domingo, 23 de dezembro de 2018

Top 10: Filmes 2018

Mais um ano chega ao fim e, com isso, as reflexões acerca do que o cinema trouxe de melhor aos espectadores brasileiros no ano de 2018. Como de costume, é válido ressaltar que estão restritos, aqui, os filmes que tiveram seu lançamento comercial nos cinemas brasileiros (ou em serviços de streaming) em 2018, portanto algumas obras têm data de produção de 2017. Antes de começar a lista dos meus 10 prediletos do ano, algumas menções honrosas devem ser feitas. Iniciando pelos longas da temporada de premiação do Oscar, Três Anúncios para um Crime, Eu, Tonya, Projeto Flórida e Me Chame Pelo Seu Nome merecem destaque. 2018 também foi um ano de muita relevância para o já consagrado diretor Steven Spielberg, que apresentou o relevante drama histórico The Post, ao mesmo tempo que voltou à sua melhor forma aventureira em Jogador N° 1. No que tange os grandes blockbusters, Jurassic World: Reino Ameaçado e Missão Impossível: Efeito Fallout mostraram-se diversões válidas. Como animação, o destaque é o retorno contundente da família Pereira em Os Incríveis 2. Já na parte da comédia, o destaque fica com a excelente sátira histórica A Morte de Stalin - filme inteligente, ágil e engraçado. O início do ano também contou com a excelente surpresa Um Lugar Silencioso, capaz de criar um ambiente de tensão fora do comum. Também é válido destacar a cinebiografia do Queen no filme Bohemian Rhapsody que, apesar de suas falhas em relação à veracidade dos fatos, é bem construído e tem energia. A Disney também merece a menção de O Retorno de Mary Poppins, capaz de resgatar a magia do filme original por meio de design de produção impecável e visual arrebatador. No que tange os grandes diretores da atualidade, Wes Anderson merece destaque pelo divertido e crítico Ilha dos Cachorros, enquanto os Irmãos Coen, em parceria com a Netflix, realizam o contundente projeto The Ballad of Buster Scruggs - um faroeste que homenageia os clássicos por meio de roteiro apurado, trazendo, também, frescor ao gênero. Por fim, as menções honrosas remanescentes ficam com os filmes de herói Pantera Negra - talvez o mais importante em termos sociais, históricos e étnicos para a Marvel e Aquaman, um filme de diversão despretensiosa que pode dar bom tom à continuidade da DC nos cinemas. Eis os 10 melhores:


  • Roma  Cuarón compreende isso à medida que dá tom leve à direção e assina um roteiro repleto de sensibilidade. Não é a toa que "Roma" é um anagrama perfeito de "Amor", pois as memórias afetivas, mesmo que estejam em preto e branco, têm um pedaço muito especial no nosso coração.
  • Nasce uma Estrela Em um momento de tanto desespero ao redor do mundo, Gaga e Cooper nos relembram que o amor é necessário, e que a arte existe justamente para cumprir esse vazio que existe - e sempre existirá - em nós. "A Star is Born" parece abraçar a falibilidade humana, mas sem julgamentos, resultando em uma emocionante (e necessária) história de amor.
  • Viva: A Vida é uma Festa - O novo filme da Pixar demonstra-se deveras importante ao abordar a necessidade do cuidado com a família e, acima de tudo, ao valorizar a cultura mexicana em tempos tão conturbados para os estadunidenses, por meio de um roteiro perfeito, um visual arrebatador e um grande apreço quase metalinguístico pela importância da música no cotidiano das pessoas. 
  • Vingadores: Guerra Infinita - "Vingadores: Guerra Infinita" é um verdadeiro quebrador de paradigmas dentro do Universo Cinematográfico da Marvel, construindo um senso de preocupação e urgência - nunca antes visto - em aliança a um imenso carinho com os personagens já consagrados no cinema, além do desenvolvimento perfeito de um vilão dúbio, provocativo e seguro de si.
  • Infiltrado na Klan - Spike Lee é responsável por aliar comédia e relevância história, nesse filme composto por ritmo perfeito, atuações incríveis e uma mensagem deveras impactante, capaz de permanecer na memória por um bom tempo.
  • Hereditário - Partindo muito mais para a linha do terror sugestivo, "Hereditário" é capaz de assustar ao mesmo tempo que apresenta uma estrutura narrativa irretocável, contando com roteiro e atuações fantásticas., além de um impacto visual muito forte.
  • Trama Fantasma - O roteiro repleto de sub-textos antropológicos em aliança com um ator de alto nível em seu auge resulta em uma realização cinematográfica completamente satisfatória - e surpreendente.
  • O Processo - Relevante politicamente, "O Processo" é a obra nacional de maior destaque do ano, conseguindo dar fluidez e objetividade a fatos confusos e demorados, por meio de montagem precisa e da sinceridade comovente de Maria Augusta Ramos.
  • Lady Bird: A Hora de Voar -  "Lady Bird" trata de uma belíssima jornada de autoconhecimento e maturidade, caracterizando-se como uma crônica sobre a passagem do tempo e sobre a validade das instituições sociais, principalmente a familiar, através de um roteiro belíssimo e de uma direção completamente fluida de Greta Gerwig.
  • Bird Box -  Usando do gênero pós apocalíptico como um subterfúgio para a reflexão filosófica acerca da maternidade, "Bird Box" é tenso, ágil e impactante, contando com uma atuação primorosa de Sandra Bullock.
- João Hippert



quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Crítica de "Roma"

Alfonso Cuarón. Você provavelmente já ouviu esse nome, afinal Cuarón é responsável por grandes obras hollywoodianas. "Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban", "Filhos da Esperança", "Gravidade" são alguns dos títulos cuja responsabilidade é do diretor, portanto sua qualidade é inegável. Mas, todos esses diretores que não são estadunidenses, acabam sendo refém dos estúdios na elaboração dos filmes. Não que isso seja ruim, afinal um bom diretor sabe trabalhar com o que tem, mas talvez não seja o desejo artístico total daquele idealizador. É por isso que, de tempos em tempos, nos deparamos com os jargões "o filme da vida do diretor x" ou "o diretor x nunca mais vai ser o mesmo depois desse filme". Bom, para falar a verdade, é exatamente essa a sensação que esse filme passa. Planejado desde 2006, "Roma" conta a história de uma família no México da década de 1970, apresentando seu cotidiano, seus desafios, contando com um quê biográfico, segundo o próprio diretor. O filme acompanha a empregada doméstica Cleo (Yalitza Aparicio), que desenvolve uma relação de afeto muito grande com os filhos dos patrões, o que remete a uma antiga cuidadora do próprio Cuarón.

Tendo em vista esse contexto biográfico, o filme se baseia em memórias: devaneios de um tempo perdido, em que as lembranças sobrepujadas se confundem em meio a tanta afetividade. Nesse sentido, o roteiro de Cuarón foca muito mais na relação entre os personagens, no retrato cotidiano daquela família, do que em uma narrativa muito elaborada. Ora, é como se o espectador estivesse ouvindo o próprio diretor contar a história de sua infância, por meio de um roteiro extremamente introspectivo. Aqui, Cuarón exibe um imenso cuidado em conferir sensibilidade às situações: a emoção é genuína justamente por ser real. Tudo em "Roma" é muito sincero e bonito, na acepção mais pura da palavra. E é impossível negar o quanto essa história tem uma relação especial com o povo latino-americano, devido aos costumes parecidos e o passado recente em comum. Tomadas as devidas proporções, "Roma" lembra muito o excelente filme brasileiro "Que Horas ela Volta?", mas é interessante notar como cada filme foca na cultura que quer apresentar, e tudo isso com um esmero elevadíssimo. Ademais, vale ressaltar o arco da protagonista Cléo, que, apesar de ter uma estrutura simples, apresenta complexidade justamente na construção da personagem: sensível, humilde e refém de um sistema que talvez nem ela é capaz de enxergar. Cléo é uma daquelas babás que se relacionam mais com os filhos dos patrões do que a própria mãe deles. E, mesmo que cuidar das crianças faça parte do trabalho da moça, é tocante ver o carinho e a dedicação de Cleo, o que realça ainda mais o tom nostálgico que o diretor parece querer conferir ao longa.

