira superficial. E ainda mais: como aqui não temos um contraponto ao vilão, a narrativa foca no viés do Palhaço. Assim, somos submetidos, desde o início, à realidade de Arthur, seus sofrimentos e sua gradativa transformação no Coringa em si. Ao mesmo tempo que isso é extremamente positivo por prender o espectador na história, isso pode ter um efeito negativo se mal interpretado à medida que pode parecer, de alguma forma, uma forma de justificar as ações violentas do vilão. Nesse sentido, é válido trazer a discussão à respeito dos filmes (e obras em geral) que possuem anti-heróis/vilões como protagonistas. Ainda que contenham roteiros bem elaborados, algumas obras são constantemente mal interpretadas. Dois exemplos me parecem claros: existem pessoas que consideram Walter White ("Breaking Bad") e Capitão Nascimento ("Tropa de Elite") heróis de suas histórias, quando, na verdade, são o oposto. Assim, ainda que o Coringa seja mais escancarado nesse viés, faz-se mister reconhecer que o filme é um profundo estudo psicológico de um doente mental, totalmente excluído por uma sociedade elitista, e os meios que ele encontra para tentar se libertar disso. Desse modo, é válido entender que o filme não defende, em nenhum momento, as atitudes do Coringa; ele apenas mostra como uma desigualdade abissal pode gerar violência, através de uma história que foca, unica e exclusivamente, em um homem cujas atitudes são indefensáveis.

    Assim, a caracterização da cidade de Gothan também é impecável. O diretor Todd Phillips aposta em um ambiente quase que atemporal, com requintes de distopia. É interessante notar como a falência social da cidade, assim como a total precarização dos serviços públicos são inseridos na película de maneira natural, seja através de noticiários, seja através da conversa entre personagens. O filme se mostra muito mais preocupado em estabelecer, de maneira concreta, um ambiente inóspito do que apenas sugerir isso. Dessa forma, a virada principal da trama torna-se muito mais crível e carrega um peso maior. Além disso, Phillips é hábil em aliar a trilha sonora com o peso que a obra acarreta. "Coringa" é um filme que eu não pretendo ver de novo tão cedo - e isso não é uma coisa ruim. Desde o início, o espectador é imerso em uma atmosfera pesada, que apenas se agrava com o decorrer da metragem. E como não conseguimos torcer de fato pelo personagem, os momentos que antecipam a suposta catarse são mais tensos ainda. Logo, o filme se apresenta de forma agoniante, que incomoda e cumpre, dessa forma, um dos grandes papéis da arte. O diretor acerta ao saber dosar o ritmo da metragem a fim de que esse sentimento não se perca ao longo do filme. Não se pode dizer que a tarefa é concluída com perfeição, haja vista que o final do primeiro ato é levemente arrastado, porém isso não interfere, de maneira alguma, no resultado final. Ademais, é impossível falar sobre "Coringa" sem citar as claras referências ao cinema do já citado Scorsese. Robert De Niro, inclusive, tem um papel que remete imediatamente ao bom "O Rei da Comédia". Mas a grande referência parece ser a "Taxi Driver", visto que a temática presente em ambas as obras é próxima e as escolhas dos diretores idem.

    Por fim, devo elogiar o incrível trabalho dos roteiristas Todd Phillips e Scott Silver no estudo de um personagem completamente esférico. Ainda que o Palhaço seja um arquétipo bem definido e que já tenha sido interpretado no cinema diversas vezes, aqui temos uma abordagem completamente diferente. O roteiro busca retratar o Coringa sob a ótica de Arthur. Apesar do título fazer referência ao vilão, a grande preocupação da trama é em desenvolver as multi-facetas que permeiam o ser-humano Arthur. O filme é muito mais sobre a jornada de transformação de um homem com distúrbios mentais em um assassino do que o mero retrato de um assassino. Dessa forma, aliado ao forte contexto social inserido na obra, o público vai entendendo, aos poucos, as motivações de Arthur, mesmo que não concorde com as ações. Nesse ínterim, a construção de tal complexidade promove um exercício sincero de empatia, já que, mesmo havendo um julgamento à primeira vista, o público se coloca na situação de Arthur e consegue enxergar o que o leva a cometer tais atos violentos, ainda que não concorde com elas. Aliás, a violência em "Coringa" é nua e crua: totalmente verossímil, capaz de enojar, assustar e tornar cada vez mais imprevisível a trama. Tudo isso corrobora a proposta trazida  pelo diretor: um filme que preza pela reflexão através da ótica de um psicopata. Entretanto, isso só se fez possível devido ao grande mérito do filme: a atuação de Joaquin  Phoenix. Se ele já era considerado um dos melhores de sua geração pelos trabalhos realizados em "Ela", "Johnny & June" e "O Mestre", aqui Phoenix realiza a maior proeza de sua carreira. Embora o personagem seja de difícil interpretação, pela consagrada atuação do falecido Heath Ledger em "Dark Knight", o ator provê uma performance estonteante. Não seria exagero dizer que trata-se de uma das atuações mais impressionantes que já vi na tela do cinema. Os detalhes, os maneirismos, a clara confusão mental, a mudança rápida de feições, a risada descontrolada: tudo é apresentado de maneira tão sofrível por Phoenix que fica impossível não acreditar na existência do Joker. Trata-se de uma atuação que demanda um esforço mental muito grande, um alcance dramático estrondoso, além de uma dedicação física impecável. É por essas e outras que, além de ser um filme de personagem, "Coringa" também é um filme de ator. Portanto, contando com uma levada autoral totalmente bem-vinda, "Coringa" é um profundo estudo de um personagem esférico, com um sub-texto social marcante e que ganha destaque por uma das maiores atuações dos últimos anos. Joaquin Phoenix é assustadoramente fantástico.

    Nota: 

    - João Hippert

    sábado, 24 de agosto de 2019

    Crítica de "Bacurau"

    Aparentemente algumas obras precisam existir no momento certo. A cultura é uma das grandes formas de resistência, e o cinema não é diferente disso. É muito triste ouvir dizer "o cinema nacional não vale nada" devido à massificação dos filmes mais bobos, quando, na verdade, possuímos uma riqueza cinematográfica imensa, mais valorizada internacionalmente do que no próprio Brasil. Aliada a isso está a conjuntura nacional, marcada pela disseminação do ódio e pela polarização política, que acaba interferindo no cinema. As produções brasileiras nunca foram tão ameaçadas quanto atualmente, e a ascensão de "Bacurau", inclusive em âmbito internacional (o filme venceu o Prêmio do Júri do Festival de Cannes), representa muito para a indústria nacional, inclusive pela mensagem que permeia o filme. Nesse sentido, é impossível não comparar esse momento do cinema brasileiro com o movimento cultural mais marcante das nossas telonas: o cinema novo. Glauber Rocha, durante o regime militar, dirigia filmes que misturavam a realidade do interior brasileiro com movimentos de câmera que beiravam o absurdo, de modo a ser vértice de uma contracultura importante para a época. "Bacurau" parece beber dessa fonte à medida que conta a história de um pequeno vilarejo no interior de Pernambuco que precisa lidar com ameaças externas. Não é muito bom falar muito mais sobre a história, porque as surpresas fazem parte do enriquecimento da obra, mas uma coisa é certa: as camadas presentes no roteiro saltam os olhos. Ainda que a história se sustente no seu nível mais óbvio, o comentário social do roteiro é demasiadamente reflexivo.

