quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Crítica de "A Vida Invisível"

Uma constatação óbvia para qualquer cinéfilo e que gosta de discorrer acerca da sétima arte é a de que filmes bons aquecem o coração. A experiência de assistir um filme, por si só, já é um deleite, um refúgio. É o momento de se desconectar da realidade e viver uma história nova, diferente. Nem sempre, contudo, essas experiências são completamente satisfatórias. Mas quando são... Talvez seja o ápice para os amantes do cinema: sair da sala e ter a certeza, naquele exato momento, de que acabara de assistir algo especial. Assim, ver um filme genuinamente bom é uma experiência marcante, uma satisfação quase que instantânea. Dito isso, eu gostaria de acrescentar que, quando isso acontece por um filme nacional, a sensação é ainda mais poderosa. Vivemos em um país que, pouco a pouco, vai acabando com as oportunidades culturais, principalmente para as camadas mais pobres. No quesito cinema, isso é claro: o paradigma é de extinção das salas de cinema de rua, e uma maior inserção nos shoppings, onde o ingresso é mais caro e o público mais elitizado. Ao mesmo tempo, tais salas são dominadas pelas grandes produções hollywoodianas que acabam por, praticamente, monopolizar as sessões. Aqui é válido ressaltar que a discussão não é concernente à qualidade dessas obras ("Vingadores: Ultimato" é um dos meus filmes preferidos do ano, por exemplo), mas sim ao seu amplo domínio. É cada vez mais difícil ter acesso aos filmes feitos no nosso próprio país, ainda mais levando em conta a efervescência política que rodeia as nossas produções. Quando "Bacurau" se apresentou nesse ano, o mundo dos cinéfilos parou. Arrebatador, crítico, reflexivo: todos os ingredientes que o público brasileiro necessitava diante desse contexto. Depois desse choque, "A Vida Invisível" chega para emocionar, acalentar e nos transportar para uma história simples, mas que diz muito sobre o Brasil.

A sinopse resumida da obra é a de que se trata de uma história de duas irmãs, Eurídice e Guida, que moram no Rio de Janeiro ao final dos anos 1950. Por consequências de suas escolhas, as irmãs são separadas e buscam, de alguma forma, retomar o contato. O roteiro de Murilo Hauser é um daqueles que busca, através das nuances narrativas, explorar os temas relevantes para a história. Assim, a narrativa principal assume o papel de plano de fundo para uma verdadeira imersão na vida carioca do final dos anos 50. Como a história acompanha duas personagens femininas, o machismo enraizado na sociedade brasileira é perceptível desde o princípio. O filme brilha em abordar esse tipo de comportamento reiterado de forma a deixar o público incomodado. O brilhantismo está, justamente, na falta de radicalismo. Explico: o roteirista optou por não "demonizar" a figura de nenhum personagem em específico. Por exemplo: o personagem de Gregório Duvivier se mostra como um verdadeiro retrato de seu tempo. Ele tem uma concepção patriarcal da família, mas em nenhum tempo se mostra exagerado ou agressivo quanto a isso. Um filme que não fosse tão perspicaz talvez utilizasse do seu personagem para ser uma espécie de "vilão", o que poderia, até mesmo, diluir a crítica social proposta pelo filme. Apesar disso, os comportamentos pelos diferentes personagens ao longo da metragem demonstram como tal tipo de visão a respeito do papel da mulher na sociedade é algo estrutural. E, mesmo que o filme trate de tempos remotos, fica visível a permanência de certas atitudes que já deveriam ser erradicadas há muito tempo, mas que ainda persistem na sociedade brasileira. Dessa forma, "A Vida Invisível" se torna importante, também, do ponto de vista histórico para demonstrar, de maneira muito verdadeira, os hábitos e comportamentos machistas por parte de toda a sociedade, como forma de tirar um pouco do "glamour" que os livros de história costumam dar a esse período.

