segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Crítica de "Até o Último Homem"

Uma das funções da arte é a de retratar o contexto histórico em que o artista está inserido. Tendo isso em vista, o cinema, comumente, traz à tona temas históricos que definiram a sociedade contemporânea. Dessa forma, a Segunda Guerra Mundial, que foi divisora de águas em diversos aspectos da humanidade, sempre foi muito retratada nas telonas, principalmente em produções norte-americanas, já que são considerados os "vencedores" da guerra. Eis que chega o polêmico Mel Gibson com mais um filme passado na Segunda Guerra Mundial. Dessa vez, acompanhamos a história de Desmond Doss (Andrew Garfield), um médico do exército que por princípios morais/religiosos se recusa a segurar um rifle, mas que é responsável pelo resgate de inúmeros soldados durante a batalha de Okinawa, no Japão.

Há de convir que a história pessoal de Desmond é deveras interessante. O fato de um americano se recusar a usar armas de fogo é um tanto quanto paradoxal e a força da ideologia do soldado sempre comove. Porém, a forma como o filme conta essa história pode ser um pouco desgastada. O roteiro é repleto de diálogos simples e uma estrutura convencional até demais. Isso reforça o grande espírito "americanizado" do filme. Á medida que a projeção se arrasta, percebemos como o filme perde oportunidades de criticar estereótipos e clichês, acentuando-os ainda mais. Basta perceber a imagem dos japoneses para o público. Mesmo que existam algumas pinceladas de como é a cultura japonesa, na maior parte do tempo os soldados do país são retratados como verdadeiros animais, sempre gritando sem motivo algum ou sendo governados somente por instintos grotescos. Por outro lado, o americano é sempre o "moralmente elevado", sentimental e correto. Essa visão arcaica diminui a imersão do espectador no universo do filme.

Além disso, o ritmo inicial é bastante contrastante. Ora o filme se alonga em determinadas situações, ora ele acelera ao extremo. Isso dá ao primeiro ato uma espécie de monotonia indesejada que deixa o público entediado. Somente a partir da guerra em si é que o filme começa a apresentar suas verdadeiras qualidades. Tecnicamente, mesmo sem muitos recursos, o filme impressiona. As cenas de batalha são bastante cruas e sangrentas, remontando ao estilo utilizado pelo diretor em "Coração Valente". Aqui, Mel Gibson tem total controle sobre sua câmera nas cenas de guerra, passeando pelo cenário de forma inteligente, potencializando a tensão a cada frame novo. Além disso, a paleta suja e escura utilizada pelo diretor de fotografia remete ao ambiente hostil e desesperançoso da guerra, remetendo até mesmo ao clássico "O Resgate do Soldado Ryan". Ademais, o filme apresenta uma qualidade sonora impressionante: a mixagem e a edição de som merecem prêmio.

Andrew Garfield é um dos pontos fortes do filme. Mesmo não apresentado uma atuação tão memorável em termos artísticos, o ator possui uma presença e um carisma que nos faz importar com seu personagem. A construção do personagem, mesmo sendo problemática, consegue ser entendida pelo esforço do ator. Hugo Weaving também merece destaque em um atuação extremamente visceral e emocional. Vince Vaughn, interpretando um sargento norte-americano, provê uma interpretação satírica e sarcástica, emulando a icônica cena de "Nascido para Matar". Aliás, isso é algo que o filme faz corriqueiramente. Sempre que somos apresentados a uma cena realmente boa, ela nos remete a alguma outra obra que já fez isso (melhor, inclusive). Assim, mesmo que o filme seja composto por sequências realmente bem feitas, ele apresenta um problema sério de identidade.

Tendo em vista todos os aspectos citados não é difícil entender as 6 indicações ao Oscar. Mesmo sendo um filme razoavelmente bom, o filme é adorado pelos patriotas fanáticos. Mas, se analisarmos friamente, não existe nada novo - e muito menos especial. O longa apresenta inúmeras qualidades técnicas e boas interpretações, mas o discurso antiquado, a falta de identidade e o excesso de patriotismo fazem com que o novo filme de Mel Gibson seja bom, porém esquecível.

