sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Crítica de "Green Book: O Guia"

Aparentemente, Hollywood vem se esforçando cada vez mais para realizar filmes sobre a segregação racial existente no país. Desde a polêmica do "Oscar So White", filmes relevantes que abordam a temática vem sendo lançados e reconhecidos, tanto por parte do público, quanto pela crítica e premiações. Basta lembrarmos dos sucessos recentes, vencedores do Oscar de melhor filme: "12 Anos de Escravidão" e "Moonlight", a título de exemplo. 2018, no entanto, mostrou-se um ano extremamente rico nessa temática, provendo películas com abordagens diferentes, mas convergentes quanto à mensagem. Por um lado tivemos "Pantera Negra": um marco histórico do cinema mundial, sendo o primeiro filme de super-herói a ser indicado na categoria de melhor filme do Oscar. Por outro, (não é exagero falar) uma das melhores animações já feitas: "Homem-Aranha no Aranhaverso". Mas, o que chama a atenção desse ano e, principalmente, dessa temporada de premiações, é a presença de "Infiltrado na Klan" e "Green Book", já que eles são filmes que representam muito bem a capacidade de escolha diferente de cada cineasta em fazer uma crítica social. Se em "Infiltrado na Klan" temos um Spike Lee afiado na sátira e no impacto, "Green Book" se apresenta como um filme até mesmo familiar, pautado muito mais nas entrelinhas, do que no alarde. O filme se passa no início dos anos 1960 e acompanha o Dr. Don Shirley (Mahershala Ali), um pianista negro de renome que decide fazer uma turnê pelo sul dos Estados Unidos - região historicamente racista, devido ao seu passado escravocrata. Sabendo disso, o músico contrata Tony (Viggo Mortensen), um descendente de italiano do Bronx acostumado a resolver confusões de boates, para ser seu motorista particular, assim como uma espécie de "guarda-costas".

Primeiramente, é válido destacar a inversão de papeis que o roteiro traz instantaneamente. Como o longa se passa no auge da segregação estadunidense, ver um branco sendo motorista de um negro já quebra muitos padrões da época. E o filme não faz questão de enfatizar isso: muito pelo contrário. Ao tratar isso com naturalidade, o roteiro dá ao filme um tom de leveza que vai acompanhar o resto da metragem. Aliás, isso faz parte da composição diferenciada que o "script" traz para essa história. Embora apresente um tom leve (e muitas vezes cômico), o filme não se omite na exposição dos absurdos provenientes de tamanha segregação. Muitas vezes essa quebra de tom é tão abrupta que deixa o espectador em choque, o que é extremamente válido e retrata fielmente as incertezas e a insegurança de um indivíduo em um ambiente hostil a ele. Todavia, mesmo com essa constante variação de tom, o filme, principalmente através da montagem, consegue conceber um ritmo fluido e agradável. Assistir "Green Book" é uma experiência muito palatável, e as horas passadas dentro da sala de cinema não pesam em momento algum. Nesse sentido, o filme se assemelha muito com obras como "Histórias Cruzadas" e "Estrelas Além do Tempo", que apostam numa abordagem mais leve, mas não menos crítica, do que filmes como os de Spike Lee, por exemplo. Não é de se assustar que Octavia Spencer esteja na produção desse filme, tendo em vista a filmografia da atriz/produtora.

Mesmo assim, a fluidez rítmica e o tom agradável do filme de nada adiantariam se a dupla de protagonistas não funcionasse em conjunto. "Green Book" é um daqueles filmes extremamente dependentes da capacidade de composição de personagem de cada ator e, se a química entre os dois não funcionasse, o filme seria um fiasco. Felizmente, nesse sentido, a escolha dos atores foi bem feita, trazendo uma das melhores duplas do cinema de 2018. Viggo Mortensen, que acabou de fazer "Capitão Fantástico" e sempre será o "Aragorn" de "O Senhor dos Anéis", mostra uma versatilidade incrível ao interpretar um italiano passional e estourado, remetendo-nos a clássicos personagens de Coppola e Sorsese. A jornada pela qual Tony passa durante o filme é um dos pilares da crítica presente na obra, e o alicerce da abordagem diferenciada. Tony passa de um racista que não é capaz nem de usar o mesmo prato que um negro comeu para ser um grande amigo de um negro. A jornada de Tony é muito mais de redenção do que qualquer outra coisa e, apesar de parecer apelativa devido a algumas situações que parecem convenções de roteiro, funciona muito bem. "Green Book" parece querer transmitir a mensagem de que, antes de mudar o mundo inteiro, nós precisamos mudar as pessoas. E essas pessoas irão mudar o mundo. Mesmo que pareça piegas e forçada, o filme consegue carregar essa mensagem com tanto amor e envolvimento, que o público compra a ideia. Ao lado de Viggo, Mahershala Ali também provê uma atuação espetacular, e que requer mais curvas dramáticas do que a de seu companheiro. Sempre formal e elegante, seu personagem inspira um tom de superioridade inato e, a princípio, parece até conter um certo tom de arrogância. Contudo, Ali é eficiente ao desconstruir seu personagem ao longo da metragem, dando espaço às fragilidades internas de Don, ao mesmo tempo que exibe sua coragem em ser quem é. E existe uma cena em que Don explica para Tony como ele se sente sozinho no mundo que é simplesmente tocante e memorável. Mahershala Ali é uma grata surpresa recente e não seria absurdo pensarmos no segundo Oscar da carreira do ator.

Por fim, a direção de Peter Farrelly ("Debi & Lóide") é competente ao aliar os demais quesitos cinematográficos em uma película sincera. Seus movimentos de câmera não são inventivos, mas os enquadramentos são bem feitos e suas decisões contribuem para o desenrolar da história. Muitas vezes uma direção simples é muito mais eficiente para um ritmo fluido do que exageros egocêntricos de um diretor. Nesse sentido, Farrelly abre espaço para a história caminhar por si só, e consegue fazer uma eficiente direção de atores. "Green Book" é um filme que pode cair no esquecimento pela sua falta de impacto imediato, porém trata-se de algo muito agradável de se ver. O figurino, o design de produção e a ambientação dão ao longa uma espécie de charme vintage dos anos 60 que dialoga com o tom esperançoso que o filme inspira. Mesmo que fosse uma época dura, cheia de tragédias e injustiças, também foi uma época de família, de amores, de amizade e de transformação. "Green Book" aposta na abordagem do tema da segregação racial por meio de tom leve, obtendo êxito devido à perfeita química entre os personagens e ao competente trabalho de atuação de Ali e Mortensen.

Nota: 

- João Hippert

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