    Assim, Kleber Mendonça Filho mostra, mais uma vez, uma incrível capacidade de exaltar a cor local brasileira. Agora em parceria com Juliano Dornelles, o diretor/roteirista de "O Som ao Redor" e "Aquarius" cria um vilarejo que parece estranho ao início, mas que vai se tornando cada vez mais familiar ao longo da metragem. Toda essa familiaridade é construída pela inserção de pequenos detalhes referentes aos costumes da aldeia que a tornam mais real. Por exemplo: logo no início do longa, uma mulher, ao chegar na cidade, ingere uma espécie de erva. Somente ao final da sessão é que o espectador entende o significado daquilo, o que corrobora a personalidade trazida à própria cidade. Mais do que um ambiente, Bacurau parece ser um personagem. Somando-se a isso está o fato do filme se  passar em um "futuro não tão distante", que permite aos roteiristas a criação de situações cômicas envolvendo o uso das tecnologias e que não deixam de ser uma espécie de crítica a determinados comportamentos induzidos pelo excesso de celular, por exemplo. É também válido ressaltar a postura do roteiro frente ao público, já que as informações são apresentadas de maneira lenta e de forma não subestimada. Ainda que o longa seja de uma tranquila interpretação, em nenhum momento percebemos diálogos expositivos que menosprezem a capacidade intelectual do público, o que, por si só, já é muito bom. Além disso, já que a história baseia-se em uma comunidade se defendendo de uma invasão externa, é impossível não relacionarmos com a própria realidade brasileira, tanto histórica quanto atual. Ao valorizar a população de Bacurau com seus costumes e trejeitos, Kleber e Juliano parecem mostrar uma mensagem muito clara: o Brasil tem um núcleo de diversidade muito grande e é nosso papel resistir. Nesse ínterim, também pode-se entender Bacurau-cidade e Bacurau-filme como paralelos de resistência: um enquanto parte de uma história e outra enquanto parte de uma ameaça ao cinema nacional. E o fato da resistência acontecer no interior do Nordeste diz muito sobre a visão dos roteiristas, numa clara forma de valorização afetiva.

    Para além de todo o sub-texto sociopolítico, "Bacurau" também impressiona pela sua qualidade técnica. Evocando diversos estilos diferentes, os diretores conseguem potencializar as diversas emoções presentes na tela, de modo a tornar a experiência bem mais visceral. No que tange o retrato dos personagens (principalmente na altura dos rostos) e o artifício da câmera tremida, o já citado Glauber Rocha parece ser uma inspiração clara. Além disso, Kleber e Luciano apostam numa câmera mais comedida para ambientar a cidade de Bacurau e aumentar a tensão das cenas. Desse modo, temos uma câmera calma e contemplativa que vai, de pouco a pouco, cobrindo os diversos detalhes da cidade, combinada com uma trilha sonora muito bem encaixada. Nesse quesito, o filme lembra bastante os western italianos de Sergio Leone, que focavam na ambientação contemplativa do lugar, como forma de demonstrar que o perigo pode chegar a qualquer momento. Por outro lado, as cenas de violência - que causaram polêmica frente àqueles que atacam o cinema nacional - são totalmente justificadas e condizentes com a proposta do filme. Já que "Bacurau" se propõe a ser um expoente da contracultura e expressa a arte enquanto resistência, a violência empregada na obra é simplesmente uma forma de materializar esse simbolismo adjacente, produzindo choque e reflexão no espectador. É como se o Tarantino fizesse um filme com uma cor local genuinamente brasileira e que criticasse qualquer tipo de imperialismo. Seria impossível fazer isso com ausência de violência gráfica.

    Ademais, o elenco merece destaque por representarem, de maneira honesta, a realidade proposta pelo filme. Fugindo de qualquer tipo de estereótipo, cada ator e atriz consegue dar camadas aos personagens que se mostram cada vez mais interessantes. O destaque vai para Sônia Braga, em uma atuação completamente diferente daquela feita em "Aquarius", apostando agora no carisma e na comédia para apresentar uma personagem muito forte. Por fim, "Bacurau" se mostra uma experiência completa, que dá orgulho a quem gosta tanto do cinema nacional. Kleber Mendonça Filho consagra-se como um dos grandes idealizadores atuais, dirigindo seu terceiro filme complexo, reflexivo e, principalmente, crítico. Já que o cinema é a forma de arte mais acessível, é sempre importante a presença de obras que tenham o que dizer, ainda mais em um cenário de destaque devido à premiação de Cannes. E, se, em algum momento, um dos invasores diz que "É só o começo", a esperança é de que esse tipo de filme também não esteja sozinho. É muito bonito ver um projeto que aposta na cor local, com a presença de regionalismos e atores não tão conhecidos para valorizar uma história que se baseia em uma crítica social contundente. "Bacurau" é "uma canção singela, brasileira", que inspira resistência, tanto na sua história quanto na sua proposta temática, utilizando-se de um roteiro repleto de sub-textos sociopolíticos relevantes para a conjuntura atual e de uma direção que remonta aos clássicos do Cinema Novo, de modo a se configurar como uma das mais relevantes experiências cinematográficas nacionais dos últimos anos.

    Nota: 

    - João Hippert

    quarta-feira, 21 de agosto de 2019

    Crítica de "Era Uma Vez em... Hollywood"

    O filme acabou. E eu não tinha a mínima ideia do que eu tinha achado dele. Depois de dias pensando sobre, cheguei a uma conclusão pouco comum no cinema atual: "Era uma Vez em... Hollywood" é um filme que não se encerra com o apagar das luzes da telona. Isso traz uma carga muito grande ao cinema contemporâneo por mostrar que, infelizmente, esse tipo de obra não é corriqueiro. O predomínio dos grandes estúdios, com grandes orçamentos tendem a produzir filmes em massa que investem muito mais no fator "diversão" do que no fator "reflexão". Por isso que a presença de alguns idealizadores do cinema moderno é muito importante a nível "macro", a fim de despertar nas pessoas o interesse pelo cinema enquanto arte - para além do entretenimento. Martin Scorsese, Stanley Kubrick, Alfred Hitchcock, Quentin Tarantino foram/são gênios que conseguiram misturar sucesso entre o público e películas profundas e que tratam sobre temas nada superficiais. Dito isso, chegamos aqui ao nono filme da incrível carreira do roteirista/diretor Quentin Tarantino. Dono de um estilo próprio e instituidor de clássicos , tais como "Cães de Aluguel", "Pulp Fiction" e "Bastados Inglórios" - filmes marcados por diálogos verborrágicos e violência escatológica como parte do estilo -, Tarantino chega aqui com o seu longa mais autorreferencial e mais sóbrio. "Era Uma Vez em... Hollywood" é um retrato do final dos anos 60 em Hollywood, na época considerada de ouro do cinema estadunidense. O roteiro acompanha o ator Rick Dalton (Leonardo DiCaprio), que é completamente inseguro e precisa se adaptar às mudanças da indústria, juntamente com seu dublê/melhor amigo (Cliff Booth). Por outro lado, também acompanhamos um pouco do cotidiano da atriz Sharon Tate (Margot Robbie).

