sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Top 10: Filmes 2019

Mais um ano chega ao fim e, com isso, as tradicionais listas de melhores do ano. Antes de mais nada, é preciso dizer: 2019 foi um excelente ano para o cinema. Nunca achei tão difícil reunir as 10 melhores obras do ano e colocá-las em ordem, o que demonstra a grande qualidade das películas, além de uma diversidade incrível. Filmes comerciais, independentes, nacionais... Todos tiveram seu espaço devido à relevância das obras. Vale lembrar que a lista leva em conta apenas os filmes lançados comercialmente no Brasil no ano de 2019. Assim, existem alguns filmes de 2018 na lista, mas que chegaram aos cinemas brasileiros somente no início desse ano. Para começar, devo fazer algumas menções honrosas - filmes que gostei de assistir em 2019, mas não o suficiente para estarem entre os 10. Durante a temporada do Oscar, tivemos o lançamento do estupendo Guerra Fria - drama polonês que trata com muita sensibilidade os encontros e desencontros do amor. Além disso, A Favorita foi um destaque devido à sua fluidez narrativa e suas inovações técnicas e Vice se mostrou um importante documento histórico. Se a Rua Beale Falasse foi um filme que passou batido por aqui, mas merece destaque devido às suas sutilezas. Outros filmes que merecem ser citados são Vidro e Creed 2. Mesmo não sendo à altura de seus predecessores, são continuações justas e um entretenimento digno. Também gostaria de exaltar algumas obras que merecem destaque pela leveza. Filmes que podem não ser tão geniais, mas que dão uma sensação muito boa ao serem assistidos. São eles Turma da Mônica: Laços, Toy Story 4 e Yesterday. Cada um à sua maneira consegue emocionar, divertir e entreter - dependendo do seu envolvimento emocional com cada história. Além deles, Rocketman representou a carreira de Elton John de forma bastante autoral, conseguindo incluir elementos fantásticos em uma cinebiografia, de modo a enriquecer a obra. No que tange os lançamentos da Netflix, Democracia em Vertigem demonstrou força histórica ao retratar um dos lados da moeda no impeachment de 2016. Breaking Bad: El Camino foi um digno fim de arco para um dos melhores personagens da série tão consagrada. Por fim, Dois Papas e História de Casamento são filmes que colocam de vez a Netflix no patamar dos grandes estúdios de cinema, investindo em histórias intimistas e elencos fabulosos. Não seria estranho observar ambas as obras no Oscar 2020. Por fim, a última menção honrosa fica com o excelente Entre Facas e Segredos - suspense ágil que conta com boas reviravoltas e uma montagem de ponta. Sem mais delongas, eis os dez melhores:


  • Parasita"Parasita" é, de fato, muito bom. Contando com um sub-texto social marcante, o longa sul-coreano é uma experiência altamente imersiva, tensa, reflexiva, configurando-se como um dos melhores filmes do ano.
  • O Irlandês - "O Irlandês" é definitivamente uma combinação de elementos que não teria como dar errado. Um grande estúdio com capacidade de investimento, um grande diretor com liberdade criativa, um roteiro funcional e minucioso e um grande elenco. "O Irlandês" demonstra a força do streaming ao prover uma película intimista, envolvente e, acima de tudo, tecnicamente perfeita.
  • Bacurau Bacurau é "uma canção singela, brasileira", que inspira resistência, tanto na sua história quanto na sua proposta temática, utilizando-se de um roteiro repleto de sub-textos sociopolíticos relevantes para a conjuntura atual e de uma direção que remonta aos clássicos do Cinema Novo, de modo a se configurar como uma das mais relevantes experiências cinematográficas nacionais dos últimos anos.
    • Era Uma Vez em.. Hollywood "Era Uma Vez em... Hollywood" pode não ser o filme mais memorável de Tarantino, mas com certeza é um dos mais reflexivos. O cinema respira.
    • Coringa - Contando com uma levada autoral totalmente bem-vinda, "Coringa" é um profundo estudo de um personagem esférico, com um sub-texto social marcante e que ganha destaque por uma das maiores atuações dos últimos anos. Joaquin Phoenix é assustadoramente fantástico.
    • Assunto de Família"Assunto de Família" é um poderoso estudo social que ganha força com o afeto transmitido, por meio de uma família que, mesmo sendo desfuncional, também mostra-se deveras amorosa e completamente aconchegante.
    • Nós - Contando com referências a "O Iluminado" e "Tubarão", "Nós" é um filme de terror rico em sub-textos, que conta com uma atuação fortíssima de Lupita Nyong'o e fortalece, ainda mais, a imagem de Jordan Peele enquanto grande cineasta.
    • Vingadores: Ultimato -  "Vingadores: Ultimato" é o filme de uma geração, marcado por um roteiro capaz de emocionar e empolgar, por um elenco totalmente empenhado e uma direção que entende onde quer chegar, fazendo isso com maestria.
    • A Vida Invisível - "A Vida Invisível" surge como uma obra que valoriza o amor na sua mais pura forma, utilizando de sutilezas do roteiro para fazer uma análise profunda acerca das raízes do patriarcalismo brasileiro.
    • Homem-Aranha no AranhaversoMesmo que aposte no tom lúdico inerente das histórias em quadrinho, "Homem-Aranha no Aranhaverso" aborda questões existenciais sobre relações familiares e exibe, com técnica e visual arrebatadores, a necessidade da representatividade étnica, por meio de um protagonista totalmente carismático e de uma experiência imersiva.