Nota: 

- João Hippert

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Crítica de "Eu, Daniel Blake"

Ken Loach é um dos cineastas mais importantes da história da Inglaterra. Isso pode ser dito sem hesitação alguma. O diretor merece tal prestígio não pela sua técnica excepcional com a câmera na mão ou pelos diálogos inesquecíveis, mas sim pela paixão e veracidade que dá aos seus filmes. Quando Ken Loach aparece no cartaz, pode-se esperar algo fora do comum, uma visão crítica da realidade britânica. Como o próprio diretor já disse uma vez "É possível contar histórias no cinema sobre pessoas comuns e seus dilemas. Não é preciso conter estrelas, pessoas ricas ou aventuras absurdas." É exatamente nesse panorama que o vencedor da Palma de Ouro em Cannes "Eu, Daniel Blake" está inserido. O longa conta a história de Daniel Blake (Dave Johns), que após sofrer um ataque cardíaco, precisa se ausentar do trabalho. Começa então sua luta contra o governo a fim de receber os benefícios que lhe convêm. Durante a sua jornada, Blake conhece Katie (Hayley Squires), uma mãe solteira, que acabou de se mudar e também precisa contar com a ajuda estatal.

O roteiro, escrito por Paul Laverty, segue basicamente essa premissa: Daniel Blake tentando provar para os órgãos estatais que não está apto a trabalhar e que merece ganhar um auxílio. Trata-se da jornada de um homem comum, buscando um objetivo comum. E é aí que a genialidade começa a atuar. Logo no início somos apresentados à personalidade de Blake: a princípio ele parece um velho rabugento, desgostoso com a vida. Mas, à medida que a metragem se desenvolve, percebemos os reais motivos que deixam o protagonista com essa aparência. E mais, com o passar do tempo, o público é capaz, facilmente, de se identificar com os entraves de Daniel Blake. A tridimensionalidade que o roteiro dá ao personagem faz com que ele seja extremamente crível e realista. Isso nos faz pensar que é capaz de estarmos andando na rua e, sem querer, toparmos com um Daniel Blake da vida.

Esse realismo está muito seguro na mão de Ken Loach. O diretor usa de movimentos de câmera extremamente discretos, usados de forma a engrandecer a odisseia do personagem. Ora, por ser uma jornada de um homem comum, Loach opta por utilizar artifícios que deixam o longa cada vez mais parecido com a "vida real". A fotografia mais acinzentada, combinada com a ambientação inglesa sempre nublada, reforçam o pessimismo que o filme inspira. Além disso, a ausência de cores primárias dão ao filme um tom melancólico que pode parecer estranho, mas é deveras necessário. Um grande acerto de "Eu, Daniel Blake" é contar uma história universal. Apesar da ambientação toda se passar em território inglês, a trama poderia se passar em qualquer outro lugar do mundo, inclusive no Brasil. Falando em Brasil, o longa lembra em alguns aspectos o excelente "Aquarius", por abordar uma pessoa mais velha lutando contra um órgão muito maior que ela. O fato do personagem ser inglês consegue desmistificar o romantismo de certos filmes que exaltam a vida na Europa como perfeita. Em todos os lugares do mundo a pobreza existe e os marginalizados não contam com o apoio do Estado.

A burocracia é tão grande que o cidadão é colocado de lado. "Preencha isso. Imprima isso. Acesse tal site.". A repetição de tais chavões acontece durante todo o filme, inspirando uma sensação de revolta. Loach nos deixa tão clara a situação verdadeira que é impossível não torcermos para que tudo dê certo da forma mais rápida possível. Além de ser uma crítica à burocratização, o filme também pode ser analisado como uma crítica à exclusão, principalmente a digital. É nítido como o protagonista sofre por não conseguir usar um computador e como sua vida se torna mais complicada por conta disso. Vivemos em um mundo tão repleto de tecnologias que às vezes esquecemos como é difícil para uma geração mais antiga se adaptar. Mesmo que algumas cenas relacionadas ao tema gerem um humor satírico, com o passar do tempo a realidade vai pesando e o espectador reflete. É interessante a forma como o filme passeia por esses temas já corriqueiros sem dar enfoque em nenhum específico: o espectador atento é capaz de encontrar seus próprios indícios e formar seu pensamento crítico.

