sábado, 24 de agosto de 2019

Crítica de "Bacurau"

Aparentemente algumas obras precisam existir no momento certo. A cultura é uma das grandes formas de resistência, e o cinema não é diferente disso. É muito triste ouvir dizer "o cinema nacional não vale nada" devido à massificação dos filmes mais bobos, quando, na verdade, possuímos uma riqueza cinematográfica imensa, mais valorizada internacionalmente do que no próprio Brasil. Aliada a isso está a conjuntura nacional, marcada pela disseminação do ódio e pela polarização política, que acaba interferindo no cinema. As produções brasileiras nunca foram tão ameaçadas quanto atualmente, e a ascensão de "Bacurau", inclusive em âmbito internacional (o filme venceu o Prêmio do Júri do Festival de Cannes), representa muito para a indústria nacional, inclusive pela mensagem que permeia o filme. Nesse sentido, é impossível não comparar esse momento do cinema brasileiro com o movimento cultural mais marcante das nossas telonas: o cinema novo. Glauber Rocha, durante o regime militar, dirigia filmes que misturavam a realidade do interior brasileiro com movimentos de câmera que beiravam o absurdo, de modo a ser vértice de uma contracultura importante para a época. "Bacurau" parece beber dessa fonte à medida que conta a história de um pequeno vilarejo no interior de Pernambuco que precisa lidar com ameaças externas. Não é muito bom falar muito mais sobre a história, porque as surpresas fazem parte do enriquecimento da obra, mas uma coisa é certa: as camadas presentes no roteiro saltam os olhos. Ainda que a história se sustente no seu nível mais óbvio, o comentário social do roteiro é demasiadamente reflexivo.

Assim, Kleber Mendonça Filho mostra, mais uma vez, uma incrível capacidade de exaltar a cor local brasileira. Agora em parceria com Juliano Dornelles, o diretor/roteirista de "O Som ao Redor" e "Aquarius" cria um vilarejo que parece estranho ao início, mas que vai se tornando cada vez mais familiar ao longo da metragem. Toda essa familiaridade é construída pela inserção de pequenos detalhes referentes aos costumes da aldeia que a tornam mais real. Por exemplo: logo no início do longa, uma mulher, ao chegar na cidade, ingere uma espécie de erva. Somente ao final da sessão é que o espectador entende o significado daquilo, o que corrobora a personalidade trazida à própria cidade. Mais do que um ambiente, Bacurau parece ser um personagem. Somando-se a isso está o fato do filme se  passar em um "futuro não tão distante", que permite aos roteiristas a criação de situações cômicas envolvendo o uso das tecnologias e que não deixam de ser uma espécie de crítica a determinados comportamentos induzidos pelo excesso de celular, por exemplo. É também válido ressaltar a postura do roteiro frente ao público, já que as informações são apresentadas de maneira lenta e de forma não subestimada. Ainda que o longa seja de uma tranquila interpretação, em nenhum momento percebemos diálogos expositivos que menosprezem a capacidade intelectual do público, o que, por si só, já é muito bom. Além disso, já que a história baseia-se em uma comunidade se defendendo de uma invasão externa, é impossível não relacionarmos com a própria realidade brasileira, tanto histórica quanto atual. Ao valorizar a população de Bacurau com seus costumes e trejeitos, Kleber e Juliano parecem mostrar uma mensagem muito clara: o Brasil tem um núcleo de diversidade muito grande e é nosso papel resistir. Nesse ínterim, também pode-se entender Bacurau-cidade e Bacurau-filme como paralelos de resistência: um enquanto parte de uma história e outra enquanto parte de uma ameaça ao cinema nacional. E o fato da resistência acontecer no interior do Nordeste diz muito sobre a visão dos roteiristas, numa clara forma de valorização afetiva.

Para além de todo o sub-texto sociopolítico, "Bacurau" também impressiona pela sua qualidade técnica. Evocando diversos estilos diferentes, os diretores conseguem potencializar as diversas emoções presentes na tela, de modo a tornar a experiência bem mais visceral. No que tange o retrato dos personagens (principalmente na altura dos rostos) e o artifício da câmera tremida, o já citado Glauber Rocha parece ser uma inspiração clara. Além disso, Kleber e Luciano apostam numa câmera mais comedida para ambientar a cidade de Bacurau e aumentar a tensão das cenas. Desse modo, temos uma câmera calma e contemplativa que vai, de pouco a pouco, cobrindo os diversos detalhes da cidade, combinada com uma trilha sonora muito bem encaixada. Nesse quesito, o filme lembra bastante os western italianos de Sergio Leone, que focavam na ambientação contemplativa do lugar, como forma de demonstrar que o perigo pode chegar a qualquer momento. Por outro lado, as cenas de violência - que causaram polêmica frente àqueles que atacam o cinema nacional - são totalmente justificadas e condizentes com a proposta do filme. Já que "Bacurau" se propõe a ser um expoente da contracultura e expressa a arte enquanto resistência, a violência empregada na obra é simplesmente uma forma de materializar esse simbolismo adjacente, produzindo choque e reflexão no espectador. É como se o Tarantino fizesse um filme com uma cor local genuinamente brasileira e que criticasse qualquer tipo de imperialismo. Seria impossível fazer isso com ausência de violência gráfica.