    O roteiro de Tarantino busca, diferentemente do que ele mesmo costuma fazer, construir uma atmosfera onírica. Isto é: o filme não se pauta na troca incessante de diálogos entre os personagens, mas sim na apresentação de uma realidade bem definida no tempo e no espaço. Através dos planos longos em que o diretor mostra os diferentes pontos da cidade de Los Angeles e da mescla com os cartazes e programas de televisão da época, Tarantino parece nos querer transportar para um momento histórico do cinema pelo qual ele nutre um carinho profundo. Por isso, "Era Uma Vez em... Hollywood" é muito mais um filme sobre o cotidiano do que sobre uma história que parte de um ponto A para chegar a um ponto B. Para a proposta ser bem sucedida, no entanto, o roteirista apostou em um desenvolvimento deveras profundo dos personagens, que deixam as 2 horas e 40 minutos de metragem inteiramente leves. Rick Dalton é um ator que vive da fama do passado e se mostra inseguro a todo o momento (principalmente depois de ter uma conversa séria com um empresário interpretado pelo brilhante Al Pacino). Somente nesse personagem já conseguimos extrair temas profundos e que dizem muito sobre o estágio atual da carreira do próprio Tarantino, tais como carisma, adaptabilidade e renovação. Grande parte dos anseios do personagem parecem, de fato, transparecer uma opinião genuína do diretor. É como se ele estivesse dizendo: "Será que eu ainda sou protagonista na indústria?". E a resposta é sim. Toda essa reflexão é potencializada pela incrível atuação do sempre excelente Leonardo DiCaprio, que usa de todos os artifícios, tanto físicos quanto emocionais, para transmitir uma imagem completamente sincera de seu personagem e que resulta em alívios cômicos bem pontuados em determinados momentos do filme.

    Cliff Booth, por sua vez, é um personagem ambíguo, que dá ao espectador uma falsa noção do que está acontecendo. Explico: apesar de Brad Pitt prover uma atuação completamente carismática, existem alguns acontecimentos passados da vida de Cliff que o colocam nessa linha tênue entre herói e anti-herói. E, para completar o trio principal, está Sharon Tate - a única que realmente existiu na vida real. Aqui, Margot Robbie aposta em uma atuação extremamente angelical e parece ser uma clara homenagem à atriz, que foi brutalmente assassinada ao final daquele ano. Nesse sentido, o tom fabuloso que a obra traz até mesmo no título é personificado na personagem de Margot à medida que ela representa o ideal desse cinema romântico que o diretor parece querer homenagear a todo o tempo. Aliás, o filme é recheado de referências a todo tipo de filme, já que ele trata da própria indústria. Mesmo assim, tais inserções não são vazias: elas têm um sentido de existir e engrandecem a experiência cinematográfica. Um bom exemplo dessas referências está na semelhança de propostas entre "Era Uma Vez em... Hollywood' e o clássico "Era Uma Vez no Oeste" de Sergio Leone. As duas obras apostam em um tom mais contemplativo durante a metragem, investindo no desenvolvimento profundo dos protagonistas e na ambientação perfeita. Não é à toa que o título do filme faça referência a esse grande western italiano. No quesito de direção, a câmera é hábil no sentido de minimizar os cortes: todas as sequências possuem o número de tomadas certo, de forma a proporcionar uma imersão maior. Tal estratégia se ancora na qualidade dos atores que, quando solicitados, desenvolvem muito bem os diálogos propostos pelo roteiro.

    Por fim, "Era Uma Vez em.. Hollywood" é uma experiência incomum, que aposta no talento do seu elenco para nos conduzir em uma jornada contemplativa e autorreferencial. É um filme que incita a discussão por, justamente, apresentar camadas diferenciadas em seu roteiro. Escreverei agora uma interpretação pessoal (com spoilers). Toda a construção atmosférica do filme dá a ele um tom fabuloso e de idealização. É como se Tarantino nos estivesse mostrando a visão dele sobre uma época muito rica no cinema, onde tudo parece ser  perfeito. A personagem de Sharon Tate, portanto, parece desempenhar o papel de representar todo esse ideal. Uma atriz talentosa, simpática e querida - símbolo da nostalgia do diretor. Nesse sentido, a cena final na casa de Rick apresenta-se como uma revolta de Tarantino em relação à "morte da inocência". Já que o assassinato de Sharon Tate não ocorre no filme devido à presença de Rick e Cliff na casa ao lado, Tarantino realiz seu revisionismo histórico de modo a preservar uma época que parece ser tão especial a ele. A "não-morte" de Sharon Tate representaria uma espécie de respiro a uma época romântica e idealizada, o que corrobora, no final das contas, a proposta apresentada durante toda a metragem. "Era Uma Vez em... Hollywood" pode não ser o filme mais memorável de Tarantino, mas com certeza é um dos mais reflexivos. O cinema respira.

    Nota: 

    - João Hippert

    quinta-feira, 25 de abril de 2019

    Crítica de "Vingadores: Ultimato"

    Esta não é uma crítica normal. Dito isso, tenho mais liberdade para (tentar) expressar todo o impacto que a sessão de meia-noite de "Vingadores: Ultimato" representou para mim. Ao sair da sala de cinema, depois de um mix de emoções provido pelo excelente desenvolvimento da história, deparei-me com a seguinte constatação. Por que será que uma franquia, iniciada 11 anos atrás, tem um apelo emocional tão forte e dialoga com tanta gente ao redor do mundo? Não se trata apenas de olhar sob um viés puramente lógico a essência dos super-heróis como representação daquilo que queríamos ser quando criança, mas sim de reconhecer a importância de tais seres em um contexto social tão problemático a nível mundial Ora, assim como nas próprias histórias em quadrinho, sociedades que apresentam instituições falidas baseiam-se em sonhos inalcançáveis - espécies de utopia - que expressam uma verdadeira fuga da realidade. Esse, aliás, é um dos papéis atribuídos à arte. Mas o que a Marvel fez, seguindo esse pressuposto, consegue ir além por, justamente, criar um imaginário coletivo a respeito daqueles personagens. E à medida que os filmes se passaram e chegamos nesse que se propõe a ser o último dessa fase, entendemos que os Vingadores não são meros heróis. Os Vingadores são um símbolo, uma necessária renovação da esperança na cooperação da humanidade em meio a tantos problemas aparentemente insolúveis. Eles são uma espécie de constante lembrete do nosso potencial enquanto seres humanos, e é por isso que tudo em Ultimato parece tão arrebatador. Mais do que personagens, aqueles heróis são símbolos. E símbolos ficam para a história.