 Dave Johns está excelente no papel principal. O ator consegue inspirar carisma, comoção e admiração. Apesar de parecer um homem sem mais esperanças, ainda é possível perceber um brilho em seu olhar, que inspira compaixão e afeto. Hayley Squires também se destaca ao interpretar uma mãe extremamente complexada, mas com um amor sincero aos filhos. "Eu, Daniel Blake" se destaca dos demais filmes por, justamente, não parecer um filme. Parece que estamos acompanhando uma história real através de uma janela na rua de Daniel Blake. Essa simplicidade engrandece a crítica social do diretor, pois faz com que seja mais palpável. Ken Loach consegue realizar um trabalho extremamente reflexivo, dotado de inúmeras camadas e sub-textos que dão consistência a uma obra crítica e imprescindível.

Nota: 

- João Hippert

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Crítica de "La La Land: Cantando Estações"

"La La Land" é a febre do momento. Elogiado por onde passa, o filme quebrou o recorde do Globo de Ouro e faturou 7 prêmios (incluindo melhor filme de comédia/musical, roteiro, direção, ator e atriz principais), além de ser um forte candidato ao Oscar de melhor filme. Contudo, premiações como essa não são parâmetro de qualidade. É muito comum vermos filmes medianos se destacando nas disputas, enquanto trabalhos mais autorais ficam de fora. Apesar de "La La Land" parecer um filme clichê e "oscarizado", seu sub-texto impressiona devido as minúcias e devaneios apresentados. O longa conta a história de Sebastian (Ryan Gosling), um pianista de jazz, e Mia, uma aspirante a atriz de cinema. Ambos sonham em fazer sucesso com suas respectivas paixões e seus caminhos se interceptam em Los Angeles: a cidade dos sonhos.

A cena de abertura pode ser considerada, facilmente, uma das melhores do ano. Assim que o filme tem início, somos convidados a entrar em um emaranhado de carros na entrada da cidade de L.A. É perceptível como o diretor preza por mostrar a diversidade de sonhos presentes naqueles jovens, através de um número musical extremamente bem coreografado e filmado. Aliás, não existem cortes aparecentes na cena, o que deixa tudo mais imersível e belo para o espectador. Damien Chazelle passeia sua câmera pelos números de dança e musicais, com um ritmo extremamente hábil e seguro. É nesse ambiente de sonho que somos apresentados aos protagonistas e uma breve cena de contato entre os dois parece não fazer sentido. Todavia, ela é retomada minutos mais tarde para servir como uma excelente rima narrativa.

Aliás, o roteiro original de Damien Chazelle é repleto de rimas narrativas que engrandecem o peso da história. Se anteriormente o diretor/roteirista tinha brilhado com a construção narrativa sufocante de "Whiplash", aqui somos apresentados a um ambiente familiar. Os diálogos entre Sebastian e Mia são extremamente orgânicos e a relação dos dois não segue nenhum clichê romântico. Chazelle até mesmo consegue brincar com esse tipo de coisa, ao enganar o espectador inúmeras vezes durante a metragem. Apesar do texto principal focar na relação entre os protagonistas, o sub-texto revela uma mensagem mais importante: a de seguir os seus sonhos. Mas, mesmo assim, o roteiro não banaliza tal ato a ponto de idealizá-lo; ele entende as dificuldades da vida real e mostra como o resultado de tudo que fazemos tem base em escolhas prévias. Às vezes é preciso tomar decisões que nos fazem afastar de pessoas queridas a fim de alcançarmos aquilo que buscamos.

