quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Crítica de "Creed II"

"Creed", lançado em 2015, foi a comprovação de que "reboots" de universos consagrados, quando bem feitos, podem funcionar. O grande mérito daquele filme do até então desconhecido Ryan Coogler (que recentemente fez história com "Pantera Negra") foi justamente entender a proposta do universo Rocky Balboa e adaptar isso para a realidade atual, apostando em uma nova linguagem, com personagens estreantes, porém extremamente carismáticos. A franquia Rocky, aliás, nunca foi muito sobre qualidade cinematográfica fria, mas sim sobre a mensagem impactante. Rocky Balboa talvez seja um dos personagens mais icônicos da história da sétima arte por ser genuinamente humano, com seus conflitos e vitórias, que foram muito potencializados, principalmente, pela capacidade de Stallone em demonstrar a vulnerabilidade - e certa inocência - do personagem ao longo da franquia. Eis que chegamos em "Creed" e conhecemos Adonis: um personagem muito mais temperamental e passional - mas não menos bem desenvolvido. "Creed II" chega então como uma possibilidade de amadurecimento desses personagens que aprendemos a admirar, ampliando as camadas do universo Rocky Balboa. O filme acompanha Adonis (Michael B. Jordan) em sua jornada de lutador de boxe, quando é desafiado pelo filho de Ivan Drago (Dolph Lundgren), Viktor Drago (Florian "Big Nasty" Munteanu) a uma revanche da luta que aconteceu entre Rocky (Sylvester Stallone) no quarto filme da franquia.

A premissa pode parecer genérica e até um pouco batida na franquia, mas o grande mérito do filme é o desenvolvimento dos personagens e, principalmente, o acréscimo de camadas à motivação de cada personagem. Michael B. Jordan interpreta um Creed que mescla orgulho e fraqueza, e seu carisma e naturalidade para encarar o personagem deixa a identificação do público muito mais fácil. Por outro lado, Stallone entrega um Rocky muito parecido com o filme antecessor, mas também consegue acrescentar um lado deveras humano ao personagem, apostando em reflexões acerca de arrependimentos e culpa. Nesse sentido, a jornada paralela de Rocky trata muito do que ele poderia ter feito e não fez, e como lidar com isso. Ao mesmo tempo que acompanhamos o orgulho de Adonis em manter a sua imagem de campeão do boxe, acompanhamos um Rocky com medo de ceder ao orgulho de não falar com o próprio filho. É interessante notar o espelhamento dos arcos dos personagens, porque ajuda a demonstrar que a jornada principal de Rocky já ficou para trás, e que agora o Creed é o real dono da franquia. Mesmo assim, essa dupla jornada é potencialmente favorecida pela imensa química entre os personagens, e a relação mentor-aprendiz passa ser praticamente uma jornada de pai-filho. Os diálogos protagonizados por dois são bem escritos e sempre exploram esse sentimento de orgulho e arrependimento compartilhado entre os dois, o que favorece bastante o tom emotivo do filme. Ao mesmo tempo, é válido destacar o desenvolvimento de Bianca (Tessa Thompson), que também tem um tempo considerável de tela e apresenta uma luta pessoal engrandecedora e desafiadora. O roteiro da continuação, portanto, acerta ao dar profundidade às lutas diárias de cada coadjuvante, o que ajuda também no desenvolvimento do arco do protagonista, já que a relação dele com cada um é bem explícita e entendida pelo espectador.

Ademais, o vilão de Big Nasty é encarado muito mais como um reflexo da vida que levou do que um homem de má índole, o que engrandece o sentimento de empatia que possuímos com ele. Se Ivan Drago segue o estereótipo raso de um russo mau em tempo de guerra fria (quando foi feito o quarto filme de Rocky), Viktor se apresenta como um personagem que tem mais a acrescentar à franquia, principalmente, por sua ambiguidade: forte dentro dos ringues e frágil fora deles. Além disso, "Creed II" consegue, com eficácia, acrescentar uma redenção deveras válida a Ivan Drago em uma cena memorável na parte final do filme. No quesito atuação, Big Nasty até consegue prover um trabalho razoável, mas seu ponto forte é sua fisicalidade e as cenas de luta em si. Aliás, as cenas de combate, apesar de não apresentarem a genialidade e a fluidez do primeiro filme, são bem arquitetadas e bastante verossímeis. O diretor Steven Caple Jr. aposta em tomadas fechadas e em um trabalho de coreografia bem encenado, o que favorece a fisicalidade já citada de Big Nasty e potencializa a dor de cada pancada. Nesse ínterim, "Creed II", através do jogo de câmera inteligente de Caple Jr., é praticamente um soco na cara do espectador, principalmente pela imersão provocada pela coreografia e pela entrega dos atores. Por outro lado, não é tão eficiente na movimentação fora dos ringues, o que prejudica um pouco o ritmo do filme e o desenvolvimento desejado.