    Para além do simbolismo, entretanto, esse filme é o retrato de uma geração. Geração esta, na qual eu me incluo, que, quando criança, conheceu um personagem novo super charmoso e que chegaria para ser o comandante da Marvel nos cinemas. O Homem de Ferro de Robert Downey Jr é, sem sombra de dúvidas, um dos personagens mais icônicos da história do cinema. O tempo foi passando, fomos crescendo, conhecemos novos heróis, vimos a reunião deles, a separação, até uma reunião grandiosa iniciada pelo excelente "Vingadores: Guerra Infinta". Mas, por que então apenas "Vingadores: Ultimato" seria considerado o filme de uma geração? "Vingadores: Ultimato" é o filme da geração por reunir, nas mais de 3 horas de duração, todos os elementos que consagram a Marvel nos últimos anos. E isso vai muito além da mera "fórmula" de contar histórias, mas também no profundo desenvolvimento dos personagens, dotados de dramas intensos. Além disso, o roteiro de Christopher Markus e Stephen McKeely parece estar perfeitamente inserido no Universo Cinematográfico da Marvel. É como se todos os 21 filmes antecessores tivessem sido feitos para culminar aqui. Isso demonstra uma incrível continuidade narrativa e uma grande coesão, o que reflete, mais uma vez, a grande capacidade de Kevin Feige em proporcionar momentos de pura emoção. Ao mesmo tempo, o roteiro não se furta de apresentar conceitos novos à história, com referências a filmes de ficção científica e fantasia que engrandecem a linha narrativa principal.

    O que difere o roteiro das demais películas da Marvel talvez esteja na maior preocupação com o desenvolvimento da relação entre os personagens. As mágoas, as saudades, as amizades, as chegadas, as partidas - tudo aqui é demonstrado de uma maneira muito crua, o que traz muito peso aos acontecimentos da história. Como acompanhamos esses personagens há mais de 10 anos, eles transcendem a figura de uma criação e se tornam verdadeiros amigos. O público que é fã é capaz de definir, com perfeição, as características de cada herói. E, nesse sentido, é impossível fazer esse reconhecimento sem homenagear o gênio por trás disso tudo: Stan Lee. Stan Lee, talvez o maior criador de heróis de todos os tempos, baseou seu trabalho na imaginação de seres com super poderes, mas com problemas humanos. É por isso que a Marvel sempre teve a fama de possuir heróis mais "pé no chão", enquanto a DC trata de seres mitológicos e divinos. Nesse sentido, o peso emocional proporcionado pelas relações é exacerbadamente ampliado devido à intensa qualidade de um elenco que, embora estrelado, parece reconhecer a importância daqueles personagens no imaginário popular. Scarlett Johansson, Robert Downey Jr, Chris Evans, Mark Ruffalo,Chris Hemsworth, Brie Larson, Paul Rudd, Jeremy Renner: todos são destaques. Por outro lado, o drama também é atenuado por momentos de puro êxtase; uma empolgação genuína provocada por cenas em que todos os fãs sempre sonharam em ver. Felizmente, porém, tais momentos são inseridos de maneira gradual de modo a terem seus momentos de contemplação e absorção.

    E, nesse sentido, a direção dos irmãos Russo mostra-se, mais uma vez, competente ao conseguir mesclar diferentes sentimentos ao longo da película de modo a resultar em uma experiência cinematográfica completamente impactante. As cenas de ação são épicas, o humor é bem dosado, o drama é potencializado, e os "fan services" são recorrentes. O ritmo, desse modo, é bem acelerado, o que deixas as longas horas de duração bem mais curtas do que parecem. "Vingadores: Ultimato" é um daqueles filmes que você sai da sala de cinema ainda sem saber como reagir, mas com a certeza de que foi algo histórico. Todo o simbolismo, toda a dramaticidade e todo o amor empregados aqui tornam o filme uma experiência fora do convencional para o público em comum, mas, para os fãs, é realmente um filme sem precedentes. É impossível possuir um julgamento completamente racional acerca de uma história na qual eu me aventuro desde criança, mas é perceptível como a película é capaz de, através de seus elementos técnico-artísticos, elevar o potencial emocional da história. Ao início dos créditos finais, apenas uma certeza fica: "Vingadores: Ultimato" é o filme de uma geração, marcado por um roteiro capaz de emocionar e empolgar, por um elenco totalmente empenhado e uma direção que entende onde quer chegar, fazendo isso com maestria.

    Nota: 

    - João Hippert

    domingo, 24 de março de 2019

    Crítica de "Nós"

    Uma das melhores sensações que um cinéfilo pode ter ao assistir a uma película no cinema é a sensação de estar acompanhando algo inédito, original e bem trabalhado, em seus mínimos detalhes. Talvez, em meio a tantos desastres recentes, esse tipo de sensação aqueça o coração daquele que considera o cinema mais do que um mero entretenimento, mas como parte da vida e, (por que não?), como motivo de deleite intelectual. "Nós" chega às telonas brasileiras com o estigma de clássico recente, por ser uma obra totalmente original, além de muito bem executada na parte técnica. A notícia de que o longa se tornou a maior estréia do cinema de terror estadunidense da história é ótima, justamente, pelo momento sociopolítico conturbado sob o qual o mundo está inserido atualmente, além de valorizar a importância do cinema de horror enquanto crítica. Contudo, o sucesso de "Nós" não depende só do próprio filme enquanto realização cinematográfica, mas sim como parte do início de uma carreira cinematográfica que beira o brilhantismo. Jordan Peele, recentemente, nos presenteou com o excelente "Corra!" - filme que também aposta no terror psicológico para uma crítica social. Ali, porém, os elementos estavam bem claros e, talvez devido a um excesso de explicações, o ato final perde um pouco de seu impacto. Diferentemente de "Nós", que se mostra impactante no cerne da palavra - e o fato de um filme ser capaz de incomodar tanto apenas com o uso de metáforas é louvável. O longa acompanha a família de Adelaide (Lupita Nyong'o), em uma viagem à casa de veraneio. Subitamente, as coisas parecem fugir do controle à medida que a família começa a ser perseguida por sósias sinistros, e o clima de tensão se acentua gradativamente.

    O roteiro de Jordan Peele impressiona por conseguir criar diversas camadas de interpretação, ao mesmo tempo que funciona em sua camada mais superficial. Explico: muitas vezes um filme se vende por uma ideia totalmente metafórica, repleta de símbolos; porém só funciona à proporção que o público entenda tais referências. Aqui, mesmo que "Nós" proponha uma discussão aprofundada acerca de diversos temas - inclusive transcendentais -, o filme funciona como uma "simples" história de terror, em que uma família está fugindo de um perigo. Nesse sentido, Peele acerta em criar uma das personagens mais multifacetadas do milênio: Adelaide. Trata-se de uma mulher extremamente dúbia, afetada por fantasmas do passado e que está sempre em alerta, com medo de possíveis ameaças. O roteiro acerta na composição da personagem, já que as informações de seu passado são inseridas de maneira gradual, contribuindo para que Lupita apresente a personagem de sua maneira. Aliás, não é de se exagerar dizer que a atriz faz um dos trabalhos mais impressionantes do ano - tanto na esfera física quanto na psicológica. É sempre difícil incorporar duas personagens (ainda mais quando as duas são, em tese, a mesma pessoa), mas Lupita consegue acrescentar camadas às duas que as diferenciam, ao mesmo tempo que existe sempre um padrão que permite a identificação. Embora a personagem sósia seja uma espécie de vilã do longa, é muito difícil ter total aversão à ela, devido à forte presença da atriz. O público não torce para ela, mas também não consegue odiá-la. Muito porque, em aliança a isso, a história por trás do longa siga um conceito interessantíssimo de ser explorado -  e que não reside apenas na frase "o nosso maior  inimigo é a gente mesmo". O buraco está cada vez mas embaixo.