A direção de Karim Aïnouz também segue nessa linha ao tornar a experiência mais impactante para o espectador. O ritmo do filme é muito bem orquestrado: isso também se dá pela ótima trilha sonora que permeia a maioria dos acontecimentos da história e dão uma certa suavidade ao enredo. Mas talvez o grande mérito de Karim é conseguir potencializar os sentimentos do espectador, ao longo de toda a metragem. Como já dito, o tratamento desigual é algo que incomoda durante toda a projeção. Contudo, as relações entre as personagens possuem uma força tão grande que acabam se tornando o grande cerne do filme. O amor entre as irmãs, a admiração, a dificuldade de ser quem você é em um ambiente discriminatório: tudo isso amplifica o sentimento de empatia no público e o consequente apego com a narrativa. Do início ao fim somos impelidos a torcer pelo sucesso de Eurídice e Guida, mesmo sabendo que as chances não são muito favoráveis. Isso se dá pela sinceridade pelo qual o amor entre elas é transmitido. Acaba que esse sentimento fraternal tão único talvez seja um dos poucos elos que nos identificam com tantas histórias diferentes ao longo da vida. E o mérito do diretor em passar isso de maneira honesta, delicada, mas também brutal torna "A Vida Invisível" uma das obras mais emocionantes do ano. Além disso, o tema "família" também é muito debatido. Começamos o longa na casa de um casal de portugueses, extremamente tradicionais, e suas duas filhas. Somente ali já conseguimos identificar o padrão de família tradicional brasileira: arraigado a valores morais e religiosos que talvez perpassam a felicidade dos próprios indivíduos da família. Essa crítica, de certo modo sutil, vem à tona quando entendemos a jornada de Guida, principalmente, na construção de uma nova família. Família esta que não tem nenhuma das características tradicionais, mas que é pautada no amor e no cuidado com o outro. Talvez uma das grandes mensagens do filme seja justamente essa: podemos encontrar família nos lugares mais improváveis. A poesia desse tipo de afirmativa impressiona.

Por fim, é impossível não sentir o impacto que o título do longa traz consigo. A invisibilidade está justamente na luta das duas irmãs para alcançarem seus sonhos. Desde os anseios mais básicos até os sonhos mais distantes, como o de ser um grande pianista, por exemplo; tudo parece ter um peso diferente para elas. É como se elas tivessem que correr atrás não só dos seus objetivos, mas pela sua própria voz e visibilidade. Essa força narrativa é o grande charme por trás de "A Vida Invisível". E é claro que todo esse mérito também perpassa pelo excelente trabalho da dupla de protagonistas: Julia Stockler e Carol Duarte. Elas são hábeis em transmitir as emoções de maneira genuína, sendo capazes, inclusive, de delimitar de maneira perfeita o tempo em que estão inseridas através de gestos e expressões da época. Mesmo que as atrizes não tenham uma carreira consolidada até aqui, a confiança com que elas carregam a metragem é digna de muito reconhecimento. Por fim, quanto ao elenco, é impossível não citar a participação de Fernanda Montenegro. É impressionante a quantidade de emoção que ela é capaz de transmitir apenas com o olhar. A cena em que ela lê uma carta é uma das cenas mais impactantes que vi no ano. Sua presença vem para coroar um excelente trabalho do elenco. Aliás, é muito bom perceber que os diferentes âmbitos cinematográficos são tratados com muito esmero, o que eleva ainda mais a qualidade da  obra. Não é à toa que "A Vida Invisível" pode ser o representante do Brasil no Oscar de filme estrangeiro e não seria surpresa se fosse indicado. Trata-se de uma obra que trata da discriminação - um tema universal e que vem se mostrado cada vez mais atual. "A Vida Invisível" surge como uma obra que valoriza o amor na sua mais pura forma, utilizando de sutilezas do roteiro para fazer uma análise profunda acerca das raízes do patriarcalismo brasileiro.

Nota: 

- João Hippert

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