"Creed II" como uma continuação é extremamente válido por oferecer camadas novas aos personagens que conhecemos em "Creed". Talvez o problema do filme esteja, contudo, na sua falta de peso enquanto obra isolada. Desse modo, o filme se limita aos fãs da franquia e que conhecem o material original, mas talvez seja pouco acessível a um passageiro de primeira viagem. Isso acontece pelo roteiro, apesar de eficiente no desenvolvimento dos personagens, aposta em viradas premeditadas e, ao final, nada muito memorável. As grandes cenas que ficarão na cabeça do espectador, com certeza, são aquelas que correspondem a diálogos poderosos entre personagens que gostamos, além, é claro, das cenas de luta. A mensagem da franquia, no entanto, continua forte e assistir a "Creed II" é um verdadeiro deleite para os fãs. Apesar de inferior ao seu antecessor, "Creed II" acerta ao ampliar o desenvolvimento de seus personagens e discutir temas como orgulho, culpa e arrependimento de forma eficaz e dinâmica.

Nota: 

- João Hippert

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Crítica de "Green Book: O Guia"

Aparentemente, Hollywood vem se esforçando cada vez mais para realizar filmes sobre a segregação racial existente no país. Desde a polêmica do "Oscar So White", filmes relevantes que abordam a temática vem sendo lançados e reconhecidos, tanto por parte do público, quanto pela crítica e premiações. Basta lembrarmos dos sucessos recentes, vencedores do Oscar de melhor filme: "12 Anos de Escravidão" e "Moonlight", a título de exemplo. 2018, no entanto, mostrou-se um ano extremamente rico nessa temática, provendo películas com abordagens diferentes, mas convergentes quanto à mensagem. Por um lado tivemos "Pantera Negra": um marco histórico do cinema mundial, sendo o primeiro filme de super-herói a ser indicado na categoria de melhor filme do Oscar. Por outro, (não é exagero falar) uma das melhores animações já feitas: "Homem-Aranha no Aranhaverso". Mas, o que chama a atenção desse ano e, principalmente, dessa temporada de premiações, é a presença de "Infiltrado na Klan" e "Green Book", já que eles são filmes que representam muito bem a capacidade de escolha diferente de cada cineasta em fazer uma crítica social. Se em "Infiltrado na Klan" temos um Spike Lee afiado na sátira e no impacto, "Green Book" se apresenta como um filme até mesmo familiar, pautado muito mais nas entrelinhas, do que no alarde. O filme se passa no início dos anos 1960 e acompanha o Dr. Don Shirley (Mahershala Ali), um pianista negro de renome que decide fazer uma turnê pelo sul dos Estados Unidos - região historicamente racista, devido ao seu passado escravocrata. Sabendo disso, o músico contrata Tony (Viggo Mortensen), um descendente de italiano do Bronx acostumado a resolver confusões de boates, para ser seu motorista particular, assim como uma espécie de "guarda-costas".