Ademais, o elenco merece destaque por representarem, de maneira honesta, a realidade proposta pelo filme. Fugindo de qualquer tipo de estereótipo, cada ator e atriz consegue dar camadas aos personagens que se mostram cada vez mais interessantes. O destaque vai para Sônia Braga, em uma atuação completamente diferente daquela feita em "Aquarius", apostando agora no carisma e na comédia para apresentar uma personagem muito forte. Por fim, "Bacurau" se mostra uma experiência completa, que dá orgulho a quem gosta tanto do cinema nacional. Kleber Mendonça Filho consagra-se como um dos grandes idealizadores atuais, dirigindo seu terceiro filme complexo, reflexivo e, principalmente, crítico. Já que o cinema é a forma de arte mais acessível, é sempre importante a presença de obras que tenham o que dizer, ainda mais em um cenário de destaque devido à premiação de Cannes. E, se, em algum momento, um dos invasores diz que "É só o começo", a esperança é de que esse tipo de filme também não esteja sozinho. É muito bonito ver um projeto que aposta na cor local, com a presença de regionalismos e atores não tão conhecidos para valorizar uma história que se baseia em uma crítica social contundente. "Bacurau" é "uma canção singela, brasileira", que inspira resistência, tanto na sua história quanto na sua proposta temática, utilizando-se de um roteiro repleto de sub-textos sociopolíticos relevantes para a conjuntura atual e de uma direção que remonta aos clássicos do Cinema Novo, de modo a se configurar como uma das mais relevantes experiências cinematográficas nacionais dos últimos anos.

Nota: 

- João Hippert

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Crítica de "Era Uma Vez em... Hollywood"

O filme acabou. E eu não tinha a mínima ideia do que eu tinha achado dele. Depois de dias pensando sobre, cheguei a uma conclusão pouco comum no cinema atual: "Era uma Vez em... Hollywood" é um filme que não se encerra com o apagar das luzes da telona. Isso traz uma carga muito grande ao cinema contemporâneo por mostrar que, infelizmente, esse tipo de obra não é corriqueiro. O predomínio dos grandes estúdios, com grandes orçamentos tendem a produzir filmes em massa que investem muito mais no fator "diversão" do que no fator "reflexão". Por isso que a presença de alguns idealizadores do cinema moderno é muito importante a nível "macro", a fim de despertar nas pessoas o interesse pelo cinema enquanto arte - para além do entretenimento. Martin Scorsese, Stanley Kubrick, Alfred Hitchcock, Quentin Tarantino foram/são gênios que conseguiram misturar sucesso entre o público e películas profundas e que tratam sobre temas nada superficiais. Dito isso, chegamos aqui ao nono filme da incrível carreira do roteirista/diretor Quentin Tarantino. Dono de um estilo próprio e instituidor de clássicos , tais como "Cães de Aluguel", "Pulp Fiction" e "Bastados Inglórios" - filmes marcados por diálogos verborrágicos e violência escatológica como parte do estilo -, Tarantino chega aqui com o seu longa mais autorreferencial e mais sóbrio. "Era Uma Vez em... Hollywood" é um retrato do final dos anos 60 em Hollywood, na época considerada de ouro do cinema estadunidense. O roteiro acompanha o ator Rick Dalton (Leonardo DiCaprio), que é completamente inseguro e precisa se adaptar às mudanças da indústria, juntamente com seu dublê/melhor amigo (Cliff Booth). Por outro lado, também acompanhamos um pouco do cotidiano da atriz Sharon Tate (Margot Robbie).