    Isso decorre do fato de que os símbolos utilizados por Peele intercalam diferentes sub-textos. Desde uma temática mais religiosa e transcendental, com a inserção de elementos como o número 11 (ideal de perfeição) e uma passagem da Bíblia até uma crítica social bruta, que trata da desigualdade social (repare como as letras do filme "Us" formam as siglas do nome do país "United States"). Tudo que é apresentado em tela possui uma razão de existir, e é mediado por um excelente trabalho de direção por parte do próprio Jordan Peele. Ainda que "Corra!" tenha uma direção segura e capaz de intercalar os momentos de tensão e comédia, aqui o diretor demonstra uma maturidade tremenda, com movimentações de câmera extremamente fluidas e direcionadas ao objetivo do filme. No quesito de tom, Peele é capaz de alternar - de maneira natural - os diferentes momentos de comédia, ação e tensão. Ao mesmo tempo que "Nós" faz rir por meio de "gags" inusitadas (a cena que conta com NWA é hilária), o filme assusta com cenas simplesmente de arrepiar - no sentido mais literal da palavra. O diretor consegue aliar elementos clássicos do terror, mas não deixa de inovar na criação de situações propícias para o desenvolvimento da história enquanto narrativa. É impossível deixar de reconhecer, também, as qualidades técnicas da obra, com destaque para a fotografia estonteante, capaz de criar, através da paleta de cores, rimas visuais fortíssimas. Além do visual, a trilha sonora destoante é eficiente na condução do ritmo do longa e potencializa todas as cenas de impacto. "Nós" é um filme que depende muito das suas camadas de roteiro e de seu elenco, porém a sua direção segura facilita com que tais elementos tenham mais destaque.

    Por fim, é impossível sair de "Nós" sem algum tipo de reação: choque, medo, impacto, revolta. A junção dos diversos elementos simbólicos consegue prover uma experiência cinematográfica singular. Se em 2017 ficamos impactados com o que "Mãe!" tinha pra nos dizer, em 2019 não sabemos direito o que pensar do filme, justamente por sua ampla possibilidade de interpretações. Mesmo assim, aqui vai a mais contundente que pensei até agora (spoilers à frente): o filme fala, justamente, do ideal de igualdade. Somos todos iguais, portanto deveríamos ter as mesmas oportunidades. Mas aqui, existe um grupo seleto que tem sua vida subjugada por um ente superior hierarquicamente (Deus? Estado?). Dessa forma, apesar dos personagens serem iguais (no sentido literal da palavra), existe um distanciamento quanto ao meio (algo que remonta à ideia de determinismo). E o fato das sósias não conseguirem se expressar por meio da palavra não é à toa: aquele tipo de pessoa não tem voz naquele universo. E a citação do trecho da Bíblia "Jeremias 11,11" faz total sentido porque infere justamente essa incapacidade de Deus de ouvir os anseios de uma população que não tem voz ("Portanto assim diz o Senhor: Eis que trarei mal sobre eles, de que não poderão escapar; e clamarão a mim, mas não os ouvirei."). Tratando do cinema de Jordan Peele, tal interpretação, de caráter sociológico, traz, em seu cerne, todo o processo de colonização e posterior escravização que faz parte da história estadunidense. É por isso que, quando os sósias são perguntados sobre quem são, eles respondem "Nós? Nós somos americanos". Justamente, um país onde pessoas conseguem ter uma vida digna em meio a um abismo social (e é válido ressaltar a temática negra em volta do filme devido ao apelo que Peele consegue colocar em seus filmes). Ainda que a crítica seja ao sistema social como um todo, Peele nunca deixa de demonstrar certos comportamentos racistas que, infelizmente, ainda perduram na sociedade. Contando com referências a "O Iluminado" e "Tubarão", "Nós" é um filme de terror rico em sub-textos, que conta com uma atuação fortíssima de Lupita Nyong'o e fortalece, ainda mais, a imagem de Jordan Peele enquanto grande cineasta.

    Nota: 

    - João Hippert

    sexta-feira, 8 de março de 2019

    Crítica de "Capitã Marvel"

    A última década foi dominada pelos filmes de herói e é impossível não reconhecer o protagonismo da Marvel nesse âmbito. Começando com o excelente "Homem de Ferro", em 2008, o estúdio vem lançando de 2 a 3 filmes por ano desde então. Porém, o que é mais curioso nisso tudo é que, mesmo depois de tantos filmes, o estúdio foi conservador a ponto de não trazer nenhum longa com protagonista feminina anteriormente. A Marvel aparentemente embarcou no embalo do sucesso de "Mulher Maravilha" - um dos poucos acertos da concorrente nos últimos anos - para produzir o seu primeiro longa protagonizado por uma heroína. E o resultado? Bem, poderia ter sido bem mais satisfatório. O longa acompanha Carol Danvers (Brie Larson) na sua jornada de autoconhecimento, de descoberta de seu próprio passado e de controle dos poderes. Nesse sentido, o longa remete muito à estrutura clássica dos filmes de apresentação de heróis da Marvel: todos os conflitos são bem delimitados, não deixando espaço para grandes reviravoltas. Contudo, isso por si só não prejudica o filme: muito pelo contrário. O grande problema do roteiro é sua necessidade de grandiloquência - algo recorrente nos filmes do subgênero -, tendo em vista que a apresentação da Capitã Marvel para o grande público não precisa implicar necessariamente em uma guerra interplanetária. Aliado ao fato de que o filme se passa nos anos 1990, logo já sabemos das consequências daquilo que a história mostra, o clímax se demonstra muito artificial e pouco empolgante. O uso dos clichês nessa parte é feito em demasia e os "fan services" são completamente desnecessários e até desmistificam um pouco a áurea misteriosa de alguns fatos do MCU (algo que lembra bastante o fracasso que foi feito no filme do Han Solo).

    O que mais decepciona em "Capitã Marvel" é a sua primeira metade que se demonstra muito eficiente. A apresentação da personagem é feita de forma fluida, assim como a sua relação com o personagem Nick Fury (Samuel L. Jackson). Aliás, um dos grandes acertos do roteiro está justamente no desenvolvimento da relação entre os dois personagens, e a química é visível. Sem nunca apelar para a comédia escrachada, a dupla remete aos clássicos personagens de filmes de "tira", o que dá um tom bastante interessante para essa parte da metragem. Além disso, a descoberta de Carol  acerca do seu passado e das suas responsabilidades também é bem crível: Briel Larson consegue prover um alcance emocional elevadíssimo, tornando todo o drama em torno da protagonista extremamente mais tocante. Por outro lado, Brie Larson, mesmo que possua todas as características de uma excelente atriz, peca em um aspecto crucial: o carisma. Nesse ínterim, a comparação com Gal Gadot é inevitável. Embora seja uma atriz de menor calibre do que a vencedora do Oscar Brie Larson, Gal Gadot possui uma energia incrível e cativante. Ela simplesmente é a Mulher-Maravilha, compra os ideais da personagens e exerce um papel que transcende à sala de cinema. Brie Larson, no entanto, apesar de possuir o já citado alcance dramático, não consegue prover uma atuação tão carismática a ponto de fazer o espectador imergir naquela história e comprar aquela personagem. Isso se faz problemático em um filme de heroína, pois tira o espectador da empolgação inerente à história, provocando uma quebra de ritmo prejudicial.

