sábado, 11 de janeiro de 2020

Crítica de "Adoráveis Mulheres"

A magia da arte nos permite refletir sobre a universalidade de certas histórias. Por que será que determinadas obras artísticas permanecem no imaginário popular por tanto tempo através das gerações? O que faz um clássico efetivamente se tornar um clássico? Talvez a grande resposta esteja na aplicabilidade que tais histórias possuem na vida de cada um. É por isso que revisitá-las, desde que com um trabalho bem feito, pode ser um grande deleite: justamente por apresentar uma visão única acerca de uma história universal. Dito isso, chegamos em "Adoráveis Mulheres". Baseado no romance de Louisa May Alcott, o filme acompanha quatro irmãs vivendo o final de sua adolescência e início da fase adulta durante o período da Guerra Civil Estadunidense. O filme foca nas relações entre as irmãs, assim como seus sonhos, suas desavenças e seus amores. O fio condutor de todo enredo é a personagem Jo (Saoirse Ronan), que representa a própria autora de "Adoráveis Mulheres", o que permite reflexões metalinguísticas oportunas. A primeira delas é muito interessante e aplicável ao próprio filme. Ora, até o século XIX a literatura era basicamente composta pelos grandes clássicos, pelas grandes aventuras, pelos grandes mistérios. As obras que tratavam do cotidiano e da vida do homem comum eram bem raras. Tratando do mundo feminino, mais escassas ainda. Nesse ínterim, a discussão presente no filme à respeito do talento de Jo dialoga, justamente, com a necessidade de histórias que tratem do cotidiano. A literatura, assim como o cinema, não pode viver só de grandes clássicos. Assim, Jo não deve almejar se tornar a nova Shakespeare, mas sim encontrar a sua própria voz enquanto escritora e tratar dos assuntos que domina. Nesse caso, ela usa do próprio talento para escrever sobre a relação com as irmãs. É nítido como o filme exalta esse comportamento, como uma clara forma de homenagear a autora do romance tão aclamado. "As pessoas amam o que as outras pessoas fazem com paixão".

Aliás, amor é algo bem presente no filme. É muito interessante perceber que Greta Gerwig chega ao seu segundo trabalho como diretora em um filme tão diferente da sua estreia, mas ao mesmo tempo tão semelhante. Explico: apesar de "Lady Bird" ser um drama adolescente contemporâneo e "Adoráveis Mulheres" se configurar como um retrato de época, alguns temas são revividos. É justamente o olhar feminino da diretora acerca do amadurecimento de suas personagens. O que é interessante notar, no entanto, é o contraste das épocas que resulta em uma abordagem histórica deveras interessante. Aqui, percebemos os valores arraigados em uma sociedade do século XIX. Greta acerta ao inserir críticas sutis naqueles comportamentos, sem nunca condenar os personagens, tendo em vista que eles são fruto do seu tempo. A diretoria, no entanto, parece projetar seu comentário social na protagonista, o que se mostra bastante acertado. Repetindo, de certo modo, o papel feito em "Lady Bird", Saoirse Ronan realiza um trabalho ainda mais complexo. Ao mesmo tempo em que ela busca o seu sonho de ser escritora e tenta, de qualquer forma, se desvencilhar da obrigação de ter um marido, ela precisa lidar com os seus sentimentos de forma conflitante. Assim, a atriz consegue demonstrar a dubiedade de sua personagem de forma brilhante, o que deixa Jo ainda mais carismática ao público. Nesse sentido, a direção de Greta parece estar projetando um pouco da própria cineasta naquela personagem, de modo que a câmera parece sempre buscar suas reações, seus olhares, seus gestos. E, como já dito, a característica mais presente no filme é amor. O grande acerto de Greta é tratar todas as suas personagens de maneira extremamente carinhosa, mas sem esbarrar na idealização. Desde o início da metragem somos impelidos a nos sentir confortáveis com aquela família. A química entre as irmãs é excelente, assim como a grande presença de espírito da mãe (interpretada pela ótima Laura Dern). Tudo isso é facilitado por