quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Top 10: Filmes 2017

2017 foi um ano excepcional para os cinéfilos brasileiros. Os diversos gêneros cinematográficos foram presenteados com obras inesquecíveis. Venho aqui listar o que de melhor vi nas telonas brasileiras no ano de 2017 (vale lembrar que só considero os filmes lançados comercialmente no Brasil em 2017. Assim, alguns filmes têm data de produção de 2016). Começando pelas menções honrosas, a temporada de premiação desse ano nos presenteou com alguns bons filmes, tais como o impactante drama Manchester à Beira Mar, o surpreendente coreano A Criada, o substancial drama adolescente Quase 18 e o ótimo documentário Beatles: Eight Days a Week. 2017 também foi mais um ano de brilhantismo dos estúdios Disney, com a importante animação Moana e a digna refilmagem de A Bela e a Fera. Na disputa anual entre Marvel e DC, o melhor de cada estúdio tem qualidade equiparada. Enquanto Mulher-Maravilha aposta no carisma de sua protagonista e no peso de suas decisões, Guardiões da Galáxia Vol II amplia o universo da franquia através de alívios cômicos certeiros e uma narrativa simples, porém eficaz. Ambos são ótimo entretenimento. Continuando com os grandes lançamentos, It: A Coisa demonstrou uma incrível capacidade de construção de universo, configurando-se como o melhor terror do ano. Abaixo dele está o terror psicológico Corra, repleto de sub-textos sociais extremamente atuais. Por outro lado, o melhor filme de ação do ano é Em Ritmo de Fuga que apresenta uma montagem exemplar, além de uma trilha sonora de extrema qualidade. Stephen Chbosky acerta no tom ao conceber um filme "família" com lições edificantes em "Extraordinário". Partindo para as obras de grandes diretores, merecem destaque "Silêncio" - filme em que Martin Scorsese exibe sua visão contemplativa acerca da fé e das inquietude humana - e "Roda Gigante": filme típico de Woody Allen, cujo roteiro acerta ao desenvolver uma crescente de tensão e diálogos niilistas (destaque também para a primorosa atuação de Kate Winslet). Finalizando as menções com o cinema nacional, os longas que merecem destaque são o ótimo retrato histórico da Inconfidência Mineira presente em Joaquim, a leveza na linguagem utilizada em O Filme da Minha Vida e seu deleite visual, além da estupenda cinebiografia Bingo - O Rei das Manhãs, que subverteu completamente todos os clichês do gênero. Eis, portanto, os 10 melhores filmes de 2017:

  • Blade Runner 2049 - "Blade Runner 2049" é um filme profundamente reflexivo, que através de ritmo seguro e roteiro circular, questiona o espectador acerca do que é ser humano. E o mais angustiante? Parece que não temos a resposta.
  • La La Land: Cantando Estações -  A cinematografia de Chazelle impressiona, assim como sua habilidade para construir rimas narrativas, que ajudam Ryan Gosling e Emma Stone a apresentarem atuações inesquecíveis. 
  • Mãe! - "Mãe!" é um filme inteligente, perturbador, angustiante, quebrador de paradigmas, que se apresenta com um ritmo extremamente fluido, devido à sua montagem competente e ao excelente trabalho de câmera do diretor, além de ser completamente visceral e contar com uma dupla de protagonistas em excelente forma.
  • Logan -  O roteiro introspectivo, a direção limpa e apreensiva, as atuações viscerais e emocionantes tornam "Logan" um dos melhores filmes de super-herói já feitos.
  • Moonlight: Sob a Luz do Luar"Moonlight" tem a coragem necessária de desenvolver a descoberta da homossexualidade no subúrbio norte-americano, servindo como pretexto para uma magnífica jornada de autoconhecimento e crítica social.
  • Star Wars: Os Últimos Jedi -  São 2 horas e 32 minutos de pura magia, nostalgia e emoção. Chega na parte final do filme, em seu clímax, e o único sentimento remanescente é o desejo de ficar um pouco mais naquele universo tão aconchegante.
  • Sete Minutos Depois da Meia-Noite -  Fugindo de perspectivas deterministas (tão presentes no mundo atual), o longa aborda profundamente a concepção platônica do ser, fazendo o público refletir acerca das verdades irrefutáveis que temos que engolir e refletindo sobre a famosa questão: "o que faz o ser humano ser humano?;
  • Com Amor, Van Gogh - “Com Amor, Van Gogh”, através do uso perfeito das técnicas da animação pintada à mão, presta uma grande referência ao grande pintor, embora as qualidades técnicas e artísticas transcendam ao servirem como plano de fundo para uma bela narrativa.
  • Eu, Daniel Blake - Ken Loach consegue realizar um trabalho extremamente reflexivo, dotado de inúmeras camadas e sub-textos que dão consistência a uma obra crítica e imprescindível.
  • Dunkirk - Ao retratar os personagens de forma extremamente sensível e humanizada, o apego do público é muito intenso, o que contribui para o excelente andamento do longa. "Dunkirk" apresenta inúmeros aspectos técnicos que merecem exaltação, mas é o retrato de Nolan acerca do homem comum na guerra que torna o filme tão especial.
- João Hippert



sábado, 23 de dezembro de 2017

Crítica de "Com Amor, Van Gogh"

Vincent Van Gogh é, possivelmente, o maior artista de todos os tempos. Situado na época do pós-impressionismo, o holandês passava para suas telas o sentimento de desconcerto intrínseco à sua alma. Como todo grande gênio, Van Gogh tinha dificuldades de relacionamento , principalmente, devido às suas alucinações que os faziam procurar por ajuda. A mais famosa delas, por exemplo, foi a orelha cortada que é, infelizmente, o que a maioria das pessoas sabe sobre o artista. A genialidade dele, todavia, vai muito além da capacidade de expressar suas contradições na tela de forma genuína. Vincent Van Gogh era um pintor auto-didata cuja carreira teve início depois da vida adulta. Além disso, a sua forma de distorção da realidade exterior como forma de retratar sua angústia foi o ponto de partida para muitos pintores expressionistas subsequentes, fato que dá à Van Gogh o título de “pai da arte moderna”.

É nesse contexto que surge a animação “Loving, Vincent”. Note como o título original da obra busca retratar o pintor de forma mais íntima, mais humana, se afastando do peso que o sobrenome carrega (equivocadamente a tradução brasileira desfaz esse papel). A própria escolha do título elucida a proposta do filme em buscar compreender as aflições de um gênio. O filme é um verdadeira “road-movie” acerca dos momentos derradeiros da vida do pintor, mas isso nunca fica estafante. É perceptível como o roteiro, ao apresentar diversos personagens da vida de Vincent, consegue desenvolver o pensamento de cada um relação a ele, demonstrando como o convívio com uma pessoa fora de série afeta as pessoas. Nesse ínterim, “Com Amor, Van Gogh” é muito mais universal do que aparental. Afinal, o brilhantismo, ao mesmo tempo que atrai admiração, incita ódio. Os roteiristas compreendem isso e, pela abordagem feita em relação ao relato de cada personagem, criam um ambiente muito mais realista e dúbio, já que não existem mentiras cruas; apenas visões diferentes sobre uma mesma realidade. Essa estratégia de escrita promove uma bela rima visual com a própria arte de Van Gogh, tendo em vista que tudo depende da subjetividade do idealizador.

Mesmo assim, apesar das qualidades do roteiro, o longa se notabiliza pela sua incrível capacidade artística. Trata-se do primeiro filme pintado inteiramente a mão e são quase 90 minutos de puro deleite visual. A direção de arte apresenta o compente trabalho de aliar o realismo que a abordagem biográfica do filme precisa ter à pura idealização estética. Tal estratégia reiterada pela direção de Dorota Kobiela e Hugh Welckman serve como uma experiência sensitiva sem precedentes. Durante a película, muitas vezes, o espectador esquece que o filme é animado, o que reforça a ideia de verossimilhança pregada pela direção. Concomitantemente, os traços dos pincéis de Van Gogh são facilmente identificados na composição das cenas, o que denota uma metalinguagem belíssima. Afinal,  a história de Van Gogh sendo contada sob a ótica de seus próprios trabalhos é algo admirável. Dessa forma, é admirável o trabalho de estudo da produção desse filme, tendo em vista que, desde o carteiro até o céu estrelado, tudo é uma referência ao pintor. Ao mesmo tempo, o uso de sua técnica mostra-se como um artifício de engrandecimento da história, mas nunca sua resolução em si.


Portanto, “Com Amor, Van Gogh” é uma experiência cinematográfica extremadamente ousada, tornando-se a animação mais poderosa do ano e, possivelmente, uma das melhores dos últimos tempos. A habilidade dos pintores usados no filme serve para enaltecer a capacidade artística de seu protagonista, porém nunca se prende somente a isso. O filme consegue caminhar com suas próprias pernas ao construir um ritmo agradável e um crescente ambiente de tensão totalmente inesperado. “Com Amor, Van Gogh”, através do uso perfeito das técnicas da animação pintada à mão, presta uma grande referência ao grande pintor, embora as qualidades técnicas e artísticas transcendam ao servirem como plano de fundo para uma bela narrativa.

Nota: 



- João Hippert



quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Crítica de "Star Wars: Os Últimos Jedi"

"Star Wars" é, sem sombra de dúvidas, a epopeia moderna. E mais: enquanto as clássicas obras de Homero ou "Os Lusíadas" de Camões expressavam feitos heroicos de um povo, a saga "Guerra nas Estrelas" é universal. Os arquétipos usados na jornada de herói, a necessidade por fantasia que é intrínseca à personalidade humana e o constante embate entre o bem e o mal são fatores que fazem com que a obra seja facilmente digerida por qualquer um. Não é pelo fato de que a franquia se tornou um símbolo do marketing bem sucedido estadunidense que o seu caráter artístico deva ser relegado. Aliás, "Star Wars" deixou de ser um simples produto cinematográfico ou uma grande obra de arte há muito tempo. "Star Wars" é paixão, é aguardar ansiosamente pelos trailers, é colar posteres no quarto, é tentar ler todos os livros do universo expandido, é sentir a partida de amigos ficcionais, é fazer tantos outros na vida real. E, felizmente, com a aquisição da Lucas Film pela Disney, "Star Wars" agora é aguardar todo o ano por uma única pré-estreia, uma única sessão que te faça esquecer todos os problemas cotidianos, é embarcar naquela galáxia muito, muito distante e simplesmente levitar. É ouvir o tema inicial com os olhos marejados e com o corpo todo arrepiado, ler os letreiros e depois disso, simplesmente, sentir que a Força está realmente viva no coração dos fãs.