    Ademais, o ritmo também demonstra defeitos, à medida que a direção de Anna Boden e Ryan Fleck se mostra ineficiente nas cenas de ação. Tratando-se de um filme de heroína, um dos grandes cuidados da direção deve ser localizar bem o espectador nos ambientes físicos das lutas e perseguições - o que não acontece. Tudo aqui é basicamente jogado na tela, e a coreografia não ajuda. Ainda que a fotografia apresente belos momentos e alguns enquadramentos soem absolutamente memoráveis, a constante confusão das cenas de ação promove uma sensação desgostosa no público, e mais enjoa do que empolga. Configura-se, dessa forma. como outra decisão errada da direção como um todo, já que as cenas baseadas em diálogo e em apresentação de conflito são muito boas. O que fica quase nítido ao fim da metragem é que "Capitã Marvel" é um filme feito às pressas, que seguiu uma onda recente promovida pela DC. Embora tenha uma base sólida e com potencial de ser um dos grandes filmes da Marvel, o filme se limita a seguir clichês preestabelecidos, contando com um ritmo final que deixa um gosto amargo no espectador. É mesmo um daqueles filmes que o final deixa tanto a desejar que chama muito mais a atenção do que o início promissor - e isso deve ser pontuado. Afinal, "Capitã Marvel" não pode ser encarado apenas como mais um filme da Marvel, haja vista seu grande apelo sociocultural, no que tange à representatividade feminina.

    Por um lado, temos finalmente uma heroína da Marvel sendo protagonista de um filme solo. Por outro, temos um filme mediano. Como colocar essas duas coisas na balança? "Capitã Marvel" tem um papel social muito mais relevante do que a sua própria qualidade artística em si, o que é uma pena. Tratando-se de um filme que trata do empoderamento e da representatividade, a mensagem é muito mais bem aceita quando colocada em uma obra tratada com carinho e que saiba aonde quer chegar. Mas, aqui, vemos um filme esburacado, com um roteiro com alguns momentos de inspiração, mas com uma direção totalmente desequilibrada. Ainda assim, enxergando o MCU como um todo, "Capitã Marvel" tem seus méritos enquanto parte do universo, por apresentar fatores importantes para a resolução de "Vingadores: Ultimato" - ainda que seja muito pouco frente ao potencial da metragem. Entre erros e acertos, "Capitã Marvel" se distancia dos recentes sucessos "Mulher-Maravilha" e "Pantera Negra", se mostrando um filme irregular, ainda que com uma temática importantíssima.

    Nota: 

    - João Hippert

    domingo, 24 de fevereiro de 2019

    Palpites para o Oscar 2019

    Um dos dias mais esperados pelos cinéfilos ao redor do mundo chegou: hoje tem Oscar! E como todo amante da sétima arte, também tenho os meus palpites para a premiação. Lembrando que trata-se de uma opinião baseada na temporada de premiações (SAG, DGA, PGA, Critics Choice, Globo de Ouro, Bafta, ...) e no histórico da Academia - e não nas minhas crenças pessoais. Então vamos ao que interessa:

    Melhor curta em live-action: Marguerite - "Fauve" é o meu favorito, mas a abordagem doce e sensível de "Marguerite" tende a agradar mais os votantes da Academia.

    Melhor curta em documentário: Black Sheep - Embora o emocionante "End Game" e o socialmente relevante "Period. End of Sentence" tenham mais apelo por estarem vinculados à Netflix, seria um absurdo a Academia não reconhecer a grandeza e o impacto desse filme.

    Melhor curta animado: Bao - Ainda que "One Small Step" conte uma história linda, será muito difícil tirar o Oscar das mãos do surpreendente - e impactante - filme da Pixar.

    Melhor filme estrangeiro: Roma - Inserido em uma categoria recheada de grandes obras, tais como "Guerra Fria" e "Assunto de Família", Roma é uma das maiores realizações cinematográficas dos últimos anos e este talvez seja seu prêmio mais certeiro.

    Melhor animação: Homem-Aranha no Aranhaverso - É a melhor animação do ano e ganhou todos os prêmios até agora. Fácil.

    Melhor documentário: RBG - A força político-social da trajetória de RBG deve suplantar a técnica de "Free Solo". Uma escolha que tende mais ao conteúdo do que a forma, apesar das duas obras serem excelentes.

    Melhores efeitos visuais: Vingadores: Guerra Infinita - Um filme que trata, basicamente, do estudo de um personagem criado por computação gráfica. Os efeitos são incríveis.

    Melhor mixagem de som: O Primeiro Homem - Um filme que sabe encaixar os sons harmonicamente para criar uma completa imersão.

    Melhor edição de som: O Primeiro Homem - Inventivo na criação dos diversos rupidos relacionados à espaçonave, a edição de som do filme de Chazelle também é um dos pontos altos do filme.

    Melhor edição: Bohemian Rhapsody - Um filme que, apesar de tudo, consegue ter um ritmo agradável à sua proposta, conseguindo encaixar os shows com o resto da história.

    Melhor fotografia: Roma - Outra categoria de altíssimo nível, mas em "Roma" a fotografia em preto e branco não só provê quadros lindos, mas também auxilia na construção narrativa.

    Melhor canção original: Shadow, de Nasce uma Estrela - A categoria mais fácil de todas. "Shallow" está no coração de todos até hoje.

    Melhor trilha sonora original: Se a Rua Beale Falasse - Talvez este seja o prêmio da Academia que redima a esnobada que essa obra tão carinhosa recebeu. É uma trilha suave, doce e encantadora.

    Melhor design de produção: A Favorita - Tudo técnico do filme de Lanthimos é perfeito, inclusive a sua escolha por ambientação e os diversos cenários que compõem o filme.

    Melhor maquiagem/cabelo: Vice - A transformação de Christian Bale em Dick Cheney diz por si só. Trabalho fenomenal.

    Melhor figurino: A Favorita - Mais uma vez, "A Favorita" deve levar uma categoria essencialmente visual devido ao seu esmero conceitual.

    Melhor roteiro adaptado: Infiltrado na Klan - Provavelmente o único prêmio dado a esse importante longa. Uma forma de reconhecimento ao gênio Spike Lee.

    Melhor roteiro original: A Favorita - A Favorita conta com a abordagem mais autoral da temporada, mas não seria surpresa de "Green Book: O Guia" levasse.

    Melhor direção: Alfonso Cuarón, por Roma - Em uma categoria recheada de bons nomes, Cuarón deve levar pelo conjunto da obra.

    Melhor ator coadjuvante: Mahershala Ali, por Green Book:O Guia - Outra categoria fácil, já que Ali é o dono do longa e ganhou todos os prêmios até aqui.

    Melhor atriz coadjuvante: Rachel Weisz, por A Favorita - Categoria extremamente difícil, mas o recente crescimento de "A Favorita" tende a facilitar as coisas para o segundo Oscar da atriz. Porém, não descartaria a presença de Regina King, por "Se a Rua Beale Falasse".

    Melhor ator: Rami Malek, por Bohemian Rhapsody - Apesar das controvérsias, Rami Malek deve levar o prêmio pela persona que Freddie Mercury inspira e pelo intenso lobby em torno do ator.