Primeiramente, é válido destacar a inversão de papeis que o roteiro traz instantaneamente. Como o longa se passa no auge da segregação estadunidense, ver um branco sendo motorista de um negro já quebra muitos padrões da época. E o filme não faz questão de enfatizar isso: muito pelo contrário. Ao tratar isso com naturalidade, o roteiro dá ao filme um tom de leveza que vai acompanhar o resto da metragem. Aliás, isso faz parte da composição diferenciada que o "script" traz para essa história. Embora apresente um tom leve (e muitas vezes cômico), o filme não se omite na exposição dos absurdos provenientes de tamanha segregação. Muitas vezes essa quebra de tom é tão abrupta que deixa o espectador em choque, o que é extremamente válido e retrata fielmente as incertezas e a insegurança de um indivíduo em um ambiente hostil a ele. Todavia, mesmo com essa constante variação de tom, o filme, principalmente através da montagem, consegue conceber um ritmo fluido e agradável. Assistir "Green Book" é uma experiência muito palatável, e as horas passadas dentro da sala de cinema não pesam em momento algum. Nesse sentido, o filme se assemelha muito com obras como "Histórias Cruzadas" e "Estrelas Além do Tempo", que apostam numa abordagem mais leve, mas não menos crítica, do que filmes como os de Spike Lee, por exemplo. Não é de se assustar que Octavia Spencer esteja na produção desse filme, tendo em vista a filmografia da atriz/produtora.

Mesmo assim, a fluidez rítmica e o tom agradável do filme de nada adiantariam se a dupla de protagonistas não funcionasse em conjunto. "Green Book" é um daqueles filmes extremamente dependentes da capacidade de composição de personagem de cada ator e, se a química entre os dois não funcionasse, o filme seria um fiasco. Felizmente, nesse sentido, a escolha dos atores foi bem feita, trazendo uma das melhores duplas do cinema de 2018. Viggo Mortensen, que acabou de fazer "Capitão Fantástico" e sempre será o "Aragorn" de "O Senhor dos Anéis", mostra uma versatilidade incrível ao interpretar um italiano passional e estourado, remetendo-nos a clássicos personagens de Coppola e Sorsese. A jornada pela qual Tony passa durante o filme é um dos pilares da crítica presente na obra, e o alicerce da abordagem diferenciada. Tony passa de um racista que não é capaz nem de usar o mesmo prato que um negro comeu para ser um grande amigo de um negro. A jornada de Tony é muito mais de redenção do que qualquer outra coisa e, apesar de parecer apelativa devido a algumas situações que parecem convenções de roteiro, funciona muito bem. "Green Book" parece querer transmitir a mensagem de que, antes de mudar o mundo inteiro, nós precisamos mudar as pessoas. E essas pessoas irão mudar o mundo. Mesmo que pareça piegas e forçada, o filme consegue carregar essa mensagem com tanto amor e envolvimento, que o público compra a ideia. Ao lado de Viggo, Mahershala Ali também provê uma atuação espetacular, e que requer mais curvas dramáticas do que a de seu companheiro. Sempre formal e elegante, seu personagem inspira um tom de superioridade inato e, a princípio, parece até conter um certo tom de arrogância. Contudo, Ali é eficiente ao desconstruir seu personagem ao longo da metragem, dando espaço às fragilidades internas de Don, ao mesmo tempo que exibe sua coragem em ser quem é. E existe uma cena em que Don explica para Tony como ele se sente sozinho no mundo que é simplesmente tocante e memorável. Mahershala Ali é uma grata surpresa recente e não seria absurdo pensarmos no segundo Oscar da carreira do ator.

Por fim, a direção de Peter Farrelly ("Debi & Lóide") é competente ao aliar os demais quesitos cinematográficos em uma película sincera. Seus movimentos de câmera não são inventivos, mas os enquadramentos são bem feitos e suas decisões contribuem para o desenrolar da história. Muitas vezes uma direção simples é muito mais eficiente para um ritmo fluido do que exageros egocêntricos de um diretor. Nesse sentido, Farrelly abre espaço para a história caminhar por si só, e consegue fazer uma eficiente direção de atores. "Green Book" é um filme que pode cair no esquecimento pela sua falta de impacto imediato, porém trata-se de algo muito agradável de se ver. O figurino, o design de produção e a ambientação dão ao longa uma espécie de charme vintage dos anos 60 que dialoga com o tom esperançoso que o filme inspira. Mesmo que fosse uma época dura, cheia de tragédias e injustiças, também foi uma época de família, de amores, de amizade e de transformação. "Green Book" aposta na abordagem do tema da segregação racial por meio de tom leve, obtendo êxito devido à perfeita química entre os personagens e ao competente trabalho de atuação de Ali e Mortensen.