E é exatamente essa reflexão toda que demonstra a competência do diretor/roteirista Rian Johnson no filme. Desde o início da metragem, o público é submetido a um ambiente extremamente familiar, mas com toques de novidade que expandem a sensação de pertencimento daquele mundo. A cena inicial, possivelmente, condiz com a essência de "Star Wars", porque trata-se, justamente, de uma intensa batalha espacial, com direito a som no espaço e manobras que desafiam a física convencional (Mas para os mais implicantes, basta lembrar que trata-se de um tempo muito remoto, em uma galáxia muito, muito distante...). Johnson acerta, também, ao evocar o real senso de perigo acerca do filme inteiro. A história consiste em diferentes arcos: naves da Primeira Ordem tentando aniquilar os rebeldes remanescentes de uma vez por todas; Rey em busca de seu treinamento Jedi com Luke Skywalker; Kylo Ren e seu aparente conflito interno maniqueísta e Finn com sua nova companheira Rose, tentando se infiltrar na nave do Comandante Supremo Snoke e impedir seu ataque. A decisão de intercalar diversas estruturas narrativas em um mesmo filme é arriscada, porque, se a montagem não for feita de forma meticulosa, existe uma quebra de ritmo que pode prejudicar a experiência emocional provocada pelo filme. Contudo, o trabalho do montador é sublime à medida que torna todas as extensões interessantes a ponto do expectador não se ver saturado de determinado ambiente ou torcendo para que outro voltasse à tona.

Toda essa dinamicidade narrativa possui respaldo no enorme carisma dos protagonistas da "nova geração". Rey, interpretada pela excelente Daisy Ridley, mais uma vez rouba o filme devido à sua presença impositiva e à sua busca por verdades que a tornam cada vez mais humana. Ao sentir a Força despertar dentro dela, Rey entra em um verdadeiro conflito que permeia toda a jornada do herói clássica. Seria ela uma espécie de ser iluminado? Seriam seus pais verdadeiros mestres da Força que a abandonaram com algum propósito? O filme discute essas questões ao longo de toda a projeção, o que potencializa a apreensão do público por conhecer a história da tão querida personagem. Em aliança a isso, temos a volta do protagonista da série clássica Luke Skywalker. E parece que Mark Hamill, em uma atuação extremamente madura, compreende a ambivalência de Luke. Ao mesmo tempo que ele foi responsável pela destruição do Império, ele também é herdeiro legítimo de Darth Vader. Hamill consegue transparecer uma atuação dúbia, que confere a seu personagem uma aura misteriosa, como alguém que busca esconder segredos do passado a fim de se proteger das consequências presentes. A relação mestre-aprendiz entre os dois também é deveras importante para a afirmação da renovação do universo de personagens começada em "O Despertar da Força". Luke, sendo o último Jedi existente, precisa passar seus conhecimentos para Rey, ao mesmo tempo que o ator Mark Hamill precisa dar o espaço necessário para Daisy Ridley.  Nesse sentido, os arcos
desses personagens talvez sejam os mais complexos do filme, sendo extremamente orquestrados do início ao fim.

Ademais, dois atores merecem extremo destaque: Adam Driver (Kylo Ren) e Oscar Isaac (Poe Dameron). O primeiro, como parte do próprio desenvolvimento de Kylo, abandona sua atuação maquinal do filme anterior, fazendo com que os conflitos sejam vivazes e que o público sempre desconfie de suas ações. Kylo Ren nunca é apresentado como um vilão definitivo, tampouco um aspirante a mocinho. Tal comportamento contraditório remete ao próprio Luke da trilogia clássica, servindo como uma referência que surge como rima narrativa. Em contrapartida, Poe Dameron é desenvolvido como um representante da essencialidade rebelde. Incisivo, passional e intuitivo; o personagem transborda carisma e seu apego ao grande público é extremamente facilitado. Nesse sentido, a presença da General Organa, sob a pele da excelente Carrie Fisher, constitui uma espécie de relação mãe-filho. Leia, mesmo não sendo o centro das atenções da história, serve como um pretexto para o questionamento: até que ponto a defesa da ideologia deve se sobressair mesmo diante de tantas perdas humanas? Aliás, todo personagem do filme, se analisado profundamente, possui um sub-texto incrível e passível de ser relacionado com qualquer aspiração humana.

E é por isso que o longa talvez seja o retrato definitivo da franquia. "Star Wars" nunca foi sobre uma complexidade de roteiro, mas sim sobre uma abordagem simples que desse espaço ao desenvolvimento dos personagens. O roteiro linear pode muitas vezes incomodar os mais críticos devido a decisões mais facilitadas, mas, em momento algum, Rian Johnson erra onde não poderia errar. São 2 horas e 32 minutos de pura magia, nostalgia e emoção. Chega na parte final do filme, em seu clímax, e o único sentimento remanescente é o desejo de ficar um pouco mais naquele universo tão aconchegante. Diante de todos os problemas enfrentados pela humanidade atualmente, "Star Wars: Os Últimos Jedi" se apresenta como um refúgio caloroso que consegue nos fazer embarcar em uma jornada incrível, em que a semente da esperança, mesmo que dentre poucas pessoas resistentes, pode ser a fagulha que inflamará um universo inteiro em prol do bem.

Nota: 


- João Hippert



domingo, 8 de outubro de 2017

Crítica de "Blade Runner 2049"

"Esses momentos se perderão no tempo. Como lágrimas na chuva". A frase mais icônica do clássico "Blade Runner", de 1982, é um daqueles "movie moments" que ficam marcados. É como se fosse uma única sentença representando todo o ideal do filme; todas as suas provocações filosóficas e existenciais. "Blade Runner" é um dos marcos do cinema e, muito provavelmente, o melhor filme de ficção científica já feito. Baseado no magnânimo livro "Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?", o longa situa-se em uma futurística Los Angeles no (até então) longínquo ano de 2019. Em um ambiente comandado por uma gigantesca corporação chamada Tyrell, seres denominados "replicantes" começam a ser produzidos como forma de trabalho escravo para as colônias fora da Terra. Uma nave de replicantes, contudo, se desvincula do padrão e retorna à Terra. Cabe então ao caçador de androides (blade runner) Deckard (Harrison Ford) caçá-los e aposentá-los. Apesar de parecer uma trama simples, essa história distópica, responsável pela criação do universo "cyberpunk", coloca em xeque as questões do ser humano sobre o que é ser humano. Até que ponto uma máquina deixa de ser máquina para ser comparada a um ser vivente? Quais são os limites entre a artificialidade e a originalidade? Indagações como essa são transmitidas ao espectador durante toda a metragem - e as respostas parecem nunca chegar. É importante ressaltar, portanto, a influência de "Blade Runner" na cultura pop em geral. Se hoje usa-se a frase "Isso é muito Black Mirror" é porque "Blade Runner" revolucionou o cinema, mostrando que ficções científicas "cabeça" ainda tem espaço no imaginário popular. Em decorrência disso. tivemos "Matrix", "Ela", "RoboCop", "Ex Machina", além da já citada "Black Mirror" e da excelente série "Westworld".

Chegamos então em 2017 com a promessa de retorno ao universo tão complexo que é o dessa distopia. O filme acompanha o policial K (Ryan Gosling) que, depois de aposentar um replicante, descobre coisas que podem mudar o rumo de sua vida - e de sua "espécie". Mais uma vez, a trama principal do filme é simples. O roteiro escrito por Michael Green e Hampton Fancher apresenta elementos clássicos de filmes policiais, onde a investigação é o que comanda o desenrolar do enredo. Mesmo assim, o texto se apresenta de forma bastante lenta, sem se apressar para as resoluções da história. Isso não é uma coisa ruim: apesar de existirem cenas de ação, o foco aqui é desenvolver os personagens introspectivamente, dando diversas camadas a eles. Talvez a jornada de K seja a mais complexa, já que o espectador nunca sabe o que esperar do personagem. Isso porque a atuação (ou a falta dela) de Ryan Gosling contribui muito para o apego ao protagonista. O ator mostra-se versátil ao interpretar um personagem que apresenta um ciclo de autodescoberta, em que, muitas vezes, o replicante mostra-se mais humano do que os humanos do filme. Aliás, isso é o que faz "Blade Runner 2049" ser tão fascinante. O público nunca sabe definir quais personagens são replicantes, além daqueles que são explicitados. E estes são os mais bem escritos, visto que apresentam angústias e sentimentos genuinamente humanos. Seria a memória a única coisa que nos torna, efetivamente, especiais? E se a ciência fosse capaz de criar implantes de memórias tão reais que se confundissem com as próprias memórias, como definir o que é realidade? O roteiro abre muitas possibilidades, mas não concretiza nenhuma. Embora seja um "blockbuster", o filme preza pela reflexão e pelo raciocínio do espectador.

A direção é da sensação do momento Denis Villenueve. Após conceber excelentes obras, tais como "Os Suspeitos", "O Homem Duplicado" e "A Chegada", Villenueve nos presenteia com uma direção primorosa. Os traços de "A Chegada" são evidentes aqui: uma paleta escura e frívola para ambientar um universo fúnebre e deprimido. As cores do filme, aliadas à fotografia, expressam o sentimento daquele mundo, onde a artificialidade toma conta e os replicantes se mostram mais humanizados do que o próprio ser humano. Aliás, o filme aborda o famoso Teste de Turing, pois, depois de uma máquina ter consciência da própria existência, o que a torna diferente de uma entidade viva? Se fôssemos pegar por esse lado, o ser humano desconhece os mistérios que definem a sua existência. O que nos impede de sermos máquinas criadas por outros seres? Essa angústia provocada pela reflexão metafísica é realçada pelo ótimo trabalho de som do filme, que cria um ambiente tenso, profundo e deveras inquietante. Villenueve também acerta ao utilizar, na maior parte do tempo, "takes" abertos que prezam pela imersão do espectador. É interessante notar cada detalhe da cidade, desde os hologramas gigantes e o fusionismo cultural das ruas até as robôs amantes (alguém aí também lembrou de "Ela"?). A habilidade do diretor de posicionar sua câmera e a escolha acertada dos planos corrobora a veracidade do universo criado. Por se passar em um futuro distante, mas plausível; essa familiaridade gerada pelo visual do filme provoca uma angústia ainda maior. Afinal, "Blade Runner 2049" parece não ser apenas uma diversão escapista, mas uma verdadeira viagem no tempo.