    - João Hippert

    segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

    Crítica de "O Irlandês"

    Falar de Martin Scorsese é falar, possivelmente, do maior diretor da história dos Estados Unidos. Não só pela imensa lista de filmes memoráveis, mas também pela longevidade de sua carreira. É impressionante a forma com que o diretor consegue adaptar a sua linguagem ao tempo em que está inserido, sem perder a sua mão. Se nos anos 1970/1980 o diretor apostava em uma abordagem mais crua e visceral acerca da criminalidade, como vimos em "Taxi Driver", por exemplo, recentemente temos visto propostas bem diferentes do padrão. Basta pegarmos os 5 filmes feitos por Scorsese na década: "Ilha do Medo", "A Invenção de Hugo Cabret", "O Lobo de Wall Street", "Silêncio" e "O Irlandês". Um thriller psicológico, uma aventura infantil, uma comédia totalmente sem escrúpulos, um drama histórico introspectivo e um filme de máfia. Parece que, com a idade, Scorsese tem experimentados os diferentes gêneros cinematográficos e obtendo bastante êxito com isso. Hoje em dia não podemos falar que Scorsese é um excelente diretor de filmes de máfia. Ele tem se mostrado muito além disso. Contudo, quando o diretor em parceria com a Netflix, monta um elenco com Robert De Niro, Joe Pesci, Harvey Keitel e Al Pacino é impossível não termos expectativas altas no que tange o tema máfia. Voltando ao gênero que o consagrou com filmes como "Os Bons Companheiros" e "Os Infiltrados", "O Irlandês" é um retrato da vida de Frank Sheeran (Robert De Niro) e todas as tramas envolvendo política, confiança, traições e violência no submundo da máfia. O filme é narrado em primeira pessoa por Sheeran e adota uma estrutura de flash-backs, onde são contados diversos momentos-chave da presença do personagem entre os mafiosos italianos. É interessante notar como os arcos da narrativa são muito bem definidos e esquematizados. Tendo em vista a duração demasiada longa (são 3 horas e meia de filme), é importante contar com uma montagem ágil e clara, que defina com precisão os diferentes arcos da narrativa. E tudo isso é feito com maestria, de modo que o peso das horas não recaia em momento algum sobre o espectador.

