domingo, 24 de março de 2019

Crítica de "Nós"

Uma das melhores sensações que um cinéfilo pode ter ao assistir a uma película no cinema é a sensação de estar acompanhando algo inédito, original e bem trabalhado, em seus mínimos detalhes. Talvez, em meio a tantos desastres recentes, esse tipo de sensação aqueça o coração daquele que considera o cinema mais do que um mero entretenimento, mas como parte da vida e, (por que não?), como motivo de deleite intelectual. "Nós" chega às telonas brasileiras com o estigma de clássico recente, por ser uma obra totalmente original, além de muito bem executada na parte técnica. A notícia de que o longa se tornou a maior estréia do cinema de terror estadunidense da história é ótima, justamente, pelo momento sociopolítico conturbado sob o qual o mundo está inserido atualmente, além de valorizar a importância do cinema de horror enquanto crítica. Contudo, o sucesso de "Nós" não depende só do próprio filme enquanto realização cinematográfica, mas sim como parte do início de uma carreira cinematográfica que beira o brilhantismo. Jordan Peele, recentemente, nos presenteou com o excelente "Corra!" - filme que também aposta no terror psicológico para uma crítica social. Ali, porém, os elementos estavam bem claros e, talvez devido a um excesso de explicações, o ato final perde um pouco de seu impacto. Diferentemente de "Nós", que se mostra impactante no cerne da palavra - e o fato de um filme ser capaz de incomodar tanto apenas com o uso de metáforas é louvável. O longa acompanha a família de Adelaide (Lupita Nyong'o), em uma viagem à casa de veraneio. Subitamente, as coisas parecem fugir do controle à medida que a família começa a ser perseguida por sósias sinistros, e o clima de tensão se acentua gradativamente.

O roteiro de Jordan Peele impressiona por conseguir criar diversas camadas de interpretação, ao mesmo tempo que funciona em sua camada mais superficial. Explico: muitas vezes um filme se vende por uma ideia totalmente metafórica, repleta de símbolos; porém só funciona à proporção que o público entenda tais referências. Aqui, mesmo que "Nós" proponha uma discussão aprofundada acerca de diversos temas - inclusive transcendentais -, o filme funciona como uma "simples" história de terror, em que uma família está fugindo de um perigo. Nesse sentido, Peele acerta em criar uma das personagens mais multifacetadas do milênio: Adelaide. Trata-se de uma mulher extremamente dúbia, afetada por fantasmas do passado e que está sempre em alerta, com medo de possíveis ameaças. O roteiro acerta na composição da personagem, já que as informações de seu passado são inseridas de maneira gradual, contribuindo para que Lupita apresente a personagem de sua maneira. Aliás, não é de se exagerar dizer que a atriz faz um dos trabalhos mais impressionantes do ano - tanto na esfera física quanto na psicológica. É sempre difícil incorporar duas personagens (ainda mais quando as duas são, em tese, a mesma pessoa), mas Lupita consegue acrescentar camadas às duas que as diferenciam, ao mesmo tempo que existe sempre um padrão que permite a identificação. Embora a personagem sósia seja uma espécie de vilã do longa, é muito difícil ter total aversão à ela, devido à forte presença da atriz. O público não torce para ela, mas também não consegue odiá-la. Muito porque, em aliança a isso, a história por trás do longa siga um conceito interessantíssimo de ser explorado -  e que não reside apenas na frase "o nosso maior  inimigo é a gente mesmo". O buraco está cada vez mas embaixo.

Isso decorre do fato de que os símbolos utilizados por Peele intercalam diferentes sub-textos. Desde uma temática mais religiosa e transcendental, com a inserção de elementos como o número 11 (ideal de perfeição) e uma passagem da Bíblia até uma crítica social bruta, que trata da desigualdade social (repare como as letras do filme "Us" formam as siglas do nome do país "United States"). Tudo que é apresentado em tela possui uma razão de existir, e é mediado por um excelente trabalho de direção por parte do próprio Jordan Peele. Ainda que "Corra!" tenha uma direção segura e capaz de intercalar os momentos de tensão e comédia, aqui o diretor demonstra uma maturidade tremenda, com movimentações de câmera extremamente fluidas e direcionadas ao objetivo do filme. No quesito de tom, Peele é capaz de alternar - de maneira natural - os diferentes momentos de comédia, ação e tensão. Ao mesmo tempo que "Nós" faz rir por meio de "gags" inusitadas (a cena que conta com NWA é hilária), o filme assusta com cenas simplesmente de arrepiar - no sentido mais literal da palavra. O diretor consegue aliar elementos clássicos do terror, mas não deixa de inovar na criação de situações propícias para o desenvolvimento da história enquanto narrativa. É impossível deixar de reconhecer, também, as qualidades técnicas da obra, com destaque para a fotografia estonteante, capaz de criar, através da paleta de cores, rimas visuais fortíssimas. Além do visual, a trilha sonora destoante é eficiente na condução do ritmo do longa e potencializa todas as cenas de impacto. "Nós" é um filme que depende muito das suas camadas de roteiro e de seu elenco, porém a sua direção segura facilita com que tais elementos tenham mais destaque.