Nesse ínterim, a direção de Cuarón apresenta sua nostalgia através de uma fotografia em preto e branco esplendorosa (Cuarón também é o diretor de fotografia do filme). É interessante notar o contraste que a narrativa apresenta em relação ao visual, já que a fotografia em preto e branco expressa um dos momentos mais coloridos da vida de uma pessoa: a infância. Mesmo assim, o uso de tal fotografia acrescenta um tom "retrô" especial ao filme e, mais uma vez, reflete o quesito das memórias. "Roma" é um filme sobre memórias, sobre o passado, e a utilização do preto e branco realça esse propósito. Por outro lado, a câmera de Cuarón é bastante comedida. Não vemos aqui nenhuma movimentação energética (como vimos em "Gravidade", por exemplo), mas sim uma câmera que dá cadência ao andamento do longa. Cuarón parece focar na construção de um ambiente imersivo, através de tomadas lentas e contemplativas. Ao mesmo tempo que a fotografia auxilia nessa composição visual fantástica, a inserção de pequenos objetos inerentes à cultura mexicana realçam o realismo daquela casa. Nesse sentido, "Roma" se apresenta como um verdadeiro desfile de quadros em preto e branco, repleto de inspiração, sensibilidade e nostalgia. Como pode-se perceber, no entanto, trata-se de um filme com um público seleto. É muito mais sobre contemplação do que desenvolvimento de história, o que pode trazer enfado ao espectador mais desavisado. Porém, para aqueles fãs de um cinema original e honesto, a obra é imperdível.

E quando eu disse que "Roma" é o filme da vida de Cuarón, basta vermos o trabalho que ele teve para concebê-lo. Além de diretor, roteirista e diretor de fotografia, o mexicano também participou da edição do longa. É perceptível a alma que Cuarón emprega nessa idealização, juntamente com a coragem de voltar às raízes, principalmente em tempos tão conturbadas. Apesar de não ser um filme de caráter político, é relevante percebermos que "Roma" é um filme de um diretor mexicano nos EUA sobre uma época em que a ditadura militar comandava o México - e a sequência em que somos apresentados àquele ambiente hostil é arrebatadora. Mesmo assim, Cuarón não se prende a um possível maniqueísmo pedante para fazer uma crítica muito mais sutil e impactante. Aqui vemos um México repleto de desgiualdade social, pobreza, violência. Mas também um país de festas, de esperança e de afeto. Cuarón compreende isso à medida que dá tom leve à direção e assina um roteiro repleto de sensibilidade. Não é a toa que "Roma" é um anagrama perfeito de "Amor", pois as memórias afetivas, mesmo que estejam em preto e branco, têm um pedaço muito especial no nosso coração.

Nota: 

- João Hippert

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Crítica de "Bird Box"

O mercado cinematográfico está mudando. Inicialmente surgindo como uma espécie de "locadora virtual", a Netflix, com o passar dos anos, parece ter entendido a nova dinâmica que o mercado propõe. Não vale mais tanto a pena apenas reproduzir conteúdos de outros estúdios, mas investir em produções originais. Com essa mudança de paradigma, vê-se a emergência de um novo conflito: filmes feitos para o cinema x filmes feitos para o streaming. Embora seja uma discussão polêmica acerca da banalização das salas de cinema, é extremamente válido ressaltar a acessibilidade que isso traz, tanto por parte do público, que tem mais acesso a diferentes obras, quanto aos criadores, que têm mais espaço para divulgar suas produções. É nesse contexto que surge "Bird Box" - o mais novo filme original da Netflix, que entra no catálogo dia 21 de Dezembro. O filme se passa em um futuro pós-apocalíptico, em que criaturas começam a instigar suicídios coletivos por meio de contato visual. Acompanhamos então a jornada de Malorie (Sandra Bullock), em sua luta pela sobrevivência, acompanhada de diferentes companheiros ao longo do caminho e tendo que proteger duas crianças.

