quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Crítica de "Roma"

Alfonso Cuarón. Você provavelmente já ouviu esse nome, afinal Cuarón é responsável por grandes obras hollywoodianas. "Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban", "Filhos da Esperança", "Gravidade" são alguns dos títulos cuja responsabilidade é do diretor, portanto sua qualidade é inegável. Mas, todos esses diretores que não são estadunidenses, acabam sendo refém dos estúdios na elaboração dos filmes. Não que isso seja ruim, afinal um bom diretor sabe trabalhar com o que tem, mas talvez não seja o desejo artístico total daquele idealizador. É por isso que, de tempos em tempos, nos deparamos com os jargões "o filme da vida do diretor x" ou "o diretor x nunca mais vai ser o mesmo depois desse filme". Bom, para falar a verdade, é exatamente essa a sensação que esse filme passa. Planejado desde 2006, "Roma" conta a história de uma família no México da década de 1970, apresentando seu cotidiano, seus desafios, contando com um quê biográfico, segundo o próprio diretor. O filme acompanha a empregada doméstica Cleo (Yalitza Aparicio), que desenvolve uma relação de afeto muito grande com os filhos dos patrões, o que remete a uma antiga cuidadora do próprio Cuarón.

Tendo em vista esse contexto biográfico, o filme se baseia em memórias: devaneios de um tempo perdido, em que as lembranças sobrepujadas se confundem em meio a tanta afetividade. Nesse sentido, o roteiro de Cuarón foca muito mais na relação entre os personagens, no retrato cotidiano daquela família, do que em uma narrativa muito elaborada. Ora, é como se o espectador estivesse ouvindo o próprio diretor contar a história de sua infância, por meio de um roteiro extremamente introspectivo. Aqui, Cuarón exibe um imenso cuidado em conferir sensibilidade às situações: a emoção é genuína justamente por ser real. Tudo em "Roma" é muito sincero e bonito, na acepção mais pura da palavra. E é impossível negar o quanto essa história tem uma relação especial com o povo latino-americano, devido aos costumes parecidos e o passado recente em comum. Tomadas as devidas proporções, "Roma" lembra muito o excelente filme brasileiro "Que Horas ela Volta?", mas é interessante notar como cada filme foca na cultura que quer apresentar, e tudo isso com um esmero elevadíssimo. Ademais, vale ressaltar o arco da protagonista Cléo, que, apesar de ter uma estrutura simples, apresenta complexidade justamente na construção da personagem: sensível, humilde e refém de um sistema que talvez nem ela é capaz de enxergar. Cléo é uma daquelas babás que se relacionam mais com os filhos dos patrões do que a própria mãe deles. E, mesmo que cuidar das crianças faça parte do trabalho da moça, é tocante ver o carinho e a dedicação de Cleo, o que realça ainda mais o tom nostálgico que o diretor parece querer conferir ao longa.

Nesse ínterim, a direção de Cuarón apresenta sua nostalgia através de uma fotografia em preto e branco esplendorosa (Cuarón também é o diretor de fotografia do filme). É interessante notar o contraste que a narrativa apresenta em relação ao visual, já que a fotografia em preto e branco expressa um dos momentos mais coloridos da vida de uma pessoa: a infância. Mesmo assim, o uso de tal fotografia acrescenta um tom "retrô" especial ao filme e, mais uma vez, reflete o quesito das memórias. "Roma" é um filme sobre memórias, sobre o passado, e a utilização do preto e branco realça esse propósito. Por outro lado, a câmera de Cuarón é bastante comedida. Não vemos aqui nenhuma movimentação energética (como vimos em "Gravidade", por exemplo), mas sim uma câmera que dá cadência ao andamento do longa. Cuarón parece focar na construção de um ambiente imersivo, através de tomadas lentas e contemplativas. Ao mesmo tempo que a fotografia auxilia nessa composição visual fantástica, a inserção de pequenos objetos inerentes à cultura mexicana realçam o realismo daquela casa. Nesse sentido, "Roma" se apresenta como um verdadeiro desfile de quadros em preto e branco, repleto de inspiração, sensibilidade e nostalgia. Como pode-se perceber, no entanto, trata-se de um filme com um público seleto. É muito mais sobre contemplação do que desenvolvimento de história, o que pode trazer enfado ao espectador mais desavisado. Porém, para aqueles fãs de um cinema original e honesto, a obra é imperdível.

E quando eu disse que "Roma" é o filme da vida de Cuarón, basta vermos o trabalho que ele teve para concebê-lo. Além de diretor, roteirista e diretor de fotografia, o mexicano também participou da edição do longa. É perceptível a alma que Cuarón emprega nessa idealização, juntamente com a coragem de voltar às raízes, principalmente em tempos tão conturbadas. Apesar de não ser um filme de caráter político, é relevante percebermos que "Roma" é um filme de um diretor mexicano nos EUA sobre uma época em que a ditadura militar comandava o México - e a sequência em que somos apresentados àquele ambiente hostil é arrebatadora. Mesmo assim, Cuarón não se prende a um possível maniqueísmo pedante para fazer uma crítica muito mais sutil e impactante. Aqui vemos um México repleto de desgiualdade social, pobreza, violência. Mas também um país de festas, de esperança e de afeto. Cuarón compreende isso à medida que dá tom leve à direção e assina um roteiro repleto de sensibilidade. Não é a toa que "Roma" é um anagrama perfeito de "Amor", pois as memórias afetivas, mesmo que estejam em preto e branco, têm um pedaço muito especial no nosso coração.

Nota: 

- João Hippert

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