Por fim, é impossível sair de "Nós" sem algum tipo de reação: choque, medo, impacto, revolta. A junção dos diversos elementos simbólicos consegue prover uma experiência cinematográfica singular. Se em 2017 ficamos impactados com o que "Mãe!" tinha pra nos dizer, em 2019 não sabemos direito o que pensar do filme, justamente por sua ampla possibilidade de interpretações. Mesmo assim, aqui vai a mais contundente que pensei até agora (spoilers à frente): o filme fala, justamente, do ideal de igualdade. Somos todos iguais, portanto deveríamos ter as mesmas oportunidades. Mas aqui, existe um grupo seleto que tem sua vida subjugada por um ente superior hierarquicamente (Deus? Estado?). Dessa forma, apesar dos personagens serem iguais (no sentido literal da palavra), existe um distanciamento quanto ao meio (algo que remonta à ideia de determinismo). E o fato das sósias não conseguirem se expressar por meio da palavra não é à toa: aquele tipo de pessoa não tem voz naquele universo. E a citação do trecho da Bíblia "Jeremias 11,11" faz total sentido porque infere justamente essa incapacidade de Deus de ouvir os anseios de uma população que não tem voz ("Portanto assim diz o Senhor: Eis que trarei mal sobre eles, de que não poderão escapar; e clamarão a mim, mas não os ouvirei."). Tratando do cinema de Jordan Peele, tal interpretação, de caráter sociológico, traz, em seu cerne, todo o processo de colonização e posterior escravização que faz parte da história estadunidense. É por isso que, quando os sósias são perguntados sobre quem são, eles respondem "Nós? Nós somos americanos". Justamente, um país onde pessoas conseguem ter uma vida digna em meio a um abismo social (e é válido ressaltar a temática negra em volta do filme devido ao apelo que Peele consegue colocar em seus filmes). Ainda que a crítica seja ao sistema social como um todo, Peele nunca deixa de demonstrar certos comportamentos racistas que, infelizmente, ainda perduram na sociedade. Contando com referências a "O Iluminado" e "Tubarão", "Nós" é um filme de terror rico em sub-textos, que conta com uma atuação fortíssima de Lupita Nyong'o e fortalece, ainda mais, a imagem de Jordan Peele enquanto grande cineasta.

Nota: 

- João Hippert

sexta-feira, 8 de março de 2019

Crítica de "Capitã Marvel"

A última década foi dominada pelos filmes de herói e é impossível não reconhecer o protagonismo da Marvel nesse âmbito. Começando com o excelente "Homem de Ferro", em 2008, o estúdio vem lançando de 2 a 3 filmes por ano desde então. Porém, o que é mais curioso nisso tudo é que, mesmo depois de tantos filmes, o estúdio foi conservador a ponto de não trazer nenhum longa com protagonista feminina anteriormente. A Marvel aparentemente embarcou no embalo do sucesso de "Mulher Maravilha" - um dos poucos acertos da concorrente nos últimos anos - para produzir o seu primeiro longa protagonizado por uma heroína. E o resultado? Bem, poderia ter sido bem mais satisfatório. O longa acompanha Carol Danvers (Brie Larson) na sua jornada de autoconhecimento, de descoberta de seu próprio passado e de controle dos poderes. Nesse sentido, o longa remete muito à estrutura clássica dos filmes de apresentação de heróis da Marvel: todos os conflitos são bem delimitados, não deixando espaço para grandes reviravoltas. Contudo, isso por si só não prejudica o filme: muito pelo contrário. O grande problema do roteiro é sua necessidade de grandiloquência - algo recorrente nos filmes do subgênero -, tendo em vista que a apresentação da Capitã Marvel para o grande público não precisa implicar necessariamente em uma guerra interplanetária. Aliado ao fato de que o filme se passa nos anos 1990, logo já sabemos das consequências daquilo que a história mostra, o clímax se demonstra muito artificial e pouco empolgante. O uso dos clichês nessa parte é feito em demasia e os "fan services" são completamente desnecessários e até desmistificam um pouco a áurea misteriosa de alguns fatos do MCU (algo que lembra bastante o fracasso que foi feito no filme do Han Solo).