    O roteiro de Steven Zaillian ("Gangues de Nova York", "A Lista de Schindler") é muito hábil em desenvolver, de maneira íntima e introspectiva, o seu protagonista. Através, inicialmente, de uma narração feita em primeira pessoa por um senhor já no fim da vida, o público se vê compadecido com a situação de Frank. É como se estivéssemos sentados na frente de um avô que venha contar uma história de sua juventude. Isso faz com que, desde o princípio, estejamos impelidos a nos envolver emocionalmente com a narrativa, tornando o nosso juízo de valor um pouco mais flexibilizado. Não é que as atitudes de Frank sejam menos condenáveis, porém a forma como fomos apresentados ao personagem nos faz ter um mínimo de empatia com ele. Além disso, um dos grandes pontos altos do filme é a criação de diálogos rápidos e inteligentes entre os personagens. Como "O Irlandês" se preza por retratar os bastidores do poder, conseguimos perceber as minúcias e os detalhes inseridos, paulatinamente, nos diálogos. Repare como ouvimos em um primeiro momento: "Quando os mafiosos dizem que estão um pouco preocupados, isso significa que eles estão muito preocupados". Posteriormente, no ato final da metragem, esse diálogo é relembrado de maneira sutil. Porém, o espectador envolvido com a história já entende o seu significado, justamente por tal rima narrativa. Essas pequenas inserções e detalhes acrescidos dentro do longa engrandecem a experiência à medida que dão, para o espectador atento, pequenas recompensas até o final da jornada. Outro ponto alto é a interessante discussão histórica e política que o filme traz à tona. Ora, poder e política sempre andaram juntos e seria lógico pensar que a máfia teve muito papel em diversos momentos da história política estadunidense. Nesse ínterim, o longa não mede esforços para abordar esse verdadeiro jogo de xadrez, de maneira extremamente didática e que se apresenta como um fiel retrato histórico. Por outro lado, fica evidente que essa habilidade do roteiro em criar situações pertinentes e diálogos marcantes advém do excelente elenco que Scorsese tem nas mãos. Talvez seja até redundante falar isso, mas seria praticamente impossível a reunião de De Niro, Pacino e Pesci não se configurar como o melhor elenco do ano.

    Robert De Niro é o grande centro do filme, conseguindo prover uma atuação bastante contida, que realça o grande peso que o personagem carrega internamente. É como se ele sempre estivesse rodeado pelo caos e tendo que manter a calma. Por isso, demonstra-se um homem frio, metódico, mas que, através dos olhares dóceis para a família e das hesitações em momentos importantes da trama, acabam por conquistar. Al Pacino, por sua vez, cria um Jimmy Hoffa passional e envolvente, em uma clara homenagem de Scorsese à figura. Através de discursos apaixonados e de uma posição extremamente convicta, Al Pacino demonstra-se versátil ao exibir um homem que acredita nos seus ideais e não teme o que isso pode acarretar na sua vida. Por fim, fechando o trio protagonista, temos um Joe Pesci bem mais moderado do que aquele de "Os Bons Companheiros", mas que demonstra um ar de liderança e superioridade através dos seus movimentos sóbrios e pensados. É como se o seu personagem Russel Bufalino sempre tivesse tudo nas mãos, remetendo, de certo modo, ao grande Vito Corleone, de "O Poderoso Chefão". Além deles, o filme conta com participações pontuais de Harvey Keitel e Bobby Cannavale que desempenham bem seus papéis coadjuvantes. Contudo, o que faz realmente "O Irlandês" funcionar é o grande arquiteto por trás disso tudo, capaz de conectar os diferentes elementos cinematográficos em uma obra tecnicamente perfeita. Scorsese, aqui, demonstra, mais uma vez, uma incrível sobriedade com a câmera na mão. Através de planos-sequência e planos longos, o diretor é capaz de criar ambientações incríveis. Todas as escolhas de câmera de Scorsese fazem sentido, o que potencializa ainda mais a narrativa do filme. Explico: não é suficiente que o roteiro estabeleça um diálogo tenso. Também é importante que o diretor saiba focar nas expressões faciais de maneira certa, transitar entre os personagens no tempo correto, além de exibir os detalhes para o espectador no momento devido. A junção dessas coisas é capaz de prover uma experiência muito mais satisfatória. Além disso, Scorsese acerta na escolha das músicas que permeiam a metragem. Sempre estão presentes músicas que remetem ao tempo da narrativa, dando ao longa uma espécie de nostalgia e glamour muito bem vindos. Aqui, diferentemente de seus demais trabalhos relacionados ao tema de criminalidade, Scorsese não aposta numa abordagem da violência crua. A escolha é por um desenvolvimento íntimo dos personagens e de seus dilemas morais, sendo a violência um plano de fundo desse mundo caótico. O foco são as histórias dos protagonistas, e não seus assassinatos. Dessa forma, o filme parece ser uma grande homenagem aos filmes de máfia - tão populares no passado - e (por que não?) uma própria autorreferência à filmografia do diretor.

