domingo, 22 de dezembro de 2019

Crítica de "Parasita"

É interessante notar, sob uma perspectiva um tanto quanto sociológica, que, em determinados momentos da história da humanidade, as diferentes obras de arte convergem na discussão de um mesmo tema. 2019 parece que foi, no cinema, o ano em que se tratou da desigualdade, em seus diversos âmbitos possíveis. Aquela velha máxima de que quanto maior o abismo social existente, maior é a incidência de violência. Uma realidade presente em todo o mundo, desde o nosso tão familiar contexto de subdesenvolvimento até aqueles países ditos desenvolvidos. A percepção interessante de ser ter em relação aos melhores filmes do ano giram em torno disso. No Brasil, por exemplo, fomos presenteados com a obra "Bacurau". Polêmico, violento, metafórico: o filme apresenta diversas camadas interessantes, mas a que parece ser mais evidente é a do grande contexto de desigualdade. Desigualdade esta que chega a criar na mente da classe dominante um sentimento de que o outro é inferior, de alguma forma diferente. Em "Bacurau" vemos isso na maneira nítida que os personagens estadunidenses se dirigem ao interior de Pernambuco para realizar seus desejos mais sórdidos. Enquanto a população de Bacurau busca apenas manter sua vida pacata, o desejo dos americanos é de dominar e tratar aquela população de maneira completamente desumanizada. A desigualdade aqui seria justamente entre os países detentores do capital e aqueles que acabam servindo como fantoche para as grandes potências econômicas. Outro filme marcante no ano é "Coringa". O longa de Todd Phillips aborda a questão no tratamento que a sociedade dá a um doente mental. A desigualdade aqui reitera a não-aceitação ao diferente e demonstra o que a falta de oportunidades pode fazer.

 A comparação temática entre os dois filmes citados (nota-se que um é brasileiro e outro é hollywoodiano) nos faz chegar a "Parasita". Vencedor da Palma de Ouro em Cannes, o filme sul-coreano aborda o cotidiano da família Kim, que mora no subúrbio da cidade, sem uma renda fixa. Isso muda quando o filho Ki-woo consegue o emprego de professor particular na casa de uma família rica - a família Park - e busca inserir os seus próprios entes naquele contexto. O grande mérito do roteiro de Bong Joon Ho e Jin Won Han é trabalhar de maneira inteligente com o elemento surpresa. O filme é repleto de reviravoltas surpreendentes que alteram completamente o rumo da história. Mesmo assim, tais "twists" apresentam razão de ser; eles engrandecem a riqueza da narrativa. Isso se dá também pela preocupação do roteiro em humanizar os personagens, dando camadas interessantes a eles. Inicialmente, somos impelidos a gostar da família Kim pela simplicidade com que levam a vida. Não chega a ser uma "glamourização" da pobreza, mas o carisma com que a família é apresentada é fundamental para que torçamos para o seu sucesso. Repare que, inicialmente, o filho tem suas dúvidas quanto a dar a aula particular por não estar na faculdade. A solução encontrada é a de falsificar o documento. O interessante de notar, no entanto, é o discurso do rapaz ao sair de casa: "Isso aqui é temporário. No ano que vem estarei cursando uma faculdade de verdade". Essa pequena flexibilização moral abre caminho para os diversos acontecimentos que virão na história, mas é interessante notar como o filme aborda toda essa questão social. Assim como "Coringa" não ameniza a crítica aos comportamentos doentios do seu protagonista, "Parasita" também não o faz. Mas, ao mesmo tempo, ele apresenta, de maneira clara, que o jogo não é justo e, através desses pequenos dilemas morais, coloca o espectador para pensar: "Será que eu não agiria da mesma forma sob essas circunstâncias?".

 Outro grande mérito do "script" é retratar a família Park da maneira mais dócil possível, fugindo de uma possível construção maniqueísta. Ora, o filme trata justamente da dicotomia entre uma família pobre e que busca emprego formal para melhorar suas condições e uma família rica, que já tem tudo nas mãos. Entretanto, essa família rica é tratada de forma muito gentil: todos parecem tranquilos, pessoas que tratam o outro de maneira digna. Assim, a crítica que "Parasita" faz é muito mais contundente, já que não fica limitada a um contexto em si. A família Park é produto de um contexto desigual que cria tais situações, mas não tem culpa por isso. Essa inversão da lógica maniqueísta é extremamente positiva para a trama e acrescenta sub-textos deveras interessantes. Ademais, a direção de Bong Joon Ho ("O Hospedeiro", "Expresso do Amanhã") também é um ponto alto do filme. Ele é capaz de criar situações através do movimento de câmera que demonstram uma técnica muito refinada. Apesar de todo esse contexto social em que "Parasita" está inserido, ainda estamos falando de um filme que, na maior parte do tempo, flerta com o suspense. Desse modo, as diversas escolhas narrativas feitas ao longo da metragem necessita de uma direção bastante segura a fim de que as emoções tiradas do espectador sejam certeiras. E isso é feito com maestria, já que "Parasita" consegue ser tenso na maior parte do tempo, além de prender a atenção durante toda a projeção. Além disso, o diretor conta com a ajuda de uma mixagem de som e uma montagem que engradecem a obra, deixando a história mais fluida. "Parasita" é um filme enérgico quando precisa, mas também não se exime de ter a calma necessária para apresentar os personagens. Isso tudo é feito por meio de diálogos muito bem escritos que, em nenhum momento, pesam para a exposição gratuita. O espectador consegue identificar as relações em tela através das pequenas falas cotidianas de cada um. Isso é um mérito muito grande, afinal trata o público de maneira inteligente e deixa tudo mais palpável.

Por fim, chegamos a uma discussão a respeito do título. No final das contas, quem é o parasita? Seriam os membros da família Kim por tentarem enganar os Park? Ou o título trata da intensa desigualdade que faz com que as relações humanas sejam um verdadeiro contraste entre hospedeiro e parasita? Aqui, é interessante notar que não existe apenas um resposta correta. "Parasita" é um filme que faz pensar justamente por deixar muitas reflexões no ar. E estas são acompanhadas por um roteiro envolvente, uma direção segura e um elenco afiadíssimo. Não é por um acaso que o filme está cotado para as grandes premiações da temporada: "Parasita" é, de fato, muito bom. Contando com um sub-texto social marcante, o longa sul-coreano é uma experiência altamente imersiva, tensa, reflexiva, configurando-se como um dos melhores filmes do ano.

Nota: 

- João Hippert

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