O que mais decepciona em "Capitã Marvel" é a sua primeira metade que se demonstra muito eficiente. A apresentação da personagem é feita de forma fluida, assim como a sua relação com o personagem Nick Fury (Samuel L. Jackson). Aliás, um dos grandes acertos do roteiro está justamente no desenvolvimento da relação entre os dois personagens, e a química é visível. Sem nunca apelar para a comédia escrachada, a dupla remete aos clássicos personagens de filmes de "tira", o que dá um tom bastante interessante para essa parte da metragem. Além disso, a descoberta de Carol  acerca do seu passado e das suas responsabilidades também é bem crível: Briel Larson consegue prover um alcance emocional elevadíssimo, tornando todo o drama em torno da protagonista extremamente mais tocante. Por outro lado, Brie Larson, mesmo que possua todas as características de uma excelente atriz, peca em um aspecto crucial: o carisma. Nesse ínterim, a comparação com Gal Gadot é inevitável. Embora seja uma atriz de menor calibre do que a vencedora do Oscar Brie Larson, Gal Gadot possui uma energia incrível e cativante. Ela simplesmente é a Mulher-Maravilha, compra os ideais da personagens e exerce um papel que transcende à sala de cinema. Brie Larson, no entanto, apesar de possuir o já citado alcance dramático, não consegue prover uma atuação tão carismática a ponto de fazer o espectador imergir naquela história e comprar aquela personagem. Isso se faz problemático em um filme de heroína, pois tira o espectador da empolgação inerente à história, provocando uma quebra de ritmo prejudicial.

Ademais, o ritmo também demonstra defeitos, à medida que a direção de Anna Boden e Ryan Fleck se mostra ineficiente nas cenas de ação. Tratando-se de um filme de heroína, um dos grandes cuidados da direção deve ser localizar bem o espectador nos ambientes físicos das lutas e perseguições - o que não acontece. Tudo aqui é basicamente jogado na tela, e a coreografia não ajuda. Ainda que a fotografia apresente belos momentos e alguns enquadramentos soem absolutamente memoráveis, a constante confusão das cenas de ação promove uma sensação desgostosa no público, e mais enjoa do que empolga. Configura-se, dessa forma. como outra decisão errada da direção como um todo, já que as cenas baseadas em diálogo e em apresentação de conflito são muito boas. O que fica quase nítido ao fim da metragem é que "Capitã Marvel" é um filme feito às pressas, que seguiu uma onda recente promovida pela DC. Embora tenha uma base sólida e com potencial de ser um dos grandes filmes da Marvel, o filme se limita a seguir clichês preestabelecidos, contando com um ritmo final que deixa um gosto amargo no espectador. É mesmo um daqueles filmes que o final deixa tanto a desejar que chama muito mais a atenção do que o início promissor - e isso deve ser pontuado. Afinal, "Capitã Marvel" não pode ser encarado apenas como mais um filme da Marvel, haja vista seu grande apelo sociocultural, no que tange à representatividade feminina.

Por um lado, temos finalmente uma heroína da Marvel sendo protagonista de um filme solo. Por outro, temos um filme mediano. Como colocar essas duas coisas na balança? "Capitã Marvel" tem um papel social muito mais relevante do que a sua própria qualidade artística em si, o que é uma pena. Tratando-se de um filme que trata do empoderamento e da representatividade, a mensagem é muito mais bem aceita quando colocada em uma obra tratada com carinho e que saiba aonde quer chegar. Mas, aqui, vemos um filme esburacado, com um roteiro com alguns momentos de inspiração, mas com uma direção totalmente desequilibrada. Ainda assim, enxergando o MCU como um todo, "Capitã Marvel" tem seus méritos enquanto parte do universo, por apresentar fatores importantes para a resolução de "Vingadores: Ultimato" - ainda que seja muito pouco frente ao potencial da metragem. Entre erros e acertos, "Capitã Marvel" se distancia dos recentes sucessos "Mulher-Maravilha" e "Pantera Negra", se mostrando um filme irregular, ainda que com uma temática importantíssima.

Nota: 

- João Hippert