sábado, 5 de outubro de 2019

Crítica de "Coringa"

Poucos filmes conseguem promover o impacto que "Coringa" causou desde as suas primeiras exibições em festivais. Todo o material promocional do filme, os trailers, os cartazes, as entrevistas do elenco davam indícios de que a obra seria realmente diferente do padrão comercial em que estamos inseridos. Atualmente, aliás, o domínio dos grandes "blockbusters" de super-herói tem gerado discussão entre importantes cineastas. A polêmica mais recente, por exemplo, advém do gênio Martin Scorsese, que afirmou não ser muito adepto a esse tipo de filme. Dito isso, é válido ressaltar que, independentemente do estúdio, cada filme que contenha super-heróis apresenta propostas diferentes, que podem ser valorizadas ou não, a depender do gosto do público. Parece evidente que a preocupação da Marvel durante todos esses anos foi montar um universo coeso e divertido, transferindo para as telonas a fórmula que a consagrou nas histórias em quadrinho. Ao mesmo tempo, percebemos o surgimento de obras que buscam se desgarrar de qualquer relação com franquias, apostando em histórias originais que pretendem, primordialmente, analisar profundamente esses personagens tão complexos. Claramente estou falando da icônica trilogia do Cavaleiro das Trevas, mas também poderia incluir, sem nenhum remorso, o excelente "Logan". Chegamos então em 2019: um ano recheado de polarizações em todas as searas da vida, a nível mundial. O ano em que a Marvel conseguiu a façanha de terminar o arco que marcou uma geração inteira e, ainda por cima, quebrar o recorde mundial de bilheteria. "Coringa" chega, nesse contexto, como uma grata contraposição, sob o aspecto de um filme angustiante e de ritmo moderado, cuja preocupação visível é incitar a reflexão, para além da bilheteria.

Infelizmente, além da popularidade advinda dos fãs de história em quadrinhos, "Coringa" tem ganhado as capas de veículos de informação por um motivo muito mais sério. Assim como "Batman: O Cavaleiro das Trevas" fez em 2008, o filme atual foi vítima de ataques a cinemas por pessoas que se identificam com o personagem-título. Essa situação, por si só, já demonstra o quanto esse filme pode ser perigoso se analisado de maneira superficial. E ainda mais: como aqui não temos um contraponto ao vilão, a narrativa foca no viés do Palhaço. Assim, somos submetidos, desde o início, à realidade de Arthur, seus sofrimentos e sua gradativa transformação no Coringa em si. Ao mesmo tempo que isso é extremamente positivo por prender o espectador na história, isso pode ter um efeito negativo se mal interpretado à medida que pode parecer, de alguma forma, uma forma de justificar as ações violentas do vilão. Nesse sentido, é válido trazer a discussão à respeito dos filmes (e obras em geral) que possuem anti-heróis/vilões como protagonistas. Ainda que contenham roteiros bem elaborados, algumas obras são constantemente mal interpretadas. Dois exemplos me parecem claros: existem pessoas que consideram Walter White ("Breaking Bad") e Capitão Nascimento ("Tropa de Elite") heróis de suas histórias, quando, na verdade, são o oposto. Assim, ainda que o Coringa seja mais escancarado nesse viés, faz-se mister reconhecer que o filme é um profundo estudo psicológico de um doente mental, totalmente excluído por uma sociedade elitista, e os meios que ele encontra para tentar se libertar disso. Desse modo, é válido entender que o filme não defende, em nenhum momento, as atitudes do Coringa; ele apenas mostra como uma desigualdade abissal pode gerar violência, através de uma história que foca, unica e exclusivamente, em um homem cujas atitudes são indefensáveis.