Nota: 

- João Hippert

sábado, 19 de janeiro de 2019

Crítica de "Vidro"

M. Night Shyamalan é uma das personalidades mais controversas do mundo do cinema. Responsável por excelentes obras como "O Sexto Sentido", o diretor passou por um momento artístico conturbado quando parecia querer se adaptar a um mercado estabelecido. A partir daí, Shyamalan ficou refém de uma fórmula batida em Hollywood e passou a ser estigmatizado como "o caro dos plot-twists". Contudo, em 2015, o diretor realizou a grata surpresa "Fragmentado": um filme cheio de energia, bem filmado e com atuações incríveis, principalmente do protagonista James McAvoy. Porém, o que pegou todo mundo de surpresa, de fato, foi o final do longa, quando descobrimos que trata-se de uma continuação do filme "Corpo Fechado", de 2000, que é outra boa realização do diretor. Eis que chegamos em 2019 com "Vidro": um filme que tem a pretensão de finalizar a "trilogia dos super-heróis" de Shyamalan. Aqui temos David Dunn (Bruce Willis), Kevin (James McAvoy) e Elijah Price (Samuel L. Jackson) sendo retidos num hospital psiquiátrico comandado pela Dra. Ellie Staple (Sarah Paulson) que tenta os convencer de um transtorno psicológico que os fazem acreditar terem poderes especiais. Entretanto, como é a marca do diretor, a trama toma rumos inesperados durante a metragem, trazendo tensão e agilidade ao longa.

O roteiro, escrito por M. Night Shyamalan, tem grandes méritos. Primeiramente, é válido ressaltar a qualidade do longa enquanto encerramento de trilogia. Vê-se que, realmente, "Vidro" foi um projeto pensado juntamente com "Fragmentado", o que deixa as bases para o roteiro muito mais sólidas. Shyamalan, desde o início, se preocupa com a mensagem que quer passar com o longa, portanto sabe onde deve chegar no final. Nesse sentido, "Vidro" é muito sobre a discussão acerca do que é ser um herói, qual impacto isso teria na sociedade atual, o poder das mídias e do exemplo, assim como enxergar no sobrenatural uma espécie de esperança. Tudo isso é desenvolvido por meio de um texto com camadas e reviravoltas embasadas: Shyamalan utiliza aqui de um recurso clássico de sua filmografia - ele dá todas as pistas possíveis, mas ainda sim o espectador não mata a charada antes da hora. Tal trabalho engrandece a experiência cinematográfica e torna o ritmo extremamente gostoso: a duração do longa não pesa em nenhum momento, já que estamos embarcados na história. Isso também deve ao excelente desenvolvimento dos personagens, que carregam a história consigo. David Dunn exprime a figura de um herói cansado, que acredita estar fazendo o bem, mas muitas vezes busca um sentido maior nisso tudo. David sofre de um transtorno de identidade que o faz ter inúmeras personalidades, deixando-o numa eterna luta interna que é estimulada pelo ambiente externo. E Elijah Price é simplesmente o melhor personagem do longa: cínico, divertido, mas com um propósito bem claro. Talvez o grande problema em relação aos personagens, seja a Dra. Ellie Staple que diminui a qualidade do filme como um tudo. Apesar de Sarah Paulson ser um atriz excepcional, aqui vemos um texto raso, motivações confusas, que não conseguem tirar a personagem da superficialidade. Como ela é um ponto de equilíbrio do filme, essa falta de desenvolvimento prejudica o andamento da história, dando espaços para diversas convenções de roteiro.