    Melhor atriz: Gleen Close, por A Esposa - Dona do filme, esse prêmio não incluirá só "A Esposa", mas toda uma carreira competente. Merecido.

    Melhor filme: Roma - É o melhor filme da temporada e seria uma premiação interessante para o futuro do cinema em streaming. "Infiltrado na Klan", "Green Book: O Guia" e "A Favorita" correm por fora.

    Confira abaixo críticas de alguns dos filmes indicados no Oscar 2019:

    - João Hippert

    sábado, 23 de fevereiro de 2019

    Crítica de "A Favorita"

    Existe determinado tipo de filme que, realmente, não se encaixa em um padrão palatável para todos. Às vezes, um roteiro escrito de uma forma não-convencional e uma direção mais autoral inspiram uma espécie de repulsa por parte do público, que considera o filme "diferentão" ou, talvez, pretensioso demais. "Trama Fantasma", por exemplo, que é o melhor filme da temporada de premiações de 2018, não foi completamente aceito, principalmente devido a suas inovações conceituais e seu jogo psicológico entre os personagens. Coube ao amável - porém pouco inspirado - "A Forma da Água" ser o grande vencedor do Oscar, o que demonstra uma certa aversão aquilo que é original pela indústria. Dito isso, chegamos na grande persona que caracteriza esse estilo de filme: Yorgos Lanthimos. O grego é responsável por obras cheias de criatividade, tais como "O Lagosta" e "O Sacrifício do Cervo Sagrado" - filmes nada óbvios que buscam desenvolver conceitos complexos por meio de um roteiro que tende ao absurdo. Nesse sentido, quando foi anunciada a produção de "A Favorita" houve um estranhamento inicial. Como um diretor desses seria capaz de realizar uma obra de época, baseada em personagens reais e que se passa, basicamente, dentro de uma Corte? O que Lanthimos demonstra, no entanto, é uma completa habilidade em transferir o seu estilo cinematográfico para qualquer tipo de história, o que corrobora a sua original voz artística. E é sempre bom quando artistas como ele são reconhecidos pelas premiações, pois isso estimula filmes que "pensam fora da caixinha" e contribui para a fuga do processo de padronização hollywoodiano. "A Favorita", portanto, conta a história da rainha inglesa Anne (Olivia Colman), em um período de guerra com a França. Ela é aconselhada pela Lady Sarah (Rachel Weisz), que parece ser quem, de fato, toma as decisões. As coisas começam a mudar quando uma serva, Abigail (Emma Stone), entra em cena e estimula uma série de conflitos.

    O roteiro é, sem sombra de dúvidas, o ponto alto do filme. Isso porque o mérito de "A Favorita" está totalmente na abordagem diferente que se dá para o enredo, já que as passagens históricas são apenas plano de fundo para um profundo estudo de personagens. Os roteiristas Tony McNamara e Deborah Davis apostam no desenvolvimento conceitual acerca do poder nas relações, dentro de um próprio ambiente de poder. É como se todo o "storytelling" do filme se baseasse na relação entre o trio protagonista, e o eterno embate entre elas para ver quem tem o domínio de determinada situação. Dessa forma, é impossível não lembrarmos da dialética do senhor e do escravo de Hegel: o filósofo defendia uma tese de que todas as relações humanas são baseadas em um jogo de poder entre dominador e dominado, sendo tal jogo definidor dos alicerces da História. Assim, "A Favorita", por meio de uma construção de personagens incrível, traduz tal teoria a ponto de ser um filme que conta, basicamente, os conflitos entre as personagens. É interessante notar que, as três personagens, mesmo que ocupando classes sociais diferentes, assim como cargos de influência distintos, apresentam uma relação de poder bastante única. Por exemplo: a rainha Anne é claramente bastante subordinada aos desejos de Lady Sarah que, por sua vez, sente a chegada iminente de uma ameaça: Abigail. Mesmo assim, tais nuances narrativas nunca permanecem estáticas: somos apresentados sempre a situações que subvertem a posição de cada personagem em relação à outra, e esse é o grande mérito do roteiro em prender a atenção do espectador. "A Favorita" trata, basicamente, das intrigas nos bastidores do poder, em um contexto onde a amoralidade é celebrada. Além disso, é perceptível o revisionismo histórico a respeito da banalização das cortes, já que somos apresentados a jogos, festas, corridas de pato e ornamentos que tendem ao ridículo.

    Entretanto, mesmo que o roteiro original seja a base para um bom funcionamento da narrativa, "A Favorita" também é um filme de elenco. Afinal, seriam necessárias três grandes atrizes para interpretar toda a complexidade de cada personagem. Felizmente, aqui temos um dos melhores elencos do ano, com um nível de destaque altíssimo. Olivia Colman, no papel principal, é a que mais impressiona, principalmente, nas cenas em que a personagem reage a determinadas situações. Colman é capaz de transmitir uma espécie de inocência aliada a uma pitada de paranoia, envolta em um passado de perdas e tragédias que expulsam a rainha Anne de qualquer traço convencional. Colman retrata uma rainha quebrada, com graves problemas de autoestima e emocional, mas que nunca deixa de ser menos imponente por causa disso. A rainha Anne só parece recuar diante de Lady Sarah, interpretada por Rachel Weisz. Esta apresenta-se como um contraponto à rainha, mostrando confiança e certeza de suas próprias ações. Weisz consegue construir um tom ameaçador a cada fala da personagem, assim como uma passionalidade em tudo relacionado à rainha e à Inglaterra. Trata-se de uma atuação extremadamente poderosa, e que impacta devido à intensidade demonstrada. Por fim, Emma Stone demonstra sua versatilidade ao interpretar a personagem mais dúbia da história. Se ao início da sessão somos impelidos a torcer por Abigail, seja pelo seu jeito doce, seja pelo seu passado; com o decorrer da metragem não temos mais tanta certeza assim. E a cena em que a personagem diz: "Eu estou do meu lado. Sempre." corrobora muito esse fato, já que Abigail mostra jogar de acordo com o jogo, sendo capaz de ser gentil, mas também de ser má, variando de acordo com a situação. Emma Stone apresenta um domínio muito grande nas transições emocionais às quais a personagem é submetida, e, devido ao seu forte carisma, nunca é capaz de afastar completamente a torcida do público por Abigail.

    Toda essa complexidade narrativa e de relações é competentemente orquestrada pelo diretor Yorgos Lanthimos, que parece ter controle sobre tudo que temos em tela. Aqui, Lanthimos utiliza do artifício dos planos abertos que exaltam a ambientação do longa. Além disso auxiliar no trabalho fotográfico, que é lindíssimo, tal decisão serve para enaltecer o ambiente de poder em detrimento à pequenez do ser humano. É como se o mundo fosse grande demais para tamanha mesquinharia e, dessa forma, uma Corte gigantesca reflete justamente essa desigualdade de poder que o filme tanto aborda. Além disso, Lanthimos também faz uso de lente "fish-eye" para prover um senso de profundidade interessante, que auxilia na imersão do espectador na história. Aliás, tecnicamente o filme também merece elogios devido ao seu figurino, maquiagem e direção de arte fantásticos. O contraste entre as intrigas das personagens e o ambiente fabuloso contribuem para o tom cômico que o filme procura. "A Favorita", apesar de abordar temas filosoficamente complexos, também pode ser analisado como uma peça teatral cômica, que se utiliza das situações absurdas e do desdém dos personagens em relação a determinadas construções sociais para conferir humor ao longa. Em aliança a isso, temos uma trilha sonora bastante oportuna e atuante, que dá tom sarcástico às inúmeras situações absurdas apresentadas. "A Favorita", logo, não é um filme para qualquer um, por apostar em conceitos muito diferentes, uma direção inovadora e um roteiro baseado em conflitos entre as personagens. Mesmo assim, trata-se de um complexo estudo filosófico acerca dos bastidores do poder que merece ser visto. Contando com uma limpeza visual estonteante, "A Favorita" se baseia em um roteiro atilado que trata das diferentes facetas acerca da relação dominador-dominado, expresso pelo melhor elenco do ano, sob uma direção inovadora e segura.