O filme é uma verdadeira ode ao cinema clássico (não só aos musicais). Aliás, "La La Land" chega para quebrar o tabu de que musicais devem ser "parados", visto que a direção e o roteiro conseguem encaixar perfeitamente as sequências musicais com o resto do filme. O fato de Sebastian ser um pianista de jazz ajuda muito na inserção das canções, que, por si só, são estonteantes. A primeira cena em que "City of Stars" é cantada configura-se como um exemplo de cinema perfeito. A fotografia na cena é utilizada com enorme inteligência, a câmera de Chazelle sabe exatamente onde focar, a melodia é bonita e a atuação de Gosling é extremamente verossímil. Aliás, cenas como essa se repetem durante toda a metragem, tamanha é a qualidade dos profissionais envolvidos.

Mesmo assim, o filme vai além. Se em "Whiplash" acompanhamos um garoto em busca do sonho de ser baterista de jazz, aqui o instrumento usado é o piano. Contudo, a homenagem ao gênero musical continua forte e pertinente. Ryan Gosling está vivendo um dos momentos mais brilhantes de sua carreira. Vindo de excelentes trabalhos em "A Grande Aposta" e "Dois Caras Legais", aqui o ator faz um personagem "romântico", mas realista. Através de diálogos extremamente bem encenados, Gosling consegue passar bem a dicotomia de seu personagem ao espectador. Por outro lado, Emma Stone é o coração do filme. É impossível assistir a "La La Land" sem se encantar profundamente com a atriz. Além de prover uma performance extremamente crível, seus pequenos maneirismos e trejeitos a tornam uma mulher extremamente dócil. Ambos conseguem contracenar com uma naturalidade impressionante, o que potencializa a química entre os personagens.

Além do roteiro ser extremamente completo, a direção de Chazelle impressiona. Seus movimentos de câmera extremamente fluidos, que passeiam pelo cenário, remontam muito ao cinema de Martin Scorsese. A montagem é excelente, assim como o design de produção e a maquiagem. Existem sequências inteiras que emocionam só pela beleza visual. Trata-se de uma obra de arte que merece ser vista no cinema. O inusitado é olharmos a idade do idealizador disso tudo. Damien Chazelle tem 31 anos. Espera-se que o diretor ainda tenha um longo caminho pela frente. "La La Land" é um filme de cinéfilos feito para cinéfilos. A cinematografia de Chazelle impressiona, assim como sua habilidade para construir rimas narrativas, que ajudam Ryan Gosling e Emma Stone a apresentarem atuações inesquecíveis. Se compararmos os elementos cinematográficos com instrumentos musicais, o resultado de "La La Land" é uma canção que ressoa, não só por sua beleza melódica, mas também pela mensagem que quer passar.

Nota: 




- João Hippert

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Crítica de "Assassin's Creed"

O cinema hollywoodiano sempre foi pautado na adaptação de outras mídias para as telonas. Por mais que roteiros originais existam em grande quantidade, a indústria cinematográfica sempre contou com o artifício de recontar algo já existente em um livro ou quadrinho. A partir dos anos 90, com o advento e a massificação dos videogames, tal mídia passou a servir de provedora de roteiros para filmes. Contudo, é um consenso geral que as adaptações de games para cinema não tiveram peso até o momento. Basta lembrar do mais recente "Warcraft": apesar de ser um filme divertido, foi rechaçado pela crítica especializada e não faturou tanto quanto deveria. Seria esse um mercado sem salvação? Eis que chega "Assassin's Creed" para responder tal pergunta. Infelizmente a resposta é alarmante.