O "casting" do filme é outro ponto sensacional. Ryan Gosling realmente rouba o filme na atuação de sua vida (e que fase excelente do ator), mas Harrison Ford, Robin Wright e Jared Leto demonstram um verdadeiro talento, ao incorporarem personagens dúbios, em um universo extremamente desconfiável. Aliás, "Blade Runner 2049" é uma obra que deixa uma carga negativa no espectador; parece que depois de toda a tensão e urgência apresentadas durante o filme, ao final existe um sentimento de êxtase. Talvez esse seja o grande papel de uma boa distopia: apresentar um mundo futurístico com base no que existe hoje. E a crescente falta de empatia pelas pessoas, a mecanização das tarefas humanas e o desejo de conquista, provenientes do nosso mundo pós-moderno, possibilitam o espectador a pensar na credibilidade daquilo que é apresentado. George Orwell, Aldous Huxley, Isaac Asimov, Philip K. Dick estariam orgulhosos. Trata-se de uma continuação digna, capaz de ampliar o universo criado pelo filme de Ridley Scott, ao mesmo tempo que mantém a essência da obra. "Blade Runner 2049" é um filme profundamente reflexivo, que através de ritmo seguro e roteiro circular, questiona o espectador acerca do que é ser humano. E o mais angustiante? Parece que não temos a resposta.

Algumas interpretações são possíveis com o filme. Deixarei abaixo uma que eu fiz durante a sessão, portanto cuidado com os SPOILERS.
"Blade Runner" 2049 mostra que o ser humano vive com base nas suas memórias, porém elas são meras construções de sua mente; extremamente maleáveis, enviesadas e arbitrárias. Enquanto isso, as memórias replicantes são perfeitas, fato que deixa a possibilidade de se interpretar que o replicante é um ser humano evoluído.
Observe como o roteiro "espelhado" entre os dois filmes corrobora essa ideia: no primeiro filme acompanhamos a transformação do Deckard-humano em Deckard-replicante (embora essa condição não seja explícita, existem fortes indícios). Já no segundo, K passa de um replicante para um replicante mais "humanizado", após ter consciência de sua própria existência. Logo, essa jornada narrativa em conjunto dos dois filmes mostra uma descrença na humanidade enquanto espécie atual, mostrando que a inteligência artificial pode vir a ser o próximo passo do processo evolutivo. "More humans than humans". 

Nota: 

- João Hippert

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Crítica de "It: A Coisa"

Os anos 80 foram um marco na indústria cultural, especialmente na dos Estados Unidos. Em um contexto de final de Guerra Fria, o "American way of life" já havia se espalhado pelo mundo inteiro - possuindo o respaldo de Hollywood. Ao se remeter a essa época, é comum lembrarmos dos clássicos filmes de sessão da tarde, que expressavam a vida nos "high-school" estadunidenses, tais como "Clube dos Cinco" e "Curtindo a Vida Adoidado" e aqueles que todo bom admirador do gênero aventura não deixa passar batido, por exemplo "Os Goonies", "Conta Comigo", "E.T.", dentre muitos outros. A marca dos anos 80, contudo, também foi responsável pela ascensão do excelente escritor de horror Stephen King, responsável por clássicos como "O Iluminado", que misturava elementos culturais da época com a atmosfera terrível proposta pelo autor. Nesse sentido, em 2016, o mundo foi abalado pela estréia da série "Stranger Things", que foi responsável por homenagear os grandes clássicos dos "anos dourados", através de citações explícitas e exercícios de gênero mais sutis. Pode-se dizer que o universo criado por King teve forte influência na concepção do seriado que, por sua vez, teve impacto direto sobre a mais nova adaptação do escritor para o cinema: "It: A Coisa".

O filme acompanha um grupo de jovens em uma pequena cidade do interior dos EUA que precisa lidar com o desaparecimento de pessoas na cidade, fato que é atrelado à presença do Palhaço Dançarino (Pennywise). A estrutura do roteiro escrito pelo trio Chase Palmer, Cary Fukunaga e Gary Dauberman apresenta semelhanças gritantes com "Stranger Things" (que já é um compilado de vários clássicos infantis). O foco aqui está na relação entre os personagens; o mistério é apenas a chave para o desenvolvimento dos conflitos. Talvez, por esse fato, muitas pessoas decepcionaram-se com o tom do filme, por esperarem algo mais amedrontador e horripilante, como aqueles filmes ligados a espíritos ("Annabelle" e afins). Entranto, "It: A Coisa" nunca se propõe a isso; pelo contrário, já que a vitalidade do longa está no excelente desenvolvimento de personagens, muitas vezes propositalmente estereotipado, muitas vezes subversivo. Assim como em "Stranger Things", aqui vê-se uma personagem feminina extremamente forte (Beverly), que é detentora da coragem do grupo e responsável pelo desenrolar das decisões do grupo. Por outro lado, a inserção do personagem negro (Mike) provoca uma crítica velada ao racismo institucionalizado da época, já que o personagem sofre diversos tipos de discriminação por um grupo de "bullers". Estes, por sua vez, são um retrato da enraizada cultura do "bullying" no país, cujo comportamento é direcionado aos considerados mais "frágeis". Através da apresentação de tais arquétipos, o filme é capaz de representar um retrato fiel dos anos 80, mas sem contestar os valores vigentes.

A construção da afetividade do público para com os personagens é muito acentuada pela excelência do elenco mirim: o grupo todo parece estar em sintonia com o universo de King e o senso de amizade, porém desconfiança perante o desconhecido é nítido. Os atores são ajudados pelo primoroso trabalho do roteiro em acrescentar subcamadas a cada personagem, tornando-os únicos e relevantes (mesmo que alguns venham a ser esquecidos com o passar do tempo). Além disso, a caracterização de Pennywise é fantástica. Certamente trata-se de um dos maiores marcos do cinema no ano de 2017, devido ao grande alcance que o filme já teve. O belo trabalho de maquiagem e de figurino aliado aos efeitos visuais reitera o semblante ambíguo do Palhaço, um figura controversa em relação aos sentimentos mostrados, mas sempre aterrorizante. Talvez pelo fato do longa focar muito na relação entre o grupo principal, Pennywise foi deixado como o simples vilão da história, sem o desenvolvimento completo que muitos gostariam. Provavelmente isso será assunto para um próximo filme. Ademais, o excelente design de produção e a competente concepção da fotografia são responsáveis por propiciar uma verdadeira viagem a uma década remota, mas com traços de horror. Apesar da familiaridade com a ambientação, há algo de sinistro que pode ser percebido através do figurino e dos cenários.

Apesar de ser um filme que trabalhe muito bem as relações interpessoais entre os protagonistas e seus diferentes pontos de vista quanto à solução de um problema maior, o diretor Andy Muschietti tem o mérito de proporcionar uma película, muitas vezes, perturbadora. O trabalho de câmera de Muschietti apela, em grande parte do tempo, para o convencional, com um uso excessivo da tática do "jump scare". Mesmo assim, tal tática reforça o retorno aos clássicos proposto pelo filme, mesmo que não deixe de ser uma obra original. O uso de convenções de gênero pelo diretor reforça a sua proposta de viagem a uma época passada, sem apresentar inovações técnicas que claramente se mostrariam avançadas no tempo. A direção, porém, não limita de nenhuma forma o andamento da história, já que o controle da câmera é tamanho que o filme tem um corte perfeito, com a duração necessária. O trabalho de montagem acerta ao conferir um ritmo extremamente acessível ao longa-metragem, mostrando as verdadeiras qualidades que um "blockbuster" precisa ter: diversão dotada de recursos cinematográficos em harmonia. É inevitável pensar no filme como uma espécie de episódio isolado de "Stranger Things", o que não é maléfico. Contudo, a nova adaptação de King ao cinema mostra um jeito especial de tratar o terror, de forma organizada e funcional. "It" é um filme que mescla elementos de aventura e horror de forma coerente, contando com um roteiro redondo e uma direção competente que tornam o filme uma diversão completamente satisfatória.

Nota: 


- João Hippert

sábado, 30 de setembro de 2017

Crítica de "Mãe!"

O cinema, assim como qualquer outro tipo de arte, apresenta como uma de suas funções provocar uma reflexão no espectador, seja pela exibição de relacionamentos amorosos, ficções que discutem valores vigentes, dentre outros diversos arquétipos presentes na sociedade. Contudo, são poucos filmes que conseguem abalar o público de tal forma que a sala finalize a sessão com um silêncio tênue e uma expressão angustiada no rosto; retrato de que a proposta do diretor foi cumprida com perfeição. No ano de 2016, a ficção científica "A Chegada" foi responsável por isso. Em 2017, "Mãe" se apresenta como tal tipo de filme, mesmo que potencialmente mais controverso, polêmico e conturbador. É por isso que trata-se de um filme de difícil ingestão: a violência vai além da imagética, já que perpassa por valores que moldam a nossa sociedade e simplesmente os quebra. Para aqueles que não são capazes de lidar com um filme extremamente crítico, a opção por "Mãe!" deveria ser repensada.