    Nota: 


    - João Hippert

    sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

    Crítica de "Assunto de Família"

    Uma das grandes maravilhas da sétima arte é a sua possibilidade de nos transportar para ambientes inimagináveis, e não precisa ser um filme de fantasia para atingir tal objetivo. Basta estarmos imersos em uma realidade diferente da nossa - seja no contexto social, histórico ou espacial - que já somos impelidos a exercer um dos sentimentos mais nobres do ser humano: a empatia. O cinema, como arte imersiva que se propõe, tem muita capacidade empática por, através da visão de um diretor, conseguir nos fazer enxergar realidades diferentes de maneiras distintas. É por isso que quando um filme totalmente original sobre um contexto diverso tem o poder de impactar tanto. Nesse sentido, "Assunto de Família" se ampara muito no impacto que produz, tanto sociologicamente quanto (por que não?) existencialmente. Vencedor da Palma de Ouro em Cannes e indicado ao Oscar de filme estrangeiro, o filme acompanha uma família de baixa renda no Japão, que vive de pequenos furtos e trabalhos temporários. Mesmo assim, não há espaço para tristeza - muito pelo contrário - somos apresentados a um ambiente que, apesar de contraditório, mostra-se bastante acolhedor, principalmente depois que a pequena Yuri se junta ao grupo. Porém, não se engane: o filme, em nenhum momento, busca romantizar a pobreza: as dificuldades são evidentes e os furtos, por exemplo, não são isentos de conflito moral. A qualidade do roteiro, contudo, é deixar tudo imersivo e verídico e, mesmo que possamos não concordar com as situações sob um ponto de vista frio, é impossível não se importar com os personagens sob um ponto de vista mais passional.

    Aliás, o roteiro de Hirokazu Koreeda tem muito mérito na transmissão dos sentimentos ao público. Mesmo que os moradores da casa não apresentem grau de parentesco em sua maioria, as relações entre eles são construídas de uma forma bastante sutil. Repare que, embora existam 6 integrantes na casa (a avó, o casal adulto, a mulher adulta e as duas crianças), todos têm as suas características definidas, assim como a sua própria jornada. E é interessante notar como a mescla das diversas situações não complicam o filme, mas sim facilitam sua proposta. Por exemplo: por um lado somos apresentados a uma avó cuidadosa que recebe uma indenização pelo fato de morar sozinha, mas, na verdade, abriga 5 pessoas em sua casa. Nesse sentido, a senhora não segue a lei estritamente, mas ao mesmo tempo, tem seus últimos dias de vida ao lado de pessoas que, apesar de tudo, se importam com ela. Por outro lado, temos um casal aparentemente feliz, mas que, devido à correria do cotidiano, não se permite mais o prazer do sexo. Os dois parecem estar em uma busca por sintonia e um retorno à sensualidade, o que o roteiro desenvolve com certa destreza. Ainda assim, temos duas crianças com suas brincadeiras pelas ruas japonesas e uma jovem adulta que trabalha em uma espécie de bordel para obter uma renda maior. Embora o número de personagens pareça excessivo, assim como as suas histórias, o grande mérito do longa é juntar tudo isso de forma a transparecer o real retrato de uma família. Como o próprio nome em português já diz, "Assunto de Família" busca fazer um estudo meticuloso da reunião de pessoas queridas em uma casa, mesmo que não seja por laços sanguíneos. E a habilidade em definir o conceito de família como algo construído através de carinho e amor é gerada, também, pela apresentação de outros núcleos familiares, que, por sua vez, são tóxicos e prejudiciais ao desenvolvimento dos membros.

    Nesse sentido, é impossível não interpretar tal história como um reflexo da modernidade líquida, afinal as relações parecem não ter fortaleça, mesmo sendo de sangue. A família a que somos apresentados, no entanto, apesar de seus meios ilícitos (aparentemente todos têm algo a esconder), parece sustentar uma base forte de relacionamento, o que torna tudo tão aconchegante. "Assunto de Família" é um filme doce, repleto de carinho e paixão, ao mesmo tempo que não se exime de realizar críticas sociais a respeito da diferença de classes. Outro grande ponto da metragem no que diz respeito ao conceito de família em si é a construção das diferentes relações possíveis em um ambiente familiar. Com a chegada da pequena Yuri, o espectador percebe a jornada da menininha se tornando irmã do menino Shota e filha de Osamu e Nobuyo, o que se desenvolve de maneira bastante calma, todavia verossímil. Nesse ínterim, a direção do também roteirista Koreeda é competente assertiva em criar tal ambientação agradável, desde o início da metragem. Como a principal proposta do filme é desenvolver a relação dos moradores daquela casa, as tomadas se desenvolvem de maneira muito fechada, e a movimentação se limita, basicamente, à própria casa. Mesmo assim, através de um movimento de câmera bem lento e, muitas vezes estático, Koreeda é capaz de criar esse senso de imersão, fazendo o público se sentir confortável em acompanhar a jornada diária daqueles personagens. Quando um filme consegue fazer com que nos importemos com seus personagens, não importando as consequências, o diretor merece muito mérito por conseguir arquitetar tal realização. E aqui, o que acontece é isso: em "Assunto de Família" nós achamos fofo, nós nos emocionamos, nós sentimos raiva - enfim, nós sentimos. É um filme de puro sentimento que desenvolve seu conceito principal de maneira cativante.

    Ademais, é válido ressaltar a parte final do longa, quando o clímax é atingido. Koreeda toma uma decisão muito ousada, pois desconstrói tudo que foi apresentado durante o longa. Mas, ao invés disso invalidar o próprio discurso do filme, ele se engrandece, devido ao forte comentário social que acarreta. E, mais uma vez, o filme se afasta de uma possível romantização da pobreza para, no fim, defender, mais uma vez, a validade das relações familiares pautadas no carinho e na importância que se dá ao outro. "Assunto de Família" encanta mesmo pela versatilidade quanto aos temas, assim como em relação à profundidade como são abordados. Trata-se de uma película que diverte pelas situações cotidianas, emociona pelas chegadas e partidas e, simplesmente, retrata uma realidade completamente diferente da que estamos acostumados, de forma crítica e desconstruída. "Assunto de Família" é um poderoso estudo social que ganha força com o afeto transmitido, por meio de uma família que, mesmo sendo desfuncional, também mostra-se deveras amorosa e completamente aconchegante.

    Nota: 


    - João Hippert