    Por fim, é interessante analisar o contexto da obra. Trata-se de um filme de 3 horas e meia, que conta com uma produção milionária, atores renomados, e que vai direto para o "streaming" da Netflix. Já ficamos espantados com o que a Netflix foi capaz de fazer com "Roma", o melhor filme de 2018. Mas aqui, porém, o nível é outro. Estamos falando do diretor americano mais consagrado da atualidade retornando ao seu gênero mais familiar. "O Irlandês" representa, de vez, uma incrível capacidade do serviço de "streaming" em apostar em produções originais que atendam aos diversos tipos de público. E, com certeza, a computação gráfica realizada no rejuvenescimento dos personagens foi algo impactante. É claro que o nível da computação não chegou no patamar da completa perfeição, mas, depois de um estranhamento inicial, o espectador consegue tranquilamente imergir naquela história. E pensando que tudo isso acontece em um filme feito somente para o "streaming", percebemos que a era do cinema está, de fato, em transformação. Tendo em vista que as salas de cinema estão cada vez mais preenchidas por "blockbusters" que são, na maior parte das vezes, previsíveis, o cinema em "sreaming" surge como uma possibilidade de exibir filmes como esse para um público mais variado. "O Irlandês" é definitivamente uma combinação de elementos que não teria como dar errado. Um grande estúdio com capacidade de investimento, um grande diretor com liberdade criativa, um roteiro funcional e minucioso e um grande elenco. "O Irlandês" demonstra a força dos serviços em "streaming" ao prover uma película intimista, envolvente e, acima de tudo, tecnicamente perfeita.

    Nota: 

    - João Hippert


    domingo, 22 de dezembro de 2019

    Crítica de "Parasita"

    É interessante notar, sob uma perspectiva um tanto quanto sociológica, que, em determinados momentos da história da humanidade, as diferentes obras de arte convergem na discussão de um mesmo tema. 2019 parece que foi, no cinema, o ano em que se tratou da desigualdade, em seus diversos âmbitos possíveis. Aquela velha máxima de que quanto maior o abismo social existente, maior é a incidência de violência. Uma realidade presente em todo o mundo, desde o nosso tão familiar contexto de subdesenvolvimento até aqueles países ditos desenvolvidos. A percepção interessante de ser ter em relação aos melhores filmes do ano giram em torno disso. No Brasil, por exemplo, fomos presenteados com a obra "Bacurau". Polêmico, violento, metafórico: o filme apresenta diversas camadas interessantes, mas a que parece ser mais evidente é a do grande contexto de desigualdade. Desigualdade esta que chega a criar na mente da classe dominante um sentimento de que o outro é inferior, de alguma forma diferente. Em "Bacurau" vemos isso na maneira nítida que os personagens estadunidenses se dirigem ao interior de Pernambuco para realizar seus desejos mais sórdidos. Enquanto a população de Bacurau busca apenas manter sua vida pacata, o desejo dos americanos é de dominar e tratar aquela população de maneira completamente desumanizada. A desigualdade aqui seria justamente entre os países detentores do capital e aqueles que acabam servindo como fantoche para as grandes potências econômicas. Outro filme marcante no ano é "Coringa". O longa de Todd Phillips aborda a questão no tratamento que a sociedade dá a um doente mental. A desigualdade aqui reitera a não-aceitação ao diferente e demonstra o que a falta de oportunidades pode fazer.