Mas é justamente essa forma de abordagem do filme que o torna primoroso. Escrito e dirigido pelo excelente Darren Aronofsky, o longa acompanha um casal (Jenniefer Lawrence e Javier Bardem) que vive em uma casa isolada no campo, em decorrência do trabalho do homem: ser poeta. A vida do casal passa por mudanças a partir da chegada de visitantes inesperados. Esse é o máximo da história que pode ser contado sem que se estrague a profunda experiência cinematográfica que é "Mãe!". Todavia, existem metáforas essenciais para compreender a proposta da obra, as quais deixarei no final do texto. O roteiro talvez seja o ponto alto do filme por conseguir imprimir camadas e sub-textos a um ambiente relativamente limitado, através do uso de diversas figuras de linguagem. A apresentação do contexto em que o filme está inserido é feita de uma forma perturbadora, porém agridoce. O espectador consegue perceber que aquilo não é totalmente normal, mas os pequenos devaneios e artifícios utilizados pelo roteiro, como a apresentação de determinados personagens ou a elaboração de diálogos, permitem criar uma familiaridade com o filme. Apesar da estranheza inerente, "Mãe!" consegue prender do início ao fim, muito facilitado pelo excelente trabalho de montagem, edição e mixagem de som, que conferem ao longa a fluidez e o dinamismo necessário para o desenrolar do enredo. O trabalho de montagem consegue relacionar diferentes momentos ao longo do filme que criam rimas narrativas que, muitas vezes, têm papel fundamental no desenvolvimento da metáfora principal. Por exemplo: em uma cena fecha-se uma porta e na seguinte abre-se outra. É um simboliso simples (encerra-se um núcleo da história, inicia-se outro), porém pertinente.

Darren Aronofsky (responsável por "Noé", "Cisne Negro", "Réquiem para um Sonho", "O Lutador") apresenta como marca a forma psicodélica de se dirigir, através de cortes rápidos que dão agilidade para seus filmes. No entanto, em "Mãe!" o diretor mostra-se versátil, optando por uma proposta oposta ao seu estilo, mas essencial para o cumprimento do roteiro. A direção de Aronofsky é bem contida, optando por planos longos e planos-detalhe que focam no rosto dos personagens. A câmera sempre opta por viajar pelo cenário em um movimento bem retilíneo; é como se o diretor quisesse que o espectador estivesse realmente assistindo aquilo na "vida real", sendo a câmera apenas um meio para isso, nunca algo a ser notado. Mesmo assim, a forma estática da câmera nunca torna o filme teatral e monótono, haja vista que o senso de espacialidade do diretor mostra-se extremadamente apurado. Apesar do filme se ambientar em uma única casa, sem nenhuma tomada externa, a câmera de Aronofsky consegue realizar "travellings" oportunos, corroborando a excelência de ritmo conseguida pelo trabalho do montador. O diretor também tem o mérito de criar um ambiente de extrema confusão, já que o espectador se vê perdido na maior parte do tempo. A falta de entendimento e a progressão dos fatos causa uma sensação angustiante, pois a cena seguinte é totalmente imprevisível. Aronofsky acerta ao realizar um trabalho competente de apresentação de universo, direção de atores e criação de símbolos e imagens que só farão sentido ao final da projeção.

Apesar das inúmeras qualidades técnicas e criativos artifícios de roteiro, "Mãe!" é um daqueles filmes que depende muito da química entre os protagonistas. Felizmente, vemos dois atores em grande forma: Jennifer Lawrence e Javier Bardem. Jennifer Lawrence, que há muito já demonstra sua incrível capacidade dramática, confere à sua personagem um toque de inocência e incredibilidade que são essenciais para a construção da narrativa. Aliás, é como se sua personagem fosse os olhos do espectador na tela, pois ela parece ser a única a perceber os absurdos que acontecem e a única com sensatez nas tomadas de decisões. Por outro lado, Javier Bardem interpreta um papel difícil e desafiador, cujos intuitos e preceitos são sempre escondidos por uma máscara que inspira confiança e segurança. As expressões faciais do ator são tão sutis que ele consegue realizar variações dramáticas enormes, mas sempre mantendo a harmonia que seu personagem pede. A dualidade entre a visceralidade de Lawrence e a compassividade de Bardem reforça a perfeita química entre os atores, visto que é a relação entre os dois que move a história. O elenco de apoio também está satisfatório; todos os atores parecem compreender a ousadia de Aronofsky e embarcar no mundo criado por ele.

 As metáforas e interpretações decorrentes do filme são diversas, mas todas têm um peso enorme. É visível a ambição e a ousadia do diretor na idealização de uma obra como essa, já que, simplesmente, existem pessoas que se sentirão extremamente ofendidas. Cabe à cada um fazer sua própria análise, lembrando sempre de que os recursos utilizados no filme são exagerados e propositalmente conturbadores. Muitas vezes a arte precisa chegar fazendo barulho para, na verdade, fazer uma crítica muito mais sutil do que parece. "Mãe!" é um filme inteligente, perturbador, angustiante, quebrador de paradigmas, que se apresenta com um ritmo extremamente fluido, devido à sua montagem competente e ao excelente trabalho de câmera do diretor, além de ser completamente visceral e contar com uma dupla de protagonistas em excelente forma.

SPOILERS:
A metáfora principal:
 A principal leitura do filme depreende que Javier Bardem representa Deus e Jennifer Lawrence a Mãe Natureza. Os primeiros visitantes da casa (que seria a própria Terra) seriam Adão e Eva (note que o homem passa mal e apresenta um corte na costela. Além disso, o casal possui dois filhos, porém um irmão mata o outro - Caim e Abel). As pessoas que chegam à casa representam o próprio progresso da humanidade, com a adoração à Deus ficando cada vez mais forte, a ponto de causar guerras, destruição e prisões. Além disso, as pessoas passam a retirar coisas da casa, mesmo com os avisos da Mãe. Isso pode ser relacionado com a própria degradação que a natureza sofre e como os homens insistem em se comportar desse jeito, mesmo depois de tantos avisos. O filho da Mãe Natureza com Deus seria Jesus, que é morto na mão dos adoradores de Deus, que comem sua carne (clara alusão ao processo de eucaristia da Igreja Católica). Por fim, a Mãe Natureza mostra-se saturada com a situação e destrói a casa (desde o início é perceptível a íntima relação entre a mãe e a casa). Depois disso, na cena final, vemos que Deus recomeça o ciclo, agora com uma outra mulher representando a natureza, o que pode representar uma espécie de vida cíclica na Terra.

Críticas: Ao abordar a exploração humana, o filme critica o desmatamento, a idolatria, as guerras, a fome, a miséira, enfim, todas as mazelas sociais que sempre assolaram a humanidade. Além disso, existe uma clara crítica à própria Igreja Católica e até mesmo à figura de Deus, fato que pode desagradar grande parte do público, já que a Mãe Natureza (original) é sacrificada pelos humanos (inquilinos), cuja presença é estimulada por Deus.

Nota: 

- João Hippert

terça-feira, 1 de agosto de 2017

Crítica de "Dunkirk"

A Segunda Guerra Mundial talvez seja o tema mais batido do cinema hollywoodiano. Isso porque a contundente vitória estadunidense ao final da guerra permitiu ao país assumir a posição de superpotência - fato que se alastra até os dias atuais. Assim, a Segunda Guerra representa o triunfo final dos EUA e sua vitória é motivo de muito orgulho para o povo americano, sendo traduzida através de inúmeros longa-metragens produzidos acerca do tema. O mais recente "Até o Último Homem", por exemplo, é um claro exemplo dessa necessidade, muitas vezes exacerbada, da heroificação do cidadão americano, de forma petulante e arrogante, na maior parte do tempo. Por outro lado, diretores que apresentam uma sensibilidade aflorada e habilidade em contar boas histórias tendem a deixar obras inesquecíveis, verdadeiros clássicos da sétima arte. É o caso do grande Steven Spielberg, idealizador de filmes como "A Lista de Schindler", "O Império do Sol" e "O Resgate do Soldado Ryan". Eis que surge Cristopher Nolan, em 2017, querendo mostrar ser capaz de realizar um bom filme de guerra, que o coloque no patamar dos maiores diretores da história.

É inegável que o inglês é um dos melhores cineastas atuais, tendo em vista sua já extensa filmografia (ele tem apenas 47 anos). Nolan é responsável pela icônica trilogia do Batman, além de ter realizado excelentes películas, tais como "O Grande Truque", "Amnésia", "A Origem" e "Interestelar". Em seu primeiro filme histórico, Nolan demonstra que sua experiência em montar bons cenários foi extremamente válida. "Dunkirk" retrata a batalha de mesmo nome, ocorrida no litoral francês. Basicamente essa é a premissa que acompanha todo o longa. Todavia, a excelência do filme está contida nos devaneios, os pequenos detalhes que realmente importam em uma guerra. É como se estivéssemos estudando a Revolução Francesa sem focar nos principais (Robespierre, Napoleão, e etc), mas sim se acompanhássemos aqueles que tomaram a Bastilha, aqueles que foram assassinados durante a revolução. "Dunkirk" foge do estereótipo ao conter diversos núcleos de narrativas, compostas por soldados, civis e oficiais, retratando-os com extrema humanidade e se caracterizando como um verdadeiro relato de sobrevivência.

Nesse quesito, o filme acerta ao evitar a extrema "vilanização" dada aos nazistas, já que, por toda a película, apenas acompanhamos os ingleses tentando voltar para a casa, assim como qualquer um faria. Não existe menção à crueldade nazista ou ao motivo da batalha estar acontecendo. O filme não é presunçoso a ponto de querer explicar a guerra (como muitos fazem), mas se limita a desenvolver apenas a batalha de Dunkirk, e os homens que lutaram nela. O roteiro é inteligente ao economizar nos diálogos - a maior parte do filme é apenas sonorizada pela trilha e pelos barulhos de bombas, tiros e explosões. Tal recurso sonoro reitera a veracidade da guerra, sua crueldade e visceralidade, onde apenas a sobrevivência importa. A mixagem de som e a edição encaixam-se perfeitamente nesse aspecto. Já a trilha sonora talvez seja um dos pontos altos da metragem; é simplesmente impossível não se sentir apreensivo com a música. Aliado a isso está a montagem fenomenal, capaz de intercalar os diferentes núcleos de personagens de forma dinâmica, sem prejudicar, de forma alguma, o ritmo do filme. A direção de Nolan é extremamente consciente no que quer abordar: os planos longos e abertos são utilizados de forma frequente, mas inseridos em um contexto plausível e com uma movimentação de fácil entendimento para o espectador. O uso da câmera tremida em momentos oportunos também reforça a imersão do espectador no ambiente hostil da guerra, gerando uma sensação de angústia e impotência.