Por outro lado, a direção de M. Night Shyamalan é um ponto difícil de ser criticado, principalmente, por sua inventividade com a câmera. Em nenhum momento o diretor usa do plano mais óbvio, o que deixa a composição visual das cenas muito mais interessante. Shyamalan utiliza muito do recurso da câmera subjetiva para trazer o espectador para a pele do personagem, o que funciona muito bem. Além disso, a movimentação fluida da câmera e a escolha por planos simétricos em grande parte das cenas dão ao filme uma limpeza visual que dialoga com o propósito do filme. "Vidro" é sobre homens com capacidades incríveis, mas que estão limitados a um mundo cotidiano. Por isso, a paleta de cores também é de cor fria, e busca se ater a uma verossimilhança desejada. Outra qualidade de Shyamalan, é a própria direção de atores, já que eles entregam uma enormidade variação de emoções e, até mesmo, personalidades. James McAvoy retorna ao papel de forma excelente, conseguindo fazer uma construção de personagem louvável, tendo em vista que cada personalidade de Kevin é facilmente reconhecível pelos trejeitos do ator, pelo tom de voz diferente, pelo olhar, pela postura. McAvoy exibe uma imensa curva dramática e uma impressionante capacidade de transição, assim como já havia feito em "Fragmentado". Samuel L. Jackson também brilha na encarnação do cinismo de um gênio maligno, e seu carisma dispensa comentários. Bruce Willis está bem como Bruce Willis, mas não se destaca. Ademais, vale ressaltar a eficiência da trilha sonora, que possui notas dissonantes e esporádicas que auxiliam na tensão que o filme propõe.

"Vidro", por fim, é um final digno para uma trilogia bastante coesa. Em meio a tantos filmes de super-heróis baseados em lutas contra o mal ou contra vilões megalomaníacos, "Vidro" mostra que um filme de super-herói também pode trazer discussões psicológicas, sociais e políticas importantes, além de mostrar que uma história desse tipo não precisa ser linear nem previsível. É interessante perceber o carinho de M. Night Shyamalan tem como esse universo e como representa a sua concepção acerca desse novo gênero tão aclamado. Desse modo, percebemos que o diretor, quando tem controle da sua própria criatividade, é capaz de prover películas muito bem realizadas. "Vidro" se destaca pelas atuações excepcionais, pela câmera inventiva de M. Night Shyamalan e por reviravoltas embasadas, tornando-se um final digno para a trilogia.

Nota: 

- João Hippert

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Crítica de "Homem-Aranha no Aranhaverso"

O cinema de super-herói, principalmente nos últimos 10 anos, tornou-se um mercado. E, como todo mercado, temos uma espécie de padronização de produtos, isto é, os filmes parecem seguir uma mesma "fórmula de sucesso", o que gera muito polêmica. Se por um lado temos uma certa garantia de qualidade, principalmente no quesito de produção, por outro temos a crescente falta de interesse do público de "ver mais do mesmo". É por isso que Marvel e DC estão nesse embate uma com a outra, buscando sempre películas que deem frescor ao gênero e as impeçam de cair nesse ponto prejudicial da padronização. E é nesse sentido que uma solução disruptiva no mercado cinematográfico tende a calhar muito bem e a instaurar uma possível nova ordem no que diz respeito aos super-heróis. Eis que temos "Homem-Aranha no Aranhaverso": um filme que chega sem muito alarde e conhecimento do grande público para transformar de vez a visão que temos sobre um filme baseado em quadrinhos. Primeiramente, é válido ressaltar que trata-se de uma animação da Sony, baseada no universo do Homem-Aranha. Porém, ao invés de acompanharmos Peter Parker, a história segue um garoto do Brooklyn, Miles Morales, que, após ser picado por uma aranha radioativa, também ganha poderes especiais. Devido a certos acontecimentos, uma fenda no espaço-tempo é gerada e "homens-aranhas" de diversas realidades paralelas chegam na realidade de Miles para o ajudar a derrotar o vilão do longa: Wilson Fisk, o Rei do Crime.

