O roteiro, escrito por Paul Laverty, segue basicamente essa premissa: Daniel Blake tentando provar para os órgãos estatais que não está apto a trabalhar e que merece ganhar um auxílio. Trata-se da jornada de um homem comum, buscando um objetivo comum. E é aí que a genialidade começa a atuar. Logo no início somos apresentados à personalidade de Blake: a princípio ele parece um velho rabugento, desgostoso com a vida. Mas, à medida que a metragem se desenvolve, percebemos os reais motivos que deixam o protagonista com essa aparência. E mais, com o passar do tempo, o público é capaz, facilmente, de se identificar com os entraves de Daniel Blake. A tridimensionalidade que o roteiro dá ao personagem faz com que ele seja extremamente crível e realista. Isso nos faz pensar que é capaz de estarmos andando na rua e, sem querer, toparmos com um Daniel Blake da vida.
Esse realismo está muito seguro na mão de Ken Loach. O diretor usa de movimentos de câmera extremamente discretos, usados de forma a engrandecer a odisseia do personagem. Ora, por ser uma jornada de um homem comum, Loach opta por utilizar artifícios que deixam o longa cada vez mais parecido com a "vida real". A fotografia mais acinzentada, combinada com a ambientação inglesa sempre nublada, reforçam o pessimismo que o filme inspira. Além disso, a ausência de cores primárias dão ao filme um tom melancólico que pode parecer estranho, mas é deveras necessário. Um grande acerto de "Eu, Daniel Blake" é contar uma história universal. Apesar da ambientação toda se passar em território inglês, a trama poderia se passar em qualquer outro lugar do mundo, inclusive no Brasil. Falando em Brasil, o longa lembra em alguns aspectos o excelente "Aquarius", por abordar uma pessoa mais velha lutando contra um órgão muito maior que ela. O fato do personagem ser inglês consegue desmistificar o romantismo de certos filmes que exaltam a vida na Europa como perfeita. Em todos os lugares do mundo a pobreza existe e os marginalizados não contam com o apoio do Estado.
A burocracia é tão grande que o cidadão é colocado de lado. "Preencha isso. Imprima isso. Acesse tal site.". A repetição de tais chavões acontece durante todo o filme, inspirando uma sensação de revolta. Loach nos deixa tão clara a situação verdadeira que é impossível não torcermos para que tudo dê certo da forma mais rápida possível. Além de ser uma crítica à burocratização, o filme também pode ser analisado como uma crítica à exclusão, principalmente a digital. É nítido como o protagonista sofre por não conseguir usar um computador e como sua vida se torna mais complicada por conta disso. Vivemos em um mundo tão repleto de tecnologias que às vezes esquecemos como é difícil para uma geração mais antiga se adaptar. Mesmo que algumas cenas relacionadas ao tema gerem um humor satírico, com o passar do tempo a realidade vai pesando e o espectador reflete. É interessante a forma como o filme passeia por esses temas já corriqueiros sem dar enfoque em nenhum específico: o espectador atento é capaz de encontrar seus próprios indícios e formar seu pensamento crítico.
Dave Johns está excelente no papel principal. O ator consegue inspirar carisma, comoção e admiração. Apesar de parecer um homem sem mais esperanças, ainda é possível perceber um brilho em seu olhar, que inspira compaixão e afeto. Hayley Squires também se destaca ao interpretar uma mãe extremamente complexada, mas com um amor sincero aos filhos. "Eu, Daniel Blake" se destaca dos demais filmes por, justamente, não parecer um filme. Parece que estamos acompanhando uma história real através de uma janela na rua de Daniel Blake. Essa simplicidade engrandece a crítica social do diretor, pois faz com que seja mais palpável. Ken Loach consegue realizar um trabalho extremamente reflexivo, dotado de inúmeras camadas e sub-textos que dão consistência a uma obra crítica e imprescindível.
Nota:
- João Hippert
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