Assim, a caracterização da cidade de Gothan também é impecável. O diretor Todd Phillips aposta em um ambiente quase que atemporal, com requintes de distopia. É interessante notar como a falência social da cidade, assim como a total precarização dos serviços públicos são inseridos na película de maneira natural, seja através de noticiários, seja através da conversa entre personagens. O filme se mostra muito mais preocupado em estabelecer, de maneira concreta, um ambiente inóspito do que apenas sugerir isso. Dessa forma, a virada principal da trama torna-se muito mais crível e carrega um peso maior. Além disso, Phillips é hábil em aliar a trilha sonora com o peso que a obra acarreta. "Coringa" é um filme que eu não pretendo ver de novo tão cedo - e isso não é uma coisa ruim. Desde o início, o espectador é imerso em uma atmosfera pesada, que apenas se agrava com o decorrer da metragem. E como não conseguimos torcer de fato pelo personagem, os momentos que antecipam a suposta catarse são mais tensos ainda. Logo, o filme se apresenta de forma agoniante, que incomoda e cumpre, dessa forma, um dos grandes papéis da arte. O diretor acerta ao saber dosar o ritmo da metragem a fim de que esse sentimento não se perca ao longo do filme. Não se pode dizer que a tarefa é concluída com perfeição, haja vista que o final do primeiro ato é levemente arrastado, porém isso não interfere, de maneira alguma, no resultado final. Ademais, é impossível falar sobre "Coringa" sem citar as claras referências ao cinema do já citado Scorsese. Robert De Niro, inclusive, tem um papel que remete imediatamente ao bom "O Rei da Comédia". Mas a grande referência parece ser a "Taxi Driver", visto que a temática presente em ambas as obras é próxima e as escolhas dos diretores idem.

Por fim, devo elogiar o incrível trabalho dos roteiristas Todd Phillips e Scott Silver no estudo de um personagem completamente esférico. Ainda que o Palhaço seja um arquétipo bem definido e que já tenha sido interpretado no cinema diversas vezes, aqui temos uma abordagem completamente diferente. O roteiro busca retratar o Coringa sob a ótica de Arthur. Apesar do título fazer referência ao vilão, a grande preocupação da trama é em desenvolver as multi-facetas que permeiam o ser-humano Arthur. O filme é muito mais sobre a jornada de transformação de um homem com distúrbios mentais em um assassino do que o mero retrato de um assassino. Dessa forma, aliado ao forte contexto social inserido na obra, o público vai entendendo, aos poucos, as motivações de Arthur, mesmo que não concorde com as ações. Nesse ínterim, a construção de tal complexidade promove um exercício sincero de empatia, já que, mesmo havendo um julgamento à primeira vista, o público se coloca na situação de Arthur e consegue enxergar o que o leva a cometer tais atos violentos, ainda que não concorde com elas. Aliás, a violência em "Coringa" é nua e crua: totalmente verossímil, capaz de enojar, assustar e tornar cada vez mais imprevisível a trama. Tudo isso corrobora a proposta trazida  pelo diretor: um filme que preza pela reflexão através da ótica de um psicopata. Entretanto, isso só se fez possível devido ao grande mérito do filme: a atuação de Joaquin  Phoenix. Se ele já era considerado um dos melhores de sua geração pelos trabalhos realizados em "Ela", "Johnny & June" e "O Mestre", aqui Phoenix realiza a maior proeza de sua carreira. Embora o personagem seja de difícil interpretação, pela consagrada atuação do falecido Heath Ledger em "Dark Knight", o ator provê uma performance estonteante. Não seria exagero dizer que trata-se de uma das atuações mais impressionantes que já vi na tela do cinema. Os detalhes, os maneirismos, a clara confusão mental, a mudança rápida de feições, a risada descontrolada: tudo é apresentado de maneira tão sofrível por Phoenix que fica impossível não acreditar na existência do Joker. Trata-se de uma atuação que demanda um esforço mental muito grande, um alcance dramático estrondoso, além de uma dedicação física impecável. É por essas e outras que, além de ser um filme de personagem, "Coringa" também é um filme de ator. Portanto, contando com uma levada autoral totalmente bem-vinda, "Coringa" é um profundo estudo de um personagem esférico, com um sub-texto social marcante e que ganha destaque por uma das maiores atuações dos últimos anos. Joaquin Phoenix é assustadoramente fantástico.

Nota: 

- João Hippert