O roteiro de Jordan Peele impressiona por conseguir criar diversas camadas de interpretação, ao mesmo tempo que funciona em sua camada mais superficial. Explico: muitas vezes um filme se vende por uma ideia totalmente metafórica, repleta de símbolos; porém só funciona à proporção que o público entenda tais referências. Aqui, mesmo que "Nós" proponha uma discussão aprofundada acerca de diversos temas - inclusive transcendentais -, o filme funciona como uma "simples" história de terror, em que uma família está fugindo de um perigo. Nesse sentido, Peele acerta em criar uma das personagens mais multifacetadas do milênio: Adelaide. Trata-se de uma mulher extremamente dúbia, afetada por fantasmas do passado e que está sempre em alerta, com medo de possíveis ameaças. O roteiro acerta na composição da personagem, já que as informações de seu passado são inseridas de maneira gradual, contribuindo para que Lupita apresente a personagem de sua maneira. Aliás, não é de se exagerar dizer que a atriz faz um dos trabalhos mais impressionantes do ano - tanto na esfera física quanto na psicológica. É sempre difícil incorporar duas personagens (ainda mais quando as duas são, em tese, a mesma pessoa), mas Lupita consegue acrescentar camadas às duas que as diferenciam, ao mesmo tempo que existe sempre um padrão que permite a identificação. Embora a personagem sósia seja uma espécie de vilã do longa, é muito difícil ter total aversão à ela, devido à forte presença da atriz. O público não torce para ela, mas também não consegue odiá-la. Muito porque, em aliança a isso, a história por trás do longa siga um conceito interessantíssimo de ser explorado - e que não reside apenas na frase "o nosso maior inimigo é a gente mesmo". O buraco está cada vez mas embaixo.
Isso decorre do fato de que os símbolos utilizados por Peele intercalam diferentes sub-textos. Desde uma temática mais religiosa e transcendental, com a inserção de elementos como o número 11 (ideal de perfeição) e uma passagem da Bíblia até uma crítica social bruta, que trata da desigualdade social (repare como as letras do filme "Us" formam as siglas do nome do país "United States"). Tudo que é apresentado em tela possui uma razão de existir, e é mediado por um excelente trabalho de direção por parte do próprio Jordan Peele. Ainda que "Corra!" tenha uma direção segura e capaz de intercalar os momentos de tensão e comédia, aqui o diretor demonstra uma maturidade tremenda, com movimentações de câmera extremamente fluidas e direcionadas ao objetivo do filme. No quesito de tom, Peele é capaz de alternar - de maneira natural - os diferentes momentos de comédia, ação e tensão. Ao mesmo tempo que "Nós" faz rir por meio de "gags" inusitadas (a cena que conta com NWA é hilária), o filme assusta com cenas simplesmente de arrepiar - no sentido mais literal da palavra. O diretor consegue aliar elementos clássicos do terror, mas não deixa de inovar na criação de situações propícias para o desenvolvimento da história enquanto narrativa. É impossível deixar de reconhecer, também, as qualidades técnicas da obra, com destaque para a fotografia estonteante, capaz de criar, através da paleta de cores, rimas visuais fortíssimas. Além do visual, a trilha sonora destoante é eficiente na condução do ritmo do longa e potencializa todas as cenas de impacto. "Nós" é um filme que depende muito das suas camadas de roteiro e de seu elenco, porém a sua direção segura facilita com que tais elementos tenham mais destaque.
Por fim, é impossível sair de "Nós" sem algum tipo de reação: choque, medo, impacto, revolta. A junção dos diversos elementos simbólicos consegue prover uma experiência cinematográfica singular. Se em 2017 ficamos impactados com o que "Mãe!" tinha pra nos dizer, em 2019 não sabemos direito o que pensar do filme, justamente por sua ampla possibilidade de interpretações. Mesmo assim, aqui vai a mais contundente que pensei até agora (spoilers à frente): o filme fala, justamente, do ideal de igualdade. Somos todos iguais, portanto deveríamos ter as mesmas oportunidades. Mas aqui, existe um grupo seleto que tem sua vida subjugada por um ente superior hierarquicamente (Deus? Estado?). Dessa forma, apesar dos personagens serem iguais (no sentido literal da palavra), existe um distanciamento quanto ao meio (algo que remonta à ideia de determinismo). E o fato das sósias não conseguirem se expressar por meio da palavra não é à toa: aquele tipo de pessoa não tem voz naquele universo. E a citação do trecho da Bíblia "Jeremias 11,11" faz total sentido porque infere justamente essa incapacidade de Deus de ouvir os anseios de uma população que não tem voz ("Portanto assim diz o Senhor: Eis que trarei mal sobre eles, de que não poderão escapar; e clamarão a mim, mas não os ouvirei."). Tratando do cinema de Jordan Peele, tal interpretação, de caráter sociológico, traz, em seu cerne, todo o processo de colonização e posterior escravização que faz parte da história estadunidense. É por isso que, quando os sósias são perguntados sobre quem são, eles respondem "Nós? Nós somos americanos". Justamente, um país onde pessoas conseguem ter uma vida digna em meio a um abismo social (e é válido ressaltar a temática negra em volta do filme devido ao apelo que Peele consegue colocar em seus filmes). Ainda que a crítica seja ao sistema social como um todo, Peele nunca deixa de demonstrar certos comportamentos racistas que, infelizmente, ainda perduram na sociedade. Contando com referências a "O Iluminado" e "Tubarão", "Nós" é um filme de terror rico em sub-textos, que conta com uma atuação fortíssima de Lupita Nyong'o e fortalece, ainda mais, a imagem de Jordan Peele enquanto grande cineasta.
Nota:
- João Hippert