Sim, a premissa parece mirabolante demais. Sim, a escala parece extremamente grandiosa para estar no cinema. E sim, uma história dessas só poderia ser concebida em uma HQ. E é exatamente esse o grande acerto e a grande qualidade do filme: "Homem-Aranha no Aranhaverso" é, essencialmente, uma história em quadrinhos. Talvez seja a realização mais bem adaptada de uma mídia para outra que vi em tempos, afinal, o filme consegue ter uma identidade visual própria, mesmo que utilize de uma linguagem tipicamente de quadrinhos. Nesse quesito, os diretores Bob Persichetti, Peter Ramsey e Rodney Rothman acertam ao utilizar das onomatopeias, das viragens de página e, principalmente, da movimentação dos personagens com esse intuito. Esse último quesito, por exemplo, inspira no espectador uma certa estranheza inicial, pois o filme parece estar tentando uma técnica de "stop motion", mas que não se dá efetivamente. Com o tempo e a imersão promovida também pelo roteiro, o público não repara mais esse tipo de coisa, assim como acontece nos quadrinhos. Quando a história é boa, esquecemos que estamos lendo uma história dividida em pequenos quadros de um papel e embarcamos naquele universo. Além disso, a direção, juntamente com a equipe de animadores, é competente em compor um visual literalmente fantástico, repleto de cores vibrantes, expressões faciais detalhadas, e uma identidade visual muito própria. O filme estabelece algo tão único que o público, a partir de agora, seria capaz de identificar uma cena de algum filme que pertencesse a tal universo somente pela imagem, o que é muito bom, tendo em vista que o cinema é uma arte audiovisual.

No quesito de roteiro, o longa apresenta um desenvolvimento de personagens excelente, com o destaque para a jornada de herói de Miles, mas também para as motivações do Rei do Crime. No que tange o protagonista, Miles segue a clássica jornada do herói de autoconhecimento, de incerteza sobre os seus poderes, de fuga ao que ele está destinado a fazer e, finalmente, a aceitação. Porém, toda essa jornada também é pautada nos laços familiares do garoto, principalmente com seu pai protetor e com o tio que é uma espécie de inspiração. O roteiro, porém, foge de maniqueísmos e consegue tratar da relação de Miles com os dois, sem diminuir nenhum lado; muito pelo contrário. O filme nos mostra as diversas faces dessa relação familiar e, a partir da metade da metragem, passa a focar em uma mensagem deveras impactante. É muito bonito ver isso em um filme do Homem-Aranha devido ao que ele representa e, por isso, torna-se impossível não lembrar de Stan Lee. O gênio criador do herói, que nos deixou recentemente, sempre nos remete à frase clássica: "Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades". Por isso, é interessante notar como a descoberta de Miles enquanto herói também é sua descoberta enquanto filho e enquanto pessoa. E, para além disso, temos a questão étnico-cultural muito forte, haja vista que Miles mora no Brooklyn e tem uma realidade na sua vizinhança bem diferente da que frequenta em sua escola de Manhattan. Nesse sentido, o filme aborda a situação social de uma forma bem palatável, pois consegue alinhar essa discussão importante com o tom leve do enredo. Em tempos de tanta discriminação, filmes como esse são essenciais para valorizar as diferenças e dar visibilidade a uma população, até então, invisível. Basta pensarmos em quantos meninos dos Brooklyns do mundo vão querer se tornar o Miles Morales a partir de agora.

É por isso que "Homem-Aranha no Aranhaverso" se mostra tão completo. Mesmo que tenha um quê existencial ao lidar com questões sobre a família e crítico ao analisar as desigualdades sociais existentes em um grande centro urbano, o filme não deixa de divertir em nenhum segundo. Isso se deve ao tom lúdico provido pelo roteiro, que é muito auxiliado pelo carisma dos personagens e a interação entre eles. Além disso, as cenas de ação são bem executadas, limpas, visuais e deveras empolgantes. A trilha sonora também é muito bem escolhida e combina com o tom que o filme quer passar. Tudo parece muito assertivo e bem encaixado, o que deixa a metragem com um ritmo satisfatório. O vilão é bem escolhido e, mesmo que ele tenha relativamente pouco tempo de tela, o longa é capaz de trazer uma certa humanidade a ele. Além disso, um dos pontos altos do filme trabalha com um "e se?" recorrente entre os fãs do Aranha: "O que aconteceria com o Peter Parker depois de 20 anos combatendo o crime?". Sutilezas de roteiro como esta demonstram o cuidado que esse filme transparece. Mesmo que aposte no tom lúdico inerente das histórias em quadrinho, "Homem-Aranha no Aranhaverso" aborda questões existenciais sobre relações familiares e exibe, com técnica e visual arrebatadores, a necessidade da representatividade étnica, por meio de um protagonista totalmente carismático e de uma experiência imersiva.

Nota: 


- João Hippert