     A comparação temática entre os dois filmes citados (nota-se que um é brasileiro e outro é hollywoodiano) nos faz chegar a "Parasita". Vencedor da Palma de Ouro em Cannes, o filme sul-coreano aborda o cotidiano da família Kim, que mora no subúrbio da cidade, sem uma renda fixa. Isso muda quando o filho Ki-woo consegue o emprego de professor particular na casa de uma família rica - a família Park - e busca inserir os seus próprios entes naquele contexto. O grande mérito do roteiro de Bong Joon Ho e Jin Won Han é trabalhar de maneira inteligente com o elemento surpresa. O filme é repleto de reviravoltas surpreendentes que alteram completamente o rumo da história. Mesmo assim, tais "twists" apresentam razão de ser; eles engrandecem a riqueza da narrativa. Isso se dá também pela preocupação do roteiro em humanizar os personagens, dando camadas interessantes a eles. Inicialmente, somos impelidos a gostar da família Kim pela simplicidade com que levam a vida. Não chega a ser uma "glamourização" da pobreza, mas o carisma com que a família é apresentada é fundamental para que torçamos para o seu sucesso. Repare que, inicialmente, o filho tem suas dúvidas quanto a dar a aula particular por não estar na faculdade. A solução encontrada é a de falsificar o documento. O interessante de notar, no entanto, é o discurso do rapaz ao sair de casa: "Isso aqui é temporário. No ano que vem estarei cursando uma faculdade de verdade". Essa pequena flexibilização moral abre caminho para os diversos acontecimentos que virão na história, mas é interessante notar como o filme aborda toda essa questão social. Assim como "Coringa" não ameniza a crítica aos comportamentos doentios do seu protagonista, "Parasita" também não o faz. Mas, ao mesmo tempo, ele apresenta, de maneira clara, que o jogo não é justo e, através desses pequenos dilemas morais, coloca o espectador para pensar: "Será que eu não agiria da mesma forma sob essas circunstâncias?".

     Outro grande mérito do "script" é retratar a família Park da maneira mais dócil possível, fugindo de uma possível construção maniqueísta. Ora, o filme trata justamente da dicotomia entre uma família pobre e que busca emprego formal para melhorar suas condições e uma família rica, que já tem tudo nas mãos. Entretanto, essa família rica é tratada de forma muito gentil: todos parecem tranquilos, pessoas que tratam o outro de maneira digna. Assim, a crítica que "Parasita" faz é muito mais contundente, já que não fica limitada a um contexto em si. A família Park é produto de um contexto desigual que cria tais situações, mas não tem culpa por isso. Essa inversão da lógica maniqueísta é extremamente positiva para a trama e acrescenta sub-textos deveras interessantes. Ademais, a direção de Bong Joon Ho ("O Hospedeiro", "Expresso do Amanhã") também é um ponto alto do filme. Ele é capaz de criar situações através do movimento de câmera que demonstram uma técnica muito refinada. Apesar de todo esse contexto social em que "Parasita" está inserido, ainda estamos falando de um filme que, na maior parte do tempo, flerta com o suspense. Desse modo, as diversas escolhas narrativas feitas ao longo da metragem necessita de uma direção bastante segura a fim de que as emoções tiradas do espectador sejam certeiras. E isso é feito com maestria, já que "Parasita" consegue ser tenso na maior parte do tempo, além de prender a atenção durante toda a projeção. Além disso, o diretor conta com a ajuda de uma mixagem de som e uma montagem que engradecem a obra, deixando a história mais fluida. "Parasita" é um filme enérgico quando precisa, mas também não se exime de ter a calma necessária para apresentar os personagens. Isso tudo é feito por meio de diálogos muito bem escritos que, em nenhum momento, pesam para a exposição gratuita. O espectador consegue identificar as relações em tela através das pequenas falas cotidianas de cada um. Isso é um mérito muito grande, afinal trata o público de maneira inteligente e deixa tudo mais palpável.

    Por fim, chegamos a uma discussão a respeito do título. No final das contas, quem é o parasita? Seriam os membros da família Kim por tentarem enganar os Park? Ou o título trata da intensa desigualdade que faz com que as relações humanas sejam um verdadeiro contraste entre hospedeiro e parasita? Aqui, é interessante notar que não existe apenas um resposta correta. "Parasita" é um filme que faz pensar justamente por deixar muitas reflexões no ar. E estas são acompanhadas por um roteiro envolvente, uma direção segura e um elenco afiadíssimo. Não é por um acaso que o filme está cotado para as grandes premiações da temporada: "Parasita" é, de fato, muito bom. Contando com um sub-texto social marcante, o longa sul-coreano é uma experiência altamente imersiva, tensa, reflexiva, configurando-se como um dos melhores filmes do ano.