O gênero do suspense/horror é um daqueles que foram subestimados por muito tempo e agora parece que está retomando seu prestígio merecido. Talvez a quantidade excessiva de filmes rasos sobre o gênero tenha gerado uma espécie de preconceito, principalmente por parte da crítica, o que dificulta, ainda mais, o surgimento de películas relevantes que envolvam elementos do gênero. Nos últimos anos, contudo, esse contexto parece ter mudado, tendo em vista o surgimento de diversas obras que usam do terror como plano de fundo para o desenvolvimento de uma busca por humanidade. Não é o terror só pelo terror; mas sim o terror como motor de crítica, de desenvolvimento de personagens e, até mesmo, como conceito filosófico. 2018 mesmo foi um ano muito válido para o gênero, com a presença de duas excelentes obras: "Hereditário" e "Um Lugar Silencioso". Este último tem uma semelhança inegável com "Bird Box", mas é interessante notar como uma abordagem diferente é capaz de distanciá-los tanto. Conceitualmente os filmes se parecem, pois tratam de uma vida pós-apocalíptica em meio ao silêncio ("Um Lugar Silencioso") ou em meio à falta de visão ("Bird Box"). Porém, enquanto um desenvolve a família, o outro desenvolve a maternidade. E é por isso que não pensaria em ninguém melhor que Sandra Bullock para desempenhar esse papel.

Sandra Bullock merece todo o reconhecimento pela entrega emocional - e física - que realiza aqui. Tendo em vista essa versatilidade exigida pelo filme, lembramos de sua atuação memorável em "Gravidade", mas aqui Bullock parece ainda mais segura e apegada ao papel. "Bird Box" é um daqueles filmes que depende crucialmente de uma protagonista envolvida com a história e capaz de desenvolver o arco de sua personagem de forma crível e empática. Bullock faz isso, ao conseguir demonstrar as fragilidades de Malorie, ao mesmo tempo que nunca deixa de transparecer uma força inabalável. Ao início da projeção, percebemos que Malorie é uma mulher amargurada e que, apesar de grávida, não consegue criar laços afetivos muito fortes, tampouco com seu bebê. O único contraponto a essa indiferença de Malorie é sua irmã Jessica (Sarah Paulson), que parece trazer vivacidade à personagem e a interação entre as duas é tão fluida que o público parece imergir naquela relação. Com os acontecimentos que o filme propõe, entretanto, Malorie passa por essa jornada de desenvolver relações afetivas em meio ao caos, sendo todo seu caminho uma grande jornada para o próprio processo de entendimento do que é a maternidade - mesmo que não seja uma definição fechada. É por isso que "Bird Box" torna-se tão reflexivo e impactante: ele faz aquilo que o gênero oferece de mais genial. Existe o desenvolvimento de um conceito interessante e original, mas a história dos personagens se sobressai em meio a um universo que é um cenário para todo aquele desenvolvimento.

O roteiro, escrito por Erick Heisserer ("A Chegada") e adaptado de um livro, tem uma estrutura linear, mas nunca previsível. Apesar de dividir a história em duas linhas temporais distintas, sendo que uma é a consequência da outra, o espectador não se vê decepcionado por saber o que esperar da parte final. Muito pelo contrário. O esmero de Heisserer aqui é focar na jornada e não no resultado final. Nesse sentido, o "storytelling" de "Bird Box" lembra muito o auge da série "The Walking Dead", em que o cenário pós-apocalíptico promove discussões morais pertinentes e introduz desafios extremamente visuais aos personagens. Por exemplo, a sequência em que os personagens precisam ir no mercado para pegar provisões, mas não podem enxergar é deveras tensa, além de desenvolver muito bem o conceito daquele universo. Além do conceito em si, os personagens apresentam profundidade e não caem no maniqueísmo de herói e vilão. Vale destacar a presença de Trevante Rhodes ("Moonlight") e John Malkovich que, juntamente com Sarah Paulson, formam um dos melhores elencos de coadjuvantes do ano. Ademais, a direção de Susanne Bier é digna de aplausos por potencializar todas as emoções propostas pelo roteiro e encenadas pelos atores. "Bird Box" é uma experiência intensa à medida que a tensão é grande, assim como o medo, a empatia, a angústia e a emoção. Não é um filme que passa batido; ele chega e impacta de uma forma muito grande. Usando do gênero pós apocalíptico como um subterfúgio para a reflexão filosófica acerca da maternidade, "Bird Box" é tenso, ágil e impactante, contando com uma atuação primorosa de Sandra Bullock.

Nota: 

- João Hippert