O roteiro de Tarantino busca, diferentemente do que ele mesmo costuma fazer, construir uma atmosfera onírica. Isto é: o filme não se pauta na troca incessante de diálogos entre os personagens, mas sim na apresentação de uma realidade bem definida no tempo e no espaço. Através dos planos longos em que o diretor mostra os diferentes pontos da cidade de Los Angeles e da mescla com os cartazes e programas de televisão da época, Tarantino parece nos querer transportar para um momento histórico do cinema pelo qual ele nutre um carinho profundo. Por isso, "Era Uma Vez em... Hollywood" é muito mais um filme sobre o cotidiano do que sobre uma história que parte de um ponto A para chegar a um ponto B. Para a proposta ser bem sucedida, no entanto, o roteirista apostou em um desenvolvimento deveras profundo dos personagens, que deixam as 2 horas e 40 minutos de metragem inteiramente leves. Rick Dalton é um ator que vive da fama do passado e se mostra inseguro a todo o momento (principalmente depois de ter uma conversa séria com um empresário interpretado pelo brilhante Al Pacino). Somente nesse personagem já conseguimos extrair temas profundos e que dizem muito sobre o estágio atual da carreira do próprio Tarantino, tais como carisma, adaptabilidade e renovação. Grande parte dos anseios do personagem parecem, de fato, transparecer uma opinião genuína do diretor. É como se ele estivesse dizendo: "Será que eu ainda sou protagonista na indústria?". E a resposta é sim. Toda essa reflexão é potencializada pela incrível atuação do sempre excelente Leonardo DiCaprio, que usa de todos os artifícios, tanto físicos quanto emocionais, para transmitir uma imagem completamente sincera de seu personagem e que resulta em alívios cômicos bem pontuados em determinados momentos do filme.

Cliff Booth, por sua vez, é um personagem ambíguo, que dá ao espectador uma falsa noção do que está acontecendo. Explico: apesar de Brad Pitt prover uma atuação completamente carismática, existem alguns acontecimentos passados da vida de Cliff que o colocam nessa linha tênue entre herói e anti-herói. E, para completar o trio principal, está Sharon Tate - a única que realmente existiu na vida real. Aqui, Margot Robbie aposta em uma atuação extremamente angelical e parece ser uma clara homenagem à atriz, que foi brutalmente assassinada ao final daquele ano. Nesse sentido, o tom fabuloso que a obra traz até mesmo no título é personificado na personagem de Margot à medida que ela representa o ideal desse cinema romântico que o diretor parece querer homenagear a todo o tempo. Aliás, o filme é recheado de referências a todo tipo de filme, já que ele trata da própria indústria. Mesmo assim, tais inserções não são vazias: elas têm um sentido de existir e engrandecem a experiência cinematográfica. Um bom exemplo dessas referências está na semelhança de propostas entre "Era Uma Vez em... Hollywood' e o clássico "Era Uma Vez no Oeste" de Sergio Leone. As duas obras apostam em um tom mais contemplativo durante a metragem, investindo no desenvolvimento profundo dos protagonistas e na ambientação perfeita. Não é à toa que o título do filme faça referência a esse grande western italiano. No quesito de direção, a câmera é hábil no sentido de minimizar os cortes: todas as sequências possuem o número de tomadas certo, de forma a proporcionar uma imersão maior. Tal estratégia se ancora na qualidade dos atores que, quando solicitados, desenvolvem muito bem os diálogos propostos pelo roteiro.

Por fim, "Era Uma Vez em.. Hollywood" é uma experiência incomum, que aposta no talento do seu elenco para nos conduzir em uma jornada contemplativa e autorreferencial. É um filme que incita a discussão por, justamente, apresentar camadas diferenciadas em seu roteiro. Escreverei agora uma interpretação pessoal (com spoilers). Toda a construção atmosférica do filme dá a ele um tom fabuloso e de idealização. É como se Tarantino nos estivesse mostrando a visão dele sobre uma época muito rica no cinema, onde tudo parece ser  perfeito. A personagem de Sharon Tate, portanto, parece desempenhar o papel de representar todo esse ideal. Uma atriz talentosa, simpática e querida - símbolo da nostalgia do diretor. Nesse sentido, a cena final na casa de Rick apresenta-se como uma revolta de Tarantino em relação à "morte da inocência". Já que o assassinato de Sharon Tate não ocorre no filme devido à presença de Rick e Cliff na casa ao lado, Tarantino realiz seu revisionismo histórico de modo a preservar uma época que parece ser tão especial a ele. A "não-morte" de Sharon Tate representaria uma espécie de respiro a uma época romântica e idealizada, o que corrobora, no final das contas, a proposta apresentada durante toda a metragem. "Era Uma Vez em... Hollywood" pode não ser o filme mais memorável de Tarantino, mas com certeza é um dos mais reflexivos. O cinema respira.

Nota: 

- João Hippert