    Nota: 

    - João Hippert

    quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

    Crítica de "A Vida Invisível"

    Uma constatação óbvia para qualquer cinéfilo e que gosta de discorrer acerca da sétima arte é a de que filmes bons aquecem o coração. A experiência de assistir um filme, por si só, já é um deleite, um refúgio. É o momento de se desconectar da realidade e viver uma história nova, diferente. Nem sempre, contudo, essas experiências são completamente satisfatórias. Mas quando são... Talvez seja o ápice para os amantes do cinema: sair da sala e ter a certeza, naquele exato momento, de que acabara de assistir algo especial. Assim, ver um filme genuinamente bom é uma experiência marcante, uma satisfação quase que instantânea. Dito isso, eu gostaria de acrescentar que, quando isso acontece por um filme nacional, a sensação é ainda mais poderosa. Vivemos em um país que, pouco a pouco, vai acabando com as oportunidades culturais, principalmente para as camadas mais pobres. No quesito cinema, isso é claro: o paradigma é de extinção das salas de cinema de rua, e uma maior inserção nos shoppings, onde o ingresso é mais caro e o público mais elitizado. Ao mesmo tempo, tais salas são dominadas pelas grandes produções hollywoodianas que acabam por, praticamente, monopolizar as sessões. Aqui é válido ressaltar que a discussão não é concernente à qualidade dessas obras ("Vingadores: Ultimato" é um dos meus filmes preferidos do ano, por exemplo), mas sim ao seu amplo domínio. É cada vez mais difícil ter acesso aos filmes feitos no nosso próprio país, ainda mais levando em conta a efervescência política que rodeia as nossas produções. Quando "Bacurau" se apresentou nesse ano, o mundo dos cinéfilos parou. Arrebatador, crítico, reflexivo: todos os ingredientes que o público brasileiro necessitava diante desse contexto. Depois desse choque, "A Vida Invisível" chega para emocionar, acalentar e nos transportar para uma história simples, mas que diz muito sobre o Brasil.

    A sinopse resumida da obra é a de que se trata de uma história de duas irmãs, Eurídice e Guida, que moram no Rio de Janeiro ao final dos anos 1950. Por consequências de suas escolhas, as irmãs são separadas e buscam, de alguma forma, retomar o contato. O roteiro de Murilo Hauser é um daqueles que busca, através das nuances narrativas, explorar os temas relevantes para a história. Assim, a narrativa principal assume o papel de plano de fundo para uma verdadeira imersão na vida carioca do final dos anos 50. Como a história acompanha duas personagens femininas, o machismo enraizado na sociedade brasileira é perceptível desde o princípio. O filme brilha em abordar esse tipo de comportamento reiterado de forma a deixar o público incomodado. O brilhantismo está, justamente, na falta de radicalismo. Explico: o roteirista optou por não "demonizar" a figura de nenhum personagem em específico. Por exemplo: o personagem de Gregório Duvivier se mostra como um verdadeiro retrato de seu tempo. Ele tem uma concepção patriarcal da família, mas em nenhum tempo se mostra exagerado ou agressivo quanto a isso. Um filme que não fosse tão perspicaz talvez utilizasse do seu personagem para ser uma espécie de "vilão", o que poderia, até mesmo, diluir a crítica social proposta pelo filme. Apesar disso, os comportamentos pelos diferentes personagens ao longo da metragem demonstram como tal tipo de visão a respeito do papel da mulher na sociedade é algo estrutural. E, mesmo que o filme trate de tempos remotos, fica visível a permanência de certas atitudes que já deveriam ser erradicadas há muito tempo, mas que ainda persistem na sociedade brasileira. Dessa forma, "A Vida Invisível" se torna importante, também, do ponto de vista histórico para demonstrar, de maneira muito verdadeira, os hábitos e comportamentos machistas por parte de toda a sociedade, como forma de tirar um pouco do "glamour" que os livros de história costumam dar a esse período.