A paleta acinzentada de cores aliada aos belos planos aéreos tornam a fotografia de "Dunkirk" maravilhosa, um verdadeiro espetáculo visual. A equipe técnica do longa realizou um brilhante trabalho. Contudo, um filme só é capaz de perdurar no imaginário do público se sua mensagem for forte. E "Dunkirk" consegue fazer isso. O filme acompanha homens comuns durante a guerra, mas não apela para o excesso de melodrama. O fato de não existir nenhum protagonista reflete a vontade de Nolan em abordar não os ingleses ou os franceses, mas sim o ser humano em si. Afinal, em um momento de hostilidade como é uma batalha de tamanhas proporções, o comportamento humano é muitas vezes falho, covarde e insensível. Isso porque simplesmente não estamos preparados para encarar o nosso destino, e a possibilidade de sobreviver conta muito mais do que a vitória do país. Nolan mostra que, mesmo com aliados ao seu lado, em um contexto de tanta hostilidade a máxima é "cada um por si". Ao retratar os personagens de forma extremamente sensível e humanizada, o apego do público é muito intenso, o que contribui para o excelente andamento do longa. "Dunkirk" apresenta inúmeros aspectos técnicos que merecem exaltação, mas é o retrato de Nolan acerca do homem comum na guerra que torna o filme tão especial.

Nota: 



- João Hippert

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Precisamos falar sobre: "Sete Minutos Depois da Meia-Noite"

"Sete Minutos Depois da Meia-Noite" (originalmente "A Monster Calls") é um daqueles filmes que fazem sucesso nos festivais ao redor do mundo, porém, ao atingir solos brasileiros, duram pouco e fazem parte de um circuito extremamente reduzido. A data oficial de estreia do filme no Brasil foi 5 de Janeiro de 2017, contudo grande parte do público não teve a oportunidade de ir ao cinema. Eis que o filme surge no catálogo Netflix e torna-se mais acessível, suscitando diversas discussões acerca de temas deveras profundos e filosofantes.

O filme acompanha Conor, um menino que sofre bullying na escola e tem uma mãe com uma doença em estágio terminal. O menino começa a receber visitas de um monstro "amigo", que conta para ele algumas histórias. A premissa parece básica, mas a estrutura do longa é diferente de quase tudo que já vi no cinema. Trata-se de um exímio conto de fadas, na acepção mais pura da palavra, sem os devaneios tão comuns na versão Disney (nesse quesito se assemelha ao excelente "O Labirinto do Fauno"). O clima pesado referente à situação emocional na qual se encontra o protagonista conversa com a morbidez das histórias contadas pelo monstro. De certa forma, é possível comparar as histórias com a própria realidade em que vivemos, haja visto que uma história sempre parte de um contexto real. E, muitas vezes, uma simples história fantástica pode nos ensinar muito mais do que palavras jogadas ao vento em seu sentido denotativo.

Nesse sentido, o diretor J. A. Bayona acerta em cheio ao conectar os diversos elementos fantásticos com as situações vivenciadas pelo menino. Se em uma cena vemos Conor destruindo um castelo imaginário concomitantemente com um caos produzido na casa de sua avó, também percebemos como tudo o que ele pensa sobre a moral deve ser destruído. Estamos acostumados a viver em um mundo regido por normas de convivência e comportamento e, o simples fato de desejarmos algo fora do comum, nos torna culpados - não só pela sociedade em que vivemos, mas também por nossa própria consciência. O monstro, ao demonstrar a necessidade de Conor destruir os ambientes opressores ao seu redor, seja na metáfora de um castelo, seja no ambiente arcaico da casa de sua fria avó, prova como a verdade humana só pode ser atingida ao se desconsiderar todo o ambiente ao redor. Fugindo de perspectivas deterministas (tão presentes no mundo atual), o longa aborda profundamente a concepção platônica do ser, fazendo o público refletir acerca das verdades irrefutáveis que temos que engolir e refletindo sobre a famosa questão: "o que faz o ser humano ser humano?".

(a partir daqui alguns spoilers do filme são revelados)

Toda essa reflexão é extremamente favorecida pelo arco final do protagonista. Como um menino com o pai ausente e sem nenhum amigo é capaz de lidar com a eminente morte de sua mãe, único laço amoroso que ainda possui? Inicialmente, Conor parece desejar muito que sua mãe sobreviva, apelando ao monstro (que é uma árvore curandeira) para salvá-la. Entretanto, o monstro parece desconfiar da veracidade do sentimento do menino e dá indícios do que ele realmente queria escutar: a verdade. Conor deseja que sua mãe sobreviva (é claro), mas ao mesmo tempo não suporta que sua mãe sofra tanto com a doença. Ao mesmo tempo que ele quer sua mãe bem ao seu lado, ele quer que seu sofrimento acabe. Mesmo que isso signifique sua morte. Ao destruir todas as barreiras impostas por sua consciência, Conor descobre ao final que não é "pecado" apresentar tais sentimentos dualistas. Simplesmente faz parte de ser humano: às vezes queremos coisas contraditórias e sofremos com coisas exatas. Não existe uma fórmula certa para nos dizer o que fazer e como fazer. Em uma belíssima cena final, o monstro narra: "E, por fim, o menino agarra forte sua mãe e finalmente deixa ela ir." Ou seja, ao final de sua jornada Conor percebe que a estadia de sua mãe na Terra já estava no fim e aceita com resignação. Apesar de sentir tristeza e saudade, Conor entende que faz parte da vida. A vida é um passeio onde apenas conhecemos o início e temos certeza do fim. "Sete Minutos Depois da Meia-Noite" nos mostra como o sentimento humano é paradoxal e como está tudo bem por conta disso. As grandes reviravoltas da vida e os momentos de sofrimento são as coisas que a tornam extremamente válida, mesmo que não a entendamos plenamente. É nossa parte aproveitarmos cada momento da forma que achamos melhor, deixando de lado qualquer meia culpa que nos impeça de alcançarmos nossos objetivos. Ás vezes precisamos ouvir palavras de um monstro para realmente darmos valor à mensagem.

- João Hippert

domingo, 2 de abril de 2017

Crítica de "A Bela e a Fera"

Walt Disney Studio é sinônimo de clássico. Desde os primórdios do cinema, com a realização de "Branca de Neve e os Sete Anões", até o recente "Zootopia". Quando se trata de criar universos e personagens fantásticos, a produtora é imbatível. De uns tempos para cá, todavia, a Disney tem investido em produções que retomam universos já conhecidos pelo público. Basta lembrar dos recentes sucessos "Mogli" e "Malévola", que renderam uma boa bilheteria, além de serem elogiados por boa parte da crítica internacional. Eis que chega a vez de revistarmos um dos contos de fada mais clássicos de todos: "A Bela e a Fera", que já havia se tornado uma animação em 1991. O longa acompanha Bela (Emma Watson) que, após ficar presa no castelo de um terrível monstro (Dan Stevens), começa a desenvolver sentimentos pela fera, contrariando a opinião dos habitantes de seu vilarejo.

O roteiro do filme, escrito por Stephen Chbosky e Evan Spiliotopoulos, segue o senso comum da narrativa de mundos fantasiosos. As viradas são feitas com bastante segurança, sem surpresas maiores ao longo do longa. Isso é algo positivo, pois faz com que a direção e a fotografia se sobressaiam na representação do universo fantástico. Os roteiristas lidam muito bem com o primeiro ato do filme, em que somos apresentados ao cotidiano monótono de Bela e sua vontade por ser mais do que aquilo. Nesse sentido, o desenvolvimento da protagonista é perfeito, visto que ela é sempre senhora de seu destino e "motor" dos acontecimentos ao seu redor. Em tempos de escândalos machistas, uma mensagem como essa é imprescindível. Além disso, o roteiro introduz certos elementos que trabalham a sexualidade dos personagens, o que foi alvo de crítica ao redor do mundo. Contudo, o trabalho foi bem feito, reiterando o papel do cinema em quebrar certos tabus vigentes na sociedade.

A direção de Bill Condon é essencial para a construção do ambiente do filme. Desde o início, com o movimento da câmera se afastando e aproximando, dando sensação de pequenez e grandeza, o espectador consegue distinguir a dimensão dos locais referidos. A fluidez do movimento de câmera na cidade permitem cenas belíssimas, que são realizadas com excelentes números musicais. As músicas em si não precisam de comentários, já que são clássicas desde a animação de 1991. Mas a sensação de ouvir "Beauty and the Beast" e "Be Our Guest" na telona é sempre a melhor possível. A coreografia e o figurino são extremamente condizentes com o tom fabuloso da metragem. Bill Condon nos oferece uma jornada impressionante a um universo já conhecido, mas sob uma perspectiva diferente e especial. Talvez seja por isso que os remakes da Disney sejam tão bem feitos. O diretor tem a liberdade de dar seu ponto de vista para a história, mas esta continua sendo "A Bela e a Fera". Um clássico é um clássico, independente de sua roupagem.

Luke Evans interpreta um Gaston carismático e com forte presença em tela. Emma Watson mostra-se uma atriz com muitas camadas, ao conseguir dar força e sensibilidade para uma personagem deveras complexa. Talvez o único grande problema do filme seja seu ritmo. Na transição do primeiro ato de apresentação para o segundo ato de desenvolvimento, o diretor se perde um pouco no rumo da narrativa. Enquanto o início é levado com bastante naturalidade e calma, dando ênfase à criação dos ambientes e personagens, o segundo ato se acelera demasiadamente. O romance inicial entre a Bela e a Fera é resolvido em pouquíssimas cenas, o que tira do filme a fluidez que havia sendo apresentada. O amor entre os personagens só é crível devido ao conhecimento do público acerca da história prévia, o que configura um seríssimo problema estrutural da obra. Ademais, o filme de 2017 é uma digna refilmagem de um clássico, trazendo a história sob um ponto de vista inventivo, mas sem tirar o brilho que imortalizou a animação de 1991.

