segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Crítica de "Bird Box"

O mercado cinematográfico está mudando. Inicialmente surgindo como uma espécie de "locadora virtual", a Netflix, com o passar dos anos, parece ter entendido a nova dinâmica que o mercado propõe. Não vale mais tanto a pena apenas reproduzir conteúdos de outros estúdios, mas investir em produções originais. Com essa mudança de paradigma, vê-se a emergência de um novo conflito: filmes feitos para o cinema x filmes feitos para o streaming. Embora seja uma discussão polêmica acerca da banalização das salas de cinema, é extremamente válido ressaltar a acessibilidade que isso traz, tanto por parte do público, que tem mais acesso a diferentes obras, quanto aos criadores, que têm mais espaço para divulgar suas produções. É nesse contexto que surge "Bird Box" - o mais novo filme original da Netflix, que entra no catálogo dia 21 de Dezembro. O filme se passa em um futuro pós-apocalíptico, em que criaturas começam a instigar suicídios coletivos por meio de contato visual. Acompanhamos então a jornada de Malorie (Sandra Bullock), em sua luta pela sobrevivência, acompanhada de diferentes companheiros ao longo do caminho e tendo que proteger duas crianças.

O gênero do suspense/horror é um daqueles que foram subestimados por muito tempo e agora parece que está retomando seu prestígio merecido. Talvez a quantidade excessiva de filmes rasos sobre o gênero tenha gerado uma espécie de preconceito, principalmente por parte da crítica, o que dificulta, ainda mais, o surgimento de películas relevantes que envolvam elementos do gênero. Nos últimos anos, contudo, esse contexto parece ter mudado, tendo em vista o surgimento de diversas obras que usam do terror como plano de fundo para o desenvolvimento de uma busca por humanidade. Não é o terror só pelo terror; mas sim o terror como motor de crítica, de desenvolvimento de personagens e, até mesmo, como conceito filosófico. 2018 mesmo foi um ano muito válido para o gênero, com a presença de duas excelentes obras: "Hereditário" e "Um Lugar Silencioso". Este último tem uma semelhança inegável com "Bird Box", mas é interessante notar como uma abordagem diferente é capaz de distanciá-los tanto. Conceitualmente os filmes se parecem, pois tratam de uma vida pós-apocalíptica em meio ao silêncio ("Um Lugar Silencioso") ou em meio à falta de visão ("Bird Box"). Porém, enquanto um desenvolve a família, o outro desenvolve a maternidade. E é por isso que não pensaria em ninguém melhor que Sandra Bullock para desempenhar esse papel.

Sandra Bullock merece todo o reconhecimento pela entrega emocional - e física - que realiza aqui. Tendo em vista essa versatilidade exigida pelo filme, lembramos de sua atuação memorável em "Gravidade", mas aqui Bullock parece ainda mais segura e apegada ao papel. "Bird Box" é um daqueles filmes que depende crucialmente de uma protagonista envolvida com a história e capaz de desenvolver o arco de sua personagem de forma crível e empática. Bullock faz isso, ao conseguir demonstrar as fragilidades de Malorie, ao mesmo tempo que nunca deixa de transparecer uma força inabalável. Ao início da projeção, percebemos que Malorie é uma mulher amargurada e que, apesar de grávida, não consegue criar laços afetivos muito fortes, tampouco com seu bebê. O único contraponto a essa indiferença de Malorie é sua irmã Jessica (Sarah Paulson), que parece trazer vivacidade à personagem e a interação entre as duas é tão fluida que o público parece imergir naquela relação. Com os acontecimentos que o filme propõe, entretanto, Malorie passa por essa jornada de desenvolver relações afetivas em meio ao caos, sendo todo seu caminho uma grande jornada para o próprio processo de entendimento do que é a maternidade - mesmo que não seja uma definição fechada. É por isso que "Bird Box" torna-se tão reflexivo e impactante: ele faz aquilo que o gênero oferece de mais genial. Existe o desenvolvimento de um conceito interessante e original, mas a história dos personagens se sobressai em meio a um universo que é um cenário para todo aquele desenvolvimento.

O roteiro, escrito por Erick Heisserer ("A Chegada") e adaptado de um livro, tem uma estrutura linear, mas nunca previsível. Apesar de dividir a história em duas linhas temporais distintas, sendo que uma é a consequência da outra, o espectador não se vê decepcionado por saber o que esperar da parte final. Muito pelo contrário. O esmero de Heisserer aqui é focar na jornada e não no resultado final. Nesse sentido, o "storytelling" de "Bird Box" lembra muito o auge da série "The Walking Dead", em que o cenário pós-apocalíptico promove discussões morais pertinentes e introduz desafios extremamente visuais aos personagens. Por exemplo, a sequência em que os personagens precisam ir no mercado para pegar provisões, mas não podem enxergar é deveras tensa, além de desenvolver muito bem o conceito daquele universo. Além do conceito em si, os personagens apresentam profundidade e não caem no maniqueísmo de herói e vilão. Vale destacar a presença de Trevante Rhodes ("Moonlight") e John Malkovich que, juntamente com Sarah Paulson, formam um dos melhores elencos de coadjuvantes do ano. Ademais, a direção de Susanne Bier é digna de aplausos por potencializar todas as emoções propostas pelo roteiro e encenadas pelos atores. "Bird Box" é uma experiência intensa à medida que a tensão é grande, assim como o medo, a empatia, a angústia e a emoção. Não é um filme que passa batido; ele chega e impacta de uma forma muito grande. Usando do gênero pós apocalíptico como um subterfúgio para a reflexão filosófica acerca da maternidade, "Bird Box" é tenso, ágil e impactante, contando com uma atuação primorosa de Sandra Bullock.

Nota: 

- João Hippert

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