    A direção de Karim Aïnouz também segue nessa linha ao tornar a experiência mais impactante para o espectador. O ritmo do filme é muito bem orquestrado: isso também se dá pela ótima trilha sonora que permeia a maioria dos acontecimentos da história e dão uma certa suavidade ao enredo. Mas talvez o grande mérito de Karim é conseguir potencializar os sentimentos do espectador, ao longo de toda a metragem. Como já dito, o tratamento desigual é algo que incomoda durante toda a projeção. Contudo, as relações entre as personagens possuem uma força tão grande que acabam se tornando o grande cerne do filme. O amor entre as irmãs, a admiração, a dificuldade de ser quem você é em um ambiente discriminatório: tudo isso amplifica o sentimento de empatia no público e o consequente apego com a narrativa. Do início ao fim somos impelidos a torcer pelo sucesso de Eurídice e Guida, mesmo sabendo que as chances não são muito favoráveis. Isso se dá pela sinceridade pelo qual o amor entre elas é transmitido. Acaba que esse sentimento fraternal tão único talvez seja um dos poucos elos que nos identificam com tantas histórias diferentes ao longo da vida. E o mérito do diretor em passar isso de maneira honesta, delicada, mas também brutal torna "A Vida Invisível" uma das obras mais emocionantes do ano. Além disso, o tema "família" também é muito debatido. Começamos o longa na casa de um casal de portugueses, extremamente tradicionais, e suas duas filhas. Somente ali já conseguimos identificar o padrão de família tradicional brasileira: arraigado a valores morais e religiosos que talvez perpassam a felicidade dos próprios indivíduos da família. Essa crítica, de certo modo sutil, vem à tona quando entendemos a jornada de Guida, principalmente, na construção de uma nova família. Família esta que não tem nenhuma das características tradicionais, mas que é pautada no amor e no cuidado com o outro. Talvez uma das grandes mensagens do filme seja justamente essa: podemos encontrar família nos lugares mais improváveis. A poesia desse tipo de afirmativa impressiona.

    Por fim, é impossível não sentir o impacto que o título do longa traz consigo. A invisibilidade está justamente na luta das duas irmãs para alcançarem seus sonhos. Desde os anseios mais básicos até os sonhos mais distantes, como o de ser um grande pianista, por exemplo; tudo parece ter um peso diferente para elas. É como se elas tivessem que correr atrás não só dos seus objetivos, mas pela sua própria voz e visibilidade. Essa força narrativa é o grande charme por trás de "A Vida Invisível". E é claro que todo esse mérito também perpassa pelo excelente trabalho da dupla de protagonistas: Julia Stockler e Carol Duarte. Elas são hábeis em transmitir as emoções de maneira genuína, sendo capazes, inclusive, de delimitar de maneira perfeita o tempo em que estão inseridas através de gestos e expressões da época. Mesmo que as atrizes não tenham uma carreira consolidada até aqui, a confiança com que elas carregam a metragem é digna de muito reconhecimento. Por fim, quanto ao elenco, é impossível não citar a participação de Fernanda Montenegro. É impressionante a quantidade de emoção que ela é capaz de transmitir apenas com o olhar. A cena em que ela lê uma carta é uma das cenas mais impactantes que vi no ano. Sua presença vem para coroar um excelente trabalho do elenco. Aliás, é muito bom perceber que os diferentes âmbitos cinematográficos são tratados com muito esmero, o que eleva ainda mais a qualidade da  obra. Não é à toa que "A Vida Invisível" pode ser o representante do Brasil no Oscar de filme estrangeiro e não seria surpresa se fosse indicado. Trata-se de uma obra que trata da discriminação - um tema universal e que vem se mostrado cada vez mais atual. "A Vida Invisível" surge como uma obra que valoriza o amor na sua mais pura forma, utilizando de sutilezas do roteiro para fazer uma análise profunda acerca das raízes do patriarcalismo brasileiro.

    Nota: 

    - João Hippert