quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Crítica de "Homem-Aranha no Aranhaverso"

O cinema de super-herói, principalmente nos últimos 10 anos, tornou-se um mercado. E, como todo mercado, temos uma espécie de padronização de produtos, isto é, os filmes parecem seguir uma mesma "fórmula de sucesso", o que gera muito polêmica. Se por um lado temos uma certa garantia de qualidade, principalmente no quesito de produção, por outro temos a crescente falta de interesse do público de "ver mais do mesmo". É por isso que Marvel e DC estão nesse embate uma com a outra, buscando sempre películas que deem frescor ao gênero e as impeçam de cair nesse ponto prejudicial da padronização. E é nesse sentido que uma solução disruptiva no mercado cinematográfico tende a calhar muito bem e a instaurar uma possível nova ordem no que diz respeito aos super-heróis. Eis que temos "Homem-Aranha no Aranhaverso": um filme que chega sem muito alarde e conhecimento do grande público para transformar de vez a visão que temos sobre um filme baseado em quadrinhos. Primeiramente, é válido ressaltar que trata-se de uma animação da Sony, baseada no universo do Homem-Aranha. Porém, ao invés de acompanharmos Peter Parker, a história segue um garoto do Brooklyn, Miles Morales, que, após ser picado por uma aranha radioativa, também ganha poderes especiais. Devido a certos acontecimentos, uma fenda no espaço-tempo é gerada e "homens-aranhas" de diversas realidades paralelas chegam na realidade de Miles para o ajudar a derrotar o vilão do longa: Wilson Fisk, o Rei do Crime.

Sim, a premissa parece mirabolante demais. Sim, a escala parece extremamente grandiosa para estar no cinema. E sim, uma história dessas só poderia ser concebida em uma HQ. E é exatamente esse o grande acerto e a grande qualidade do filme: "Homem-Aranha no Aranhaverso" é, essencialmente, uma história em quadrinhos. Talvez seja a realização mais bem adaptada de uma mídia para outra que vi em tempos, afinal, o filme consegue ter uma identidade visual própria, mesmo que utilize de uma linguagem tipicamente de quadrinhos. Nesse quesito, os diretores Bob Persichetti, Peter Ramsey e Rodney Rothman acertam ao utilizar das onomatopeias, das viragens de página e, principalmente, da movimentação dos personagens com esse intuito. Esse último quesito, por exemplo, inspira no espectador uma certa estranheza inicial, pois o filme parece estar tentando uma técnica de "stop motion", mas que não se dá efetivamente. Com o tempo e a imersão promovida também pelo roteiro, o público não repara mais esse tipo de coisa, assim como acontece nos quadrinhos. Quando a história é boa, esquecemos que estamos lendo uma história dividida em pequenos quadros de um papel e embarcamos naquele universo. Além disso, a direção, juntamente com a equipe de animadores, é competente em compor um visual literalmente fantástico, repleto de cores vibrantes, expressões faciais detalhadas, e uma identidade visual muito própria. O filme estabelece algo tão único que o público, a partir de agora, seria capaz de identificar uma cena de algum filme que pertencesse a tal universo somente pela imagem, o que é muito bom, tendo em vista que o cinema é uma arte audiovisual.

No quesito de roteiro, o longa apresenta um desenvolvimento de personagens excelente, com o destaque para a jornada de herói de Miles, mas também para as motivações do Rei do Crime. No que tange o protagonista, Miles segue a clássica jornada do herói de autoconhecimento, de incerteza sobre os seus poderes, de fuga ao que ele está destinado a fazer e, finalmente, a aceitação. Porém, toda essa jornada também é pautada nos laços familiares do garoto, principalmente com seu pai protetor e com o tio que é uma espécie de inspiração. O roteiro, porém, foge de maniqueísmos e consegue tratar da relação de Miles com os dois, sem diminuir nenhum lado; muito pelo contrário. O filme nos mostra as diversas faces dessa relação familiar e, a partir da metade da metragem, passa a focar em uma mensagem deveras impactante. É muito bonito ver isso em um filme do Homem-Aranha devido ao que ele representa e, por isso, torna-se impossível não lembrar de Stan Lee. O gênio criador do herói, que nos deixou recentemente, sempre nos remete à frase clássica: "Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades". Por isso, é interessante notar como a descoberta de Miles enquanto herói também é sua descoberta enquanto filho e enquanto pessoa. E, para além disso, temos a questão étnico-cultural muito forte, haja vista que Miles mora no Brooklyn e tem uma realidade na sua vizinhança bem diferente da que frequenta em sua escola de Manhattan. Nesse sentido, o filme aborda a situação social de uma forma bem palatável, pois consegue alinhar essa discussão importante com o tom leve do enredo. Em tempos de tanta discriminação, filmes como esse são essenciais para valorizar as diferenças e dar visibilidade a uma população, até então, invisível. Basta pensarmos em quantos meninos dos Brooklyns do mundo vão querer se tornar o Miles Morales a partir de agora.

É por isso que "Homem-Aranha no Aranhaverso" se mostra tão completo. Mesmo que tenha um quê existencial ao lidar com questões sobre a família e crítico ao analisar as desigualdades sociais existentes em um grande centro urbano, o filme não deixa de divertir em nenhum segundo. Isso se deve ao tom lúdico provido pelo roteiro, que é muito auxiliado pelo carisma dos personagens e a interação entre eles. Além disso, as cenas de ação são bem executadas, limpas, visuais e deveras empolgantes. A trilha sonora também é muito bem escolhida e combina com o tom que o filme quer passar. Tudo parece muito assertivo e bem encaixado, o que deixa a metragem com um ritmo satisfatório. O vilão é bem escolhido e, mesmo que ele tenha relativamente pouco tempo de tela, o longa é capaz de trazer uma certa humanidade a ele. Além disso, um dos pontos altos do filme trabalha com um "e se?" recorrente entre os fãs do Aranha: "O que aconteceria com o Peter Parker depois de 20 anos combatendo o crime?". Sutilezas de roteiro como esta demonstram o cuidado que esse filme transparece. Mesmo que aposte no tom lúdico inerente das histórias em quadrinho, "Homem-Aranha no Aranhaverso" aborda questões existenciais sobre relações familiares e exibe, com técnica e visual arrebatadores, a necessidade da representatividade étnica, por meio de um protagonista totalmente carismático e de uma experiência imersiva.

Nota: 


- João Hippert



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