Nota: 

-João Hippert 

sexta-feira, 24 de março de 2017

Crítica de "Fragmentado"

M. Night Shyamalan talvez seja a eterna promessa de Hollywood. O diretor abalou o mundo em 1999 com o poderosíssimo e já clássico recente "O Sexto Sentido". Um ano depois, Shyamalan trouxe para o público o bom "Corpo Fechado". Vale ressaltar que muito do mérito de ambos os filmes está na construção narrativa perfeita até a chegada de um plot twist. E é essa a grande sina da carreira do indiano até então; já que o público sempre espera algo surpreendente, os filmes nem sempre agradam. Mas eis que chega "Fragmentado", que parece realmente quebrar com tudo aquilo que esperam de Shyamalan. O filme conta a história de um homem com múltiplas personalidades (James McAvoy), que sequestra três meninas na porta de um shopping sem motivo aparente. O roteiro se desenrola através das conversas das garotas com as diferentes facetas do homem.

Primeiramente, é notório o ambiente angustiante do filme. A direção calma, ao início.sem movimentos aparentes, e a câmera focada nas expressões faciais dos atores permitem uma completa imersão no ambiente mostrado. Aliado a isso, está o roteiro deveras redondo, que consegue conter diversas camadas dignas de discussão. Ora, quando McAvoy exibe uma personalidade infantil, o espectador sabe que é um momento de alívio e até mesmo de conseguir algumas vantagens. Quando o personagem torna-se uma mulher, o sentimento mais frequente é a dúvida e o receio quanto às ambições da personagem. E não há como negar o medo assaltante que a faceta maligna impõe. O roteiro consegue, de forma prática, caracterizar as diferentes personalidades, de modo que sejam de fácil reconhecimento.

Um ponto negativo do roteiro é a falta de aprofundamento no desenvolvimento das meninas. Apesar de Casey (interpretada pela excelente Anya Taylor-Joy) apresentar um passado sombrio que vai sendo mostrado aos poucos, tal fato apenas serve para corroborar uma decisão do roteirista em relação ao clímax. Além disso, o texto se contradiz ao final da metragem, quando Shyamalan deixa um pouco o universo coeso criado para investir em algo mais sobrenatural. Apesar disto não ser algo totalmente estranho na filmografia do diretor, percebe-se uma discrepância em relação ao resto do longa que dá ao final um peso menor. O ponto alto do filme é James McAvoy e suas múltiplas personalidades. O roteiro tem o talento de relatar como é o cotidiano de uma pessoa com o transtorno, seja através de diálogos expositivos (que nunca tornam-se maçantes), seja pelo uso da câmera subjetiva. Aliás, a câmera de Shyamalan é extremamente inventiva e dinâmica, tornando o ritmo do filme ideal. Nesse quesito, o diretor lembra muito Hitchcock em sua boa fase, conseguindo aliar uma boa ambientação e fluidez cinematográfica a um roteiro instigante.

Se em 2016, o suspense confinado "Rua Cloverfield, 10" nos presenteou com a excelente atuação de John Goodman, aqui McAvoy rouba a cena. O ator demonstra uma flexibilidade imensa, ao transitar de opostos de personalidade em questão de segundos. É visível o esforço, até mesmo físico, do ator na realização de um excelente trabalho, provavelmente o melhor de sua carreira. Contudo, é importante avisar que "Fragmentado" não é um filme fácil de ser digerido. São 2 horas de pura tensão e incerteza, com cenas repugnantes, muitas vezes. Um fato interessante é a última cena do longa, que parece criar um "multiverso" dos filmes do diretor. Shyamalan apresenta um filme redondo, com traços "hitchockianos" de suspense, atuação primorosa de McAvoy e ritmo extremamente bem conduzido, que tornam "Fragmentado" um excelente retrato de múltiplas personalidades e da ignorância do homem em relação ao seu potencial cerebral.

Nota: 

- João Hippert

sexta-feira, 3 de março de 2017

Crítica de "Moonlight: Sob a Luz do Luar"

"Moonlight" talvez seja o filme comentado do momento. A grande surpresa independente que conseguir tirar o Oscar de melhor filme da mão de "La La Land" (literalmente). Mesmo antes de assistir ao filme, há de reconhecer-se a importância de sua vitória. Depois da polêmica de que a Academia é branca demais, "Moonlight" chega com força para demonstrar que negros também merecem destaque no cinema. O fato do filme ter ganhado o principal prêmio da noite atraiu holofotes à produção, aumentando até mesmo sua exibição em salas brasileiras. Obrigado Oscar! Mas vamos aos fatos. "Moonlight" acompanha Chiron, em três fases de sua vida: a infância (Alex R. Hibbert), a adolescência (Ashton Sanders) e a fase adulta (Trevante Rhodes). O menino mora em Miami com sua mãe drogada Paula (Naomie Harris), em um ambiente extremamente impróprio para seu desenvolvimento tanto intelectual quanto moral e é ajudado pelo traficante Juan (Mahershala Ali, vencedor do Oscar).

É aí que começa a primeira crítica social. Ao colocar em Juan a responsabilidade de educar o menino, sendo o exemplo que ele não tem em casa, o filme dá um alerta acerca das condições do lar de Chiron. Em que universo possível a educação de um criminoso prescindiria a criação de uma mãe? A crítica é tão sutil, que o espectador mais desavisado não percebe. Trata-se de um estudo de como uma relação familiar quebrada pode ser desbancada por qualquer outro tipo de relação. O roteiro tem a inteligência de humanizar Juan ao extremo, dando a ele o papel que mais inspira empatia do público. A relação construída entre eles é extremamente palpável, principalmente devido aos diálogos entre os personagens, principalmente aqueles em que o traficante aconselha Chiron a ser quem ele quer ser, independente do que os outros pensam. E é aí que entra a temática principal do filme: a homossexualidade. Chiron, ao longo do longa, sempre demonstra incerteza em relação ao que é. Basta lembrarmos da cena em que pergunta para Juan ("Eu sou gay?"). E Juan em uma resposta brilhante ("Você não precisa saber agora.).

O filme trata justamente da descoberta de Chiron, da sua busca por uma identidade que o defina. Ele se vê deslocado dos demais colegas, sofrendo xingamentos e espancamentos diários. O roteiro de Barry Jenkins tem a calma necessária para apresentar os fatos cotidianos de sua vida e mostra como o protagonista lida com cada situação. Chiron é um menino extremamente contido, sem apoio em casa, que se vê perdido durante a maior parte do tempo. Parece sempre que está fugindo de sua própria identidade e metáforas visuais como a dele correndo de outros meninos ressaltam essa ideia. O roteiro faz uma ode às diferenças, mostrando que cada ser humano é único e livre para ser o que desejar, mesmo que isso signifique transpor padrões sociais vigentes. Nesse quesito, a jornada de Chiron remete ao filme "O Segredo de Brokeback Mountain" e, até mesmo, "Boyhood". Apesar de suas inúmeras qualidades, "Moonlight" apresenta alguns problemas. Percebe-se a falta de peso nas consequências de determinados acontecimentos para a construção de Chiron em si. Se a genialidade de Jenkins está na crítica social e no representação de uma jornada por autoconhecimento, o roteiro linear apresenta algumas lacunas sentidas. Mesmo que o desenvolvimento introspectivo do protagonista seja primoroso, falta energia na construção da história, fazendo com que boa parte do filme tem uma monotonia desnecessária. Se por um lado ela pode agradar para potencializar o tom intimista da metragem, em certos momentos ela parece simplesmente forçada. De todo modo, a mensagem principal da obra não é afetada por deslizes momentâneos.

O elenco está sensacional. Os 3 atores que interpretam Chiron realizam trabalhos excelentes, além de parecerem muito entre si. Mahershala Ali segura muito bem as cenas em que é requisitado, passando uma segurança e um carisma necessários. Naomie Harris é o destaque do elenco, principalmente por interpretar a personagem mais complicada, haja visto os descontroles psicológicos frequentes da mãe. Apesar disso, Naomie apresenta uma serenidade no olhar que dá uma sensação de amor, apesar de tudo. Percebe-se como ela está possuída pelo vício e como em alguns lampejos de lucidez, ela é somente uma mãe que ama seu filho, como outra qualquer. Vale ressaltar também a excelente direção de Barry Jenkins. Além de dirigir seus atores de forma deveras consciente, Jenkins demonstra uma fluidez com a câmera na mão que dá uma familiaridade necessária ao longa. Note como na cena em que Juan e Chiron estão no mar a câmera parece estar flutuando, acompanhando o movimento das ondas. Esse tipo de direção aumenta a imersão do espectador no longa, fazendo com que a câmera pareça mais uma testemunha da história. Aliás, é importante lembrarmos que partes da história foram tiradas da vida do próprio diretor e de amigos dele. Não é difícil imaginar tal panorama: é uma realidade muito crível, até mesmo no Brasil. "Moonlight" tem a coragem necessária de desenvolver a descoberta da homossexualidade no subúrbio norte-americano, servindo como pretexto para uma magnífica jornada de autoconhecimento e crítica social.

Nota: 

- João Hippert

quinta-feira, 2 de março de 2017

Crítica de "Logan"

Os X-Men formam, provavelmente, a franquia de heróis mais importante do cinema. No longínquo ano de 2000, quando filmes baseados em HQ não eram tão recorrentes, um sujeito chamado Bryan Singer resolveu dirigir um filme dos mutantes. Mesmo que a qualidade possa ser debatida, foi esse o filme que iniciou toda uma nova era em Hollywood. Naquele momento o mundo conhecia o Wolverine de Hugh Jackman, que desde então, participou de inúmeros filmes da franquia X-Men, assim como 2 filmes solo do mutante que é "o melhor no que faz". Eis que "Logan" é anunciado: o último filme de Jackman como Wolverine. Apesar do impacto ter sido grande, este veio com uma certeza dose de desconfiança, haja visto os fiscos anteriores "X-Men Origens: Wolverine" e "Wolverine Imortal".

