quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Crítica de "Pantera Negra"

O cinema, assim como as demais formas de expressão artística, é um retrato da sociedade. Todo filme está inserido em algum contexto sociopolítico que explica muito sobre a sua realização. Infelizmente, o cinema que trata da representatividade negra nunca foi muito divulgado em Hollywood. Basta lembrarmos de uma das últimas apresentações do Oscar, em que nenhum negro foi indicado a categorias de atuação, roteiro e direção. Contudo, o apelo da campanha "Oscar So White" parece, finalmente, começar a fazer efeito, dando maior visibilidade para o surgimento de excelentes cineastas negros que, além de proverem obras com conteúdos fantásticos, também apresentam um forte caráter identitário. Basta lembrarmos do icônico "Moonlight" - vencedor do Oscar de melhor filme do ano passado - e "Corra!": filme elogiadíssimo pela crítica e indicado nas principais categorias desse ano da Academia. Seguindo esse contexto, o grande e poderoso Marvel Studios lança um filme de verdadeiras raízes africanas: "Pantera Negra". Em um momento de busca por representatividade e repressão política ao redor do mundo, o simples fato da Marvel conceber um projeto desses é fabuloso. Porém, "Pantera Negra" não se resume a isso; muito pelo contrário. Sob a direção do ótimo Ryan Coogler (responsável por "Fruitvale Station" e "Creed") e contando com um elenco estrelado, o filme é uma sequência imediata dos acontecimentos de "Capitão América: Guerra Civil" e acompanha o príncipe T'Challa (Chadwick Boseman) em seu retorno ao seu país, Wakanda. Durante a sua coroação, todavia, um rival chamado Erik Killmonger (Michael B. Jordan) surge para reivindicar o trono.

Um dos principais problemas da Marvel em relação a roteiro é a sua fórmula batida que, apesar de eficiente, desgasta o espectador com o passar dos filmes (afinal são 3 filmes por ano do estúdio). O roteiro de Joe Robert Cole e Ryan Coogler, apesar de não se desprender totalmente da fórmula de filmes solos de heróis, consegue fornecer alguns avanços extremamente interessantes, narrativamente falando. Além do próprio T'Challa/ Pantera Negra possuir um arco dramático bem resolvido, emocionante e engrandecedor, os personagens secundários também têm a sua relevância. O próprio vilão do filme foge um pouco de estereótipos maniqueístas. Apesar do roteiro nunca mostrar suas motivações como corretas, elas são compreensíveis, principalmente, devido ao background do personagem. Aliás, quando as revelações sobre a sua vida são feitas o roteiro leva o filme para outro patamar por, justamente, mostrar que todo ser humano é falho, até mesmo o seu maior ídolo. E, quando T'Challa vira rei de Wakanda, ele aprende que não pode responder pelos erros passados, mas sim projetar um futuro melhor. Essa grandiosidade narrativa apresenta um profundo caráter político, já que, com base na diversidade e na aceitação da comunhão entre os povos, o progresso seria atingido. Aliás, o fato de todo esse enredo estar baseado em um país africano de alta tecnologia inverte totalmente a lógica da relação metrópole-colônia, colocando os negros em uma áurea de superioridade notável naquele universo, mas sem nunca demonizar todos os brancos. Nesse quesito, o personagem de Martin Freeman surge como um exemplo útil do bom relacionamento entre as diversas etnias. E, mesmo com tamanho peso, o filme não desvia muito do padrão ao incluir diversos alívios cômicos e gags que dão leveza à narrativa. Embora nem sempre em momentos oportunos, os momentos de descontração são importantes para a fluidez rítmica da metragem.

A direção de Ryan Coogler, cinematograficamente falando, talvez seja o ponto forte do filme. O diretor tem total controle sobre a sua câmera, principalmente nas cenas de ação, fazendo com que todos os movimentos sejam bem entendidos pelo público. Além disso, as cenas de luta são muitíssimo bem coreografadas, dando ao filme uma grandeza épica deveras interessante. A fotografia também merece destaque: existem quadros do longa que são simplesmente fantásticos e os enquadramentos usados por Coogler reforçam o poder das cores e todo o simbolismo visual de cada passagem. Como uma das grandes virtudes do filme é a representatividade, os figurinos e a maquiagem que remetem às diferentes tribos africanas simbolizadas pelas tribos que compõem Wakanda são bem acabados, com uma explosão de cores e artefatos que geram estranheza inicial no espectador ocidental, porém, com o passar do tempo, tais traços tornam-se corriqueiros na tela. Nesse quesito, a obra acerta muito em expandir o Universo Marvel nos próprios costumes de Wakanda, sendo os diferentes rituais, a língua e a religião partes importantes, inclusive, da trama. Todo esse cuidado narrativo e estético possui respaldo na excentricidade do próprio filme, haja vista que o longa concentra-se na sua própria história, sem se preocupar com a inserção de outros heróis da Marvel. Felizmente, o Homem de Ferro não aparecer para salvar o dia. Tratando-se de elenco, o longa apresenta atores em grande forma. Lupita Nyong'o, Danai Gurira, Daniel Kaluuya, Leticia Wright, Michael B. Jordan, Chadwick Boseman... Todos estão muito bem, com destaque à relação herói-vilão entre Boseman e Jordan. Este, em sua terceira participação em filmes do diretor, apresenta carisma suficiente para prover um nêmesis à altura do herói, também muito bem desenvolvido devido à forte presença de Boseman.

Outro ponto interessantíssimo do roteiro é a sua semelhança com "O Rei Leão" que, por sua vez, é uma releitura de "Hamlet". Isso não significa falta de originalidade, mas a diferente roupagem que essa história apresenta aqui vale o ingresso. Um "O Rei Leão" situado em um país mítico do Universo Marvel foi capaz de dar certo devido ao cuidado das diferentes partes responsáveis pelo filme. Vale ressaltar a trilha sonora genial de Kendrick Lamar, capaz de se encaixar perfeitamente com os diversos momentos da sessão (o álbum "Black Panther", disponível também nas plataformas digitais, é excelente). É tanto esmero na produção de "Pantera Negra" que o filme assume tons grandiosos demais. Mesmo não sendo um filme perfeito cinematograficamente, devido a algumas convenções de roteiro aqui e outros furos ali, o longa se assemelha com "Mulher Maravilha", por representar uma parcela da população historicamente excluída e discriminada. Mais do que como filme, "Pantera Negra" precisa ser visto como uma obra político-social de representação. Surgindo como um "Rei Leão" da Marvel, o longa apresenta cenas de ação empolgantes, arcos bem desenvolvidos e uma estonteante cinematografia, fatores que fazem a obra fugir das convenções do gênero e se assumir como um importante filme.

Nota: 

- João Hippert

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