O filme acompanha Callum Lynch (Michael Fassbender), que através de um programa que usa da memória genética, descobre que seu antepassado Aguilar era membro da Creda dos Assassinos. Agora no presente, Cal reúne forças para enfrentar os Templários. Trata-se de uma premissa básica, presente em todos os jogos da franquia. Mas o filme se diferencia por um fator muito importante e responsável pela ruína do potencial cinematográfico da obra. O interessante de jogar "Assassin's Creed" é viver em épocas passadas, visitar monumentos históricos, topar com pessoas famosas durante a campanha. Embora o roteiro de Michael Lesslie, Adam Cooper e Bill Collage consiga criar uma mitologia interessante em volta das organizações dos assassinos e templários, isso parece ser ignorado pelo resto da metragem. A maior parte do filme se passa no tempo presente. E, mais, existe um grande contingente de cenas que não dialogam com o propósito da franquia, o que torna o filme genérico demais. O início do longa é bastante promissor e as cenas de ação são bem coreografadas. Tais fatores permitem uma diversão descompromissada, mesmo que o valor artístico seja bem aquém da média.

É decepcionante ver tal potencial perdido, já que a ambientação do ano de 1492 é espetacular. O diretor Justin Kurzel utiliza de uma câmera aérea para mergulhar o espectador naquele universo que permite uma completa imersão. Todas as cenas que se passam na Espanha da época apresentam excelente design de produção, maquiagem, figurino e, até mesmo, montagem. A melhor cena do filme é a de uma perseguição entre as estreitas ruas espanholas. Além do diretor conseguir dinamizar a ação através de movimentos rápidos, algumas opções apresentam rimas com o próprio jogo, causando o chamado "fan service". Mas, tirando isso, o filme não tem muito cabimento. A direção tenta emular um estilo Zack Snyder de direção: utilização de zoom em personagem na batalha, aceleração de pequenos movimentos para aumentar a tensão do combate e as famigeradas cenas em câmera lenta. Apesar de ser bastante estilizado a princípio, esse estilo de direção cansa o espectador com o passar do tempo, principalmente por não sair do lugar comum. As cenas passam a se apresentar de maneira previsível e desinteressante.

O roteiro é extremamente problemático e utiliza de inúmeras incongruências para fazer a história avançar. Existem diversas decisões tomadas pelos personagens que não têm argumento algum, o que prejudica não só a força da trama, mas também o desenvolvimento dos personagens. Apesar do protagonista apresentar potencial para segurar o filme, ele é prejudicado por um roteiro limitado. Os diálogos presentes no filme são deploráveis. É perceptível como aquilo soa decorado e tira a atenção do espectador da história principal. E o pior: isso acontece quando atores como Michael Fassbender, Marion Cotillard e Jeremy Irons estão em cena. Mesmo sendo um elenco de respeito, a falta de peso do diretor e o roteiro medíocre prejudicam as interpretações dos atores. Todos apresentam lampejos de boa performance, mas a inconstância da metragem não dão sequência à qualidade. A personagem de Cotillard parece enigmática a princípio, mas logo se mostra sem profundidade alguma e sem peso em suas decisões. A forma como ela abandona suas verdades é jogada no espectador sem um desenvolvimento prévio. São decisões equivocadas como essa que estimulam o fracasso. "Assassin's Creed" apresenta um elenco mal aproveitado, direção sem originalidade, diálogos intragáveis e personagens esquecíveis. Contudo, existem (seletas) boas cenas de ação que tornam o filme uma opção para diversão despretensiosa, mesmo que com muitas ressalvas.

Nota: 

- João Hippert

domingo, 8 de janeiro de 2017

Crítica de "Moana - Um Mar de Aventuras"

Se existia alguma dúvida acerca da capacidade dos novos filmes da Disney, ela foi eliminada. Desde que a Pixar foi adquirida pela Disney e John Lasseter assumiu o controle, o estúdios mais antigo de animações do cinema têm realizado acerto atrás de acerto. Basta lembrar os últimos dois filmes da produtora: o jovem clássico "Frozen" e o excelente "Zootopia". "Moana" chega para oficializar o que já estava praticamente óbvio: a Disney ainda consegue fazer um cinema de relevância. O filme acompanha a garota Moana, em um mundo fantasioso, onde existem monstros e deuses. Ela sempre é impedida pelo pai de sair da ilha que mora, porém devido a circunstâncias extremas, a heroína precisa viajar o mundo, ao lado do semideus Maui, em uma jornada repleto de perigos e autodescobertas.