A campanha do filme, contudo, conseguiu passar uma imagem extremamente positiva da produção. A divulgação de fotos em preto e branco, o trailer com música do Johnny Cash, piadas pontuais em relação ao próprio universo dos quadrinhos e a violência explícita deram ao filme um tom totalmente diferente do que já foi feito no cinema. Vale ressaltar que essa liberdade criativa só foi possível devido ao sucesso de "Deadpool", que provou que um filme de herói não precisa ser, necessariamente, infantil. Tomando isso como partida, chegamos ao impressionante "Logan". Em um futuro próximo, a raça de mutantes está praticamente eliminada. Logan (Hugh Jackman) trabalha como chofer na cidade de El Paso, onde cuida do poderoso Professor Charles Xavier (Patrick Stewart). O anonimato de Wolverine é colocado em cheque quando a jovem mutante Laura (Dafne Keen) surge em seu caminho e precisa de sua ajuda.

A cena inicial do filme chega para definir seu tom. Logan está deitado no seu carro, acorda, solta um palavrão e parte para a violência. Mas não se engane. Se pegarmos qualquer filme já feito com o mutante, o sangue das pessoas nunca é perceptível. Aqui acontece o contrário, já que todos os oponentes de Logan são mostrados com ferimentos profundos e muito sangue, lembrando muito como é feito nos quadrinhos. O próprio protagonista é mostrado inúmeras vezes repleto de cortes profundos e cicatrizes, algo jamais visto no cinema antes. A história criada por James Mangold, e roteirizada por ele, Scott Frank e Michael Green, apresenta um tom circular. O espectador, apesar de contar com alguns momentos de pura perplexidade, consegue perceber uma linearidade no roteiro. Além disso, o ritmo do filme não é frenético; ele toma seu tempo para desenvolver seus personagens e apresentar o ambiente em que a história se insere. O longa se passa em um ambiente sem vida, extremamente hostil e a fotografia ajuda a aumentar a sensação de incerteza do espectador.

O sentimento de tensão é, provavelmente, o que mais aparece no filme. Como o roteiro se preocupa muito em detalhar as situações, a apreensão é potencializada. Há um senso de urgência e desconfiança que paira sobre o filme inteiro, deixando o público inquieto durante toda a metragem. Outro fator extremamente positivo do roteiro é a construção do arco de seu protagonista. Pode se dizer que configura-se como algo impecável, em que nenhuma alteração se faz necessária. Logan é apresentado como um ser cansado de sofrer perdas na vida, ao mesmo que tempo que é desacreditado no futuro da raça mutante. Mesmo que os diálogos do personagem ajudam a clarear essa situação, é importante destacar a atuação de Hugh Jackman. Totalmente introspectivo, contido quando necessário, assim como explosivo nas horas oportunas, Jackman provê a melhor atuação possível. O retrato maduro do personagem combina com o ator e o peso da idade é representado com maestria. Existe sempre a sensação de que Logan não está bem hora alguma, e essa representação torna-o extremamente humano, mesmo que não seja. É interessante também perceber as várias facetas apresentadas, já que Logan não é nada idealizado. Nem todas as suas ações são louváveis, e esse balanço dá ao longa um tom extremamente verossímil.

A direção de James Mangold ("Johnny & June") reúne todos os aspectos bons da metragem. Ele tem a calma necessária para dirigir uma boa cena de diálogo, ao mesmo tempo que apresenta o frenesi necessário a uma cena de ação impactante. Sua câmera muito limpa consegue imergir o espectador de tal forma, que as mais de 2 horas passadas não pareçam mais de 10 minutos. Mangold demonstra que um filme de herói não precisa ser 100% ação, provendo um filme que sabe valorizar as partes tocantes de um drama bem feito. A trilha sonora melancólica também é extremamente condizente com o tom proposto, combinando-se com os demais elementos cinematográficos em uma harmonia perfeita. O elenco de apoio também está primoroso. Stewart interpreta o Professor X de uma forma totalmente diferente do que já fez, construindo um personagem multifacetado. Aliás, todos os personagens possuem crenças e angústias díspares, fazendo com que sejam repletos de camadas a serem analisadas.

"Logan", por fim, é um filme que incita muitas discussões acerca de temas universais, tais como moral, perda e lealdade. A história linear serve como plano de fundo para um profundo desenvolvimento das relações interpessoais entre os personagens. Trata-se de algo completamente diferente do que todo mundo já viu e isso é importante para renovar o gênero de herói. É possível que bons dramas dotados de crise existencial configurem-se como excelentes filmes do gênero. A FOX acerta mais uma vez, ao realizar um filme completamente condizente com a essência do personagem, em uma despedida digna de Hugh Jackman ao personagem. O roteiro introspectivo, a direção limpa e apreensiva, as atuações viscerais e emocionantes tornam "Logan" um dos melhores filmes de super-herói já feitos.

Nota: 

-João Hippert

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Crítica de "Aliados"

Robert Zemeckis talvez seja um dos diretores estadunidenses mais injustiçados pelo público. Não que existam muitos questionadores de seu trabalho, mas seu nome não é tão imortalizado como o de Spielberg, por exemplo. Basta lembrarmos que Zemeckis foi o diretor da trilogia "De Volta para o Futuro", do clássico "Forrest Gump" e do icônico "O Náufrago". Tal filmografia reforça a sua habilidade em contar boas histórias, acima de tudo. Depois de realizar o excelente "A Travessia", em 2015, Zemeckis retorna, aos 64 anos, com o filme "Aliados". A história acompanha Max Vatan (Brad Pitt) e Marianne Beauséjour (Marion Cotillard), um casal que se conhece durante uma missão em Marrocos, durante a II Guerra Mundial. Quando retornam para Londres, a relação entre eles é colocada em cheque, em decorrência das pressões da guerra.

Primeiramente, vale ressaltar o acerto em relação ao tema. Muitos filmes ambientados durante a Segunda Guerra prezam por retratar batalhas cruciais ou a vida de personagens importantes. "Aliados" chega com uma proposta diferente: trata-se de um filme tipicamente de espionagem, remetendo muitas vezes à franquia 007. Além disso, o contexto histórico, mesmo que seja um pano de fundo, é extremamente bem construído, tanto em termos narrativos quanto em relação à ambientação. Esta, por sinal, é perfeita. O uso de cores diferentes em ambientes diferentes dão ao filme um tom realista necessário, conseguindo transportar, com fluidez, o espectador para o tempo referido. O roteiro de Steven Knight consegue, além disso, retratar o cotidiano das pessoas em tempos de guerra. É muito corriqueiro assistirmos no filme momentos de relativa tranquilidade, até que os sinos ressoem e os ataques aéreos iniciem. Zemeckis tem a habilidade (e a experiência) de potencializar a tensão e a insegurança presentes no ambiente, através de planos fechados que incitam angústia.

Zemeckis também se destaca ao construir a relação entre o casal protagonista. Existe uma cena, por exemplo, em que vemos o olhar apaixonado de Max, até que a câmera se afasta e nos deparamos com a reação de Marianne. A câmera se afasta mais uma vez e percebemos que aquilo era um espelho. Podemos analisar esse jogo de câmera como uma metáfora visual, tendo como base o ditado "os olhos são o espelho da alma". É por meio desses pequenos devaneios, que um diretor consegue introduzir em sua obra momentos reflexivos. Talvez o único problema do filme seja o ritmo. O início é bem arrastado, e o roteiro toma um tempo relativamente grande para fixar pontos importantes para a trama. Tendo dito isso, o filme não será um deleite para todos, já que existem, evidentemente, cenas em demasia na projeção. Pode-se até argumentar que o ritmo cadenciado é proposital, observando o desfecho da narrativa, todavia os minutos a mais fazem diferença para o filme como um todo.

A trama espiã é excelente. Knight consegue introduzir pistas ao longo da projeção, mas o espectador está sempre um pé atrás do roteirista. Nesse jogo de "gato e rato" percebemos, ao atingirmos o clímax da história, que o filme tinha base para ter o desfecho que quisesse. O incremento de diversos detalhes durante o enredo possibilitaram que o espectador contasse com a dúvida do final até este acontecer. E quando acontece... Melhor parar por aqui. O elenco está competente, mas Cotillard e Pitt dominam o filme inteiro. Pitt apresenta uma atuação boa, mas que não difere muito do papel que o ator está acostumado a fazer. Ele apresenta bastante carisma, o que ajuda na empatia com o público. Quem realmente merece destaque é Cotillard. A atriz apresenta um desenvolvimento de personagem extremamente complexo, produzindo no espectador uma constante sensação de estranheza. A dubiedade construída pelo roteiro é aumentada com a entrega da atriz. "Aliados" conta com uma direção eficaz, roteiro bem amarrado, atores excelentes, porém o ritmo inicial problemático pesa ao final da projeção.

Nota: 

- João Hippert

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Crítica de "Estrelas Além do Tempo"

A segregação racial dos EUA foi uma das situações mais nefastas que a Terra já viu. Negros e brancos sendo separados em todos os aspectos da sociedade era algo corriqueiro na sociedade norte-americana. Contudo, nos anos 60, através de figuras como a do Dr. Martin Luther King, o movimento pelos direitos civis cresceu exponencialmente e a luta dos negros, finalmente, apresentou resultados. É justamente nessa fase de transição que o filme, baseado no livro de Margot Lee Shetterly, se insere. Aqui, acompanhamos a história de três mulheres negras que trabalham nos computadores da NASA, e por meio de seus intelectos se fazem indispensáveis ao programa espacial norte-americano. É interessante vermos que não foram apenas os ativistas assíduos que ajudaram a modificar o padrão social.

Em termos de contexto histórico, o filme é deveras pertinente. Ao mesmo tempo que o roteiro consegue desenvolver muito bem o ambiente segregado do território estadunidense, também demonstra as impassibilidades da Corrida Espacial. O fato de sempre sermos apresentados às mais recentes façanhas do programa russo, faz com que o longa tenha um senso de urgência extremamente desejado. E, é nas entrelinhas, que a crítica social está inserida. Basta percebermos como para a protagonista Katherine Johnson tudo é muito mais difícil, mesmo uma pequena ida ao banheiro. Com o intuito de tornar essa labutação corriqueira, o filme apresenta, inúmeras vezes, o trajeto da personagem atrás de um banheiro especial para negros. Isso traz ao filme uma realidade esmagadora e deixa no espectador um sentimento melancólico. A crítica social bem feita sempre promove divagações sobre a própria realidade e o filme entende isso perfeitamente. 

Um dos problemas do roteiro, porém, é não saber o quanto quer contar da história de cada uma das personagens. Apesar de ser evidente que Katherine é a protagonista, os arcos de Dorothy e Mary às vezes tomam um peso desnecessário. Não é que a história de uma seja melhor do que as outras; pelo contrário: a luta por reconhecimento de todas é venerável. Contudo, ao oscilar muito entre as diversas histórias, o ritmo do longa fica defasado. Às vezes estamos submetidos a um momento de tensão e somos deslocados a um momento calmo demais, fazendo com que desejemos retornar ao arco anterior. Apesar dos 127 minutos do longa se apresentarem com uma fluidez interessante. esses pequenos momentos impedem o ritmo de ser perfeito. Outro problema é a trilha sonora, que, muitas vezes, se faz presente quando não deve e falta quando não pode. Uma história de drama e de superação merecia qualidades musicais que elevassem a emoção do público,

O elenco é algo a ser discutido. Taraji P. Henson, interpretando Katherine, talvez seja o seu ponto fraco. É claro que sua personagem é extremamente difícil, por apresentar diversas emoções contrastantes durante o longa. Henson não consegue, com clareza, fazer esses saltos dramáticos, o que tira, de algumas cenas, a naturalidade que o longa tinha proposto. O elenco de apoio, todavia, está excelente. Octavia Spencer apresenta uma atuação bem imponente, e seu senso de coletivismo é muito bem expressado, Kevin Costner também apresenta uma atuação segura e condizente com o personagem. O problema deste é ser tratado como uma espécie de herói, que realiza boas ações, mesmo sendo um chefe da NASA. No início ele é tratado como alguém impaciente e insensível, mas não é o que o filme mostra.

Pode-se dizer que o filme celebra diversos aspectos valorizados pelo estereótipo norte-americano como a superação e a meritocracia. Contudo, o roteiro tem a sensibilidade de criticar valores sociais repugnantes, o que tira do filme o status de "americanizado". As minúcias da direção de Theodore Melfi são responsáveis por criar uma grande empatia com o público, que acaba, inevitavelmente, torcendo para o sucesso estadunidense, somente por causa do apego às protagonistas. "Estrelas Além do Tempo" é um filme que, através de nuances de direção, torna-se historicamente ponderoso, conseguindo aliar crítica social a bom desenvolvimento de personagens.

Nota: 

-João Hippert

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Crítica de "The Beatles: Eight Days a Week - The Touring Years"

Os Beatles talvez sejam a máxima do que pode ser entendido como uma cultura globalizada. É impressionante o impacto que aqueles 4 jovens músicos de Liverpool causaram no mundo. Seria um pleonasmo dizer que é a banda mais influente de todos os tempos - em todos os aspectos da arte, não só na música. O legado dos Beatles não estava nas músicas em si, mas no jeito como se portavam, seu instinto de rebeldia, que instigavam pessoas do mundo inteiro a admirá-los. O mais impressionante foi o curto tempo de turnê que tiveram (cerca de 4 anos). Por mais que a história dos garotos de Liverpool seja bastante conhecida, obras como "The Beatles: Eight Days a Week" potencializam a admiração à banda.

Uma das funções primordiais de um bom documentário é apresentar uma história, com comprovações históricas e documentos, que sejam pertinentes à proposta do diretor. E isso Ron Howard conduz com maestria. Apesar de muitos poderem alegar que os Beatles em si já seguram o filme, Howard apresenta um papel crucial no processo. Seu trabalho de entrevista concomitante ao som de músicas consagradas dão ao longa um ritmo extremamente ágil. Ao mesmo tempo que o espectador conhece um pouco as histórias de bastidores, a melodia de fundo torna aquele ambiente familiar. Outro mérito do documentário é saber separar a banda de cada integrante. Apesar de se passar durante os anos de turnê, o filme consegue dar um bom enfoque aos diferentes beatles. Somos apresentados aos diferentes trejeitos e sonhos de cada um - porém nunca esquecendo da sua importância juntos.

Esse estilo de direção ajuda muito na compreensão do próprio sucesso da banda. Ao conheceremos as individualidades dos astros, sabemos reconhecer como cada peça funciona em harmonia. Essa importância dos Beatles como grupo (na forma mais primordial da palavra) e não como um amontoado de pessoas com interesses comuns é um dos grandes diferenciais da banda. Basta analisarmos o fato de que, provavelmente, você sabe o nome de Ringo Starr, George Harrison, Paul McCartney e John Lennon. Mesmo os fãs, sabem reconhecer as individualidades dos artistas, mas sabem que a união deles é algo fantástico.

Outro aspecto que o filme enaltece á a chama "Beatlemania": aquele fervor que fazia com que pessoas esperassem em filas gigantescas para um ingresso. O sucesso era tamanho que já não era mais seguro fazer show em lugares fechados, sendo necessário a ida para um estádio de baseball. Foi assim que a primeira banda no mundo se apresentou em um estádio esportivo desse tamanho. Musicalmente, existe algo interessante aqui. Mesmo que os Beatles sejam uma unanimidade, cada pessoa tem suas músicas preferidas e sua fase predileta. Aqui, percebe-se uma subjetividade extrema na apresentação das canções. Parece que estamos ouvindo um compilado das músicas preferidas do diretor. Isso torna o trabalho surpreendentemente autoral, possibilitando que o público enxergue determinada canção de forma diferente. Ron Howard consegue, com habilidade, restaurar imagens antigas de shows e entrevistas, dando uma nova linguagem à banda. O documentário é excelente não só por se tratar dos Beatles, mas devido à inventividade do diretor em tornar o ritmo extremadamente dinâmico.

Nota: 

- João Hippert

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Crítica de "Até o Último Homem"

Uma das funções da arte é a de retratar o contexto histórico em que o artista está inserido. Tendo isso em vista, o cinema, comumente, traz à tona temas históricos que definiram a sociedade contemporânea. Dessa forma, a Segunda Guerra Mundial, que foi divisora de águas em diversos aspectos da humanidade, sempre foi muito retratada nas telonas, principalmente em produções norte-americanas, já que são considerados os "vencedores" da guerra. Eis que chega o polêmico Mel Gibson com mais um filme passado na Segunda Guerra Mundial. Dessa vez, acompanhamos a história de Desmond Doss (Andrew Garfield), um médico do exército que por princípios morais/religiosos se recusa a segurar um rifle, mas que é responsável pelo resgate de inúmeros soldados durante a batalha de Okinawa, no Japão.

Há de convir que a história pessoal de Desmond é deveras interessante. O fato de um americano se recusar a usar armas de fogo é um tanto quanto paradoxal e a força da ideologia do soldado sempre comove. Porém, a forma como o filme conta essa história pode ser um pouco desgastada. O roteiro é repleto de diálogos simples e uma estrutura convencional até demais. Isso reforça o grande espírito "americanizado" do filme. Á medida que a projeção se arrasta, percebemos como o filme perde oportunidades de criticar estereótipos e clichês, acentuando-os ainda mais. Basta perceber a imagem dos japoneses para o público. Mesmo que existam algumas pinceladas de como é a cultura japonesa, na maior parte do tempo os soldados do país são retratados como verdadeiros animais, sempre gritando sem motivo algum ou sendo governados somente por instintos grotescos. Por outro lado, o americano é sempre o "moralmente elevado", sentimental e correto. Essa visão arcaica diminui a imersão do espectador no universo do filme.

Além disso, o ritmo inicial é bastante contrastante. Ora o filme se alonga em determinadas situações, ora ele acelera ao extremo. Isso dá ao primeiro ato uma espécie de monotonia indesejada que deixa o público entediado. Somente a partir da guerra em si é que o filme começa a apresentar suas verdadeiras qualidades. Tecnicamente, mesmo sem muitos recursos, o filme impressiona. As cenas de batalha são bastante cruas e sangrentas, remontando ao estilo utilizado pelo diretor em "Coração Valente". Aqui, Mel Gibson tem total controle sobre sua câmera nas cenas de guerra, passeando pelo cenário de forma inteligente, potencializando a tensão a cada frame novo. Além disso, a paleta suja e escura utilizada pelo diretor de fotografia remete ao ambiente hostil e desesperançoso da guerra, remetendo até mesmo ao clássico "O Resgate do Soldado Ryan". Ademais, o filme apresenta uma qualidade sonora impressionante: a mixagem e a edição de som merecem prêmio.

Andrew Garfield é um dos pontos fortes do filme. Mesmo não apresentado uma atuação tão memorável em termos artísticos, o ator possui uma presença e um carisma que nos faz importar com seu personagem. A construção do personagem, mesmo sendo problemática, consegue ser entendida pelo esforço do ator. Hugo Weaving também merece destaque em um atuação extremamente visceral e emocional. Vince Vaughn, interpretando um sargento norte-americano, provê uma interpretação satírica e sarcástica, emulando a icônica cena de "Nascido para Matar". Aliás, isso é algo que o filme faz corriqueiramente. Sempre que somos apresentados a uma cena realmente boa, ela nos remete a alguma outra obra que já fez isso (melhor, inclusive). Assim, mesmo que o filme seja composto por sequências realmente bem feitas, ele apresenta um problema sério de identidade.

Tendo em vista todos os aspectos citados não é difícil entender as 6 indicações ao Oscar. Mesmo sendo um filme razoavelmente bom, o filme é adorado pelos patriotas fanáticos. Mas, se analisarmos friamente, não existe nada novo - e muito menos especial. O longa apresenta inúmeras qualidades técnicas e boas interpretações, mas o discurso antiquado, a falta de identidade e o excesso de patriotismo fazem com que o novo filme de Mel Gibson seja bom, porém esquecível.

Nota: 

- João Hippert