Apesar da premissa ser relativamente clichê e convencional, são os devaneios que engrandecem o poder do filme e as discussões que acarreta. Ora, a jornada principal do filme acompanha um semideus e uma pequena garota. Contudo, devido ao excelente desenvolvimento da protagonista e sua forte presença, toda decisão tomada pelo pequeno grupo é feita por parte dela. Mesmo que seja impossível competir com a força e poderes de Mauí, Moana apresenta um sentimento de perseverança e crença em seus próprios objetivos que a fortalecem ainda mais. Trata-se de uma personagem feminina extremamente forte e, por ser um filme voltado ao público infantil, a discussão do empoderamento é pertinente. Se em "Frozen" descobrimos a força das princesas do mundo congelado, em "Zootopia" nos encantamos com a astúcia da coelhinha Judy, "Moana" nos traz uma versão diferente de tudo que já vimos. Como ela mesmo diz, a personagem não é uma princesa, mas sim a filha do chefe da tribo. São pequenos diálogos como esse que servem para quebrar o tabu de que protagonistas femininas precisam ser princesas perfeitas. Moana é uma pessoa cheia de sonhos e medos, como todos nós, ao mesmo tempo que crê veementemente no caminho que trilha. A sua autoconfiança e o desejo de terminar a tarefa a qual se propôs a humanizam de forma tocante. O público é imediatamente impelido a torcer pelo êxito do grupo. É por isso que não há hesitação em afirmar que trata-se de uma das personagens mais relevantes do universo Disney.

A direção de Ron Clements e John Musker é extremamente eficaz. Existe uma limpeza visual que ajuda ao espectador a embarcar naquele mundo. Toda a metragem é muito bem conduzida e os arcos dos personagens são bem realizados. A relação entre Mauí e Moana é um dos pontos altos do filme devido a credibilidade. É muito difícil para Moana conquistar a confiança e o apoio do semideus. Além disso engrandecer as atitudes da protagonista, tal fato dá camadas para a mitologia do filme, visto que um ser superpoderoso deveria ser, realmente, bastante cético em relação aos "mortais". O visual do longa é fantástico, existe um cuidado meticuloso com cada frame animado, além da própria composição dos personagens, que mesmo caricatos, continuam sendo críveis. Vale destacar também a trilha sonora extremamente atuante, com destaque para a música "How Far I'll Go". É impossível não sair do cinema com a melodia na cabeça. Engraçado é que a mesma coisa aconteceu com "Let it Go", e deu no que deu...

Apesar de todos os elogios ao filme, algumas ressalvas precisam ser colocadas em pauta. O primeiro e segundo ato do filme apresentam alguns problemas de ritmo que dão ao filme uma certa lentidão indesejada. Se o desenvolvimento introspectivo de Moana foi feito de forma perfeita, algumas situações pela qual se depara são (às vezes) longas demais e realmente desnecessárias. Além disso, mesmo sendo uma animação musical, o excesso de músicas no filme prejudica um pouco o andamento da história. Há a sensação de que três músicas a menos fariam o filme mais ágil e objetivo. Tais pequenos problemas impedem o filme de ser perfeito, mesmo com toda a sua atualidade e relevância. Mesmo assim, o terceiro ato apresenta um ritmo ideal, contando com grandiosidade nas horas certas e rimas visuais que dão a famosa "recompensa" aos espectadores. É muito interessante ver como tudo resume-se a uma jornada por libertação e pela opção de seguir os próprios desejos. Tomando como base o sub-texto feminista, essa metáfora vale para a própria luta de igualdade das mulheres. E tudo isso em um filme da Disney! É gratificante ver como a nova leva de animações do estúdio consegue aliar uma história encaixada, com questões sociais extremamente atuais. "Moana" conta com uma discussão atual sobre o empoderamento feminino, envolta na metáfora por liberdade de escolha da própria protagonista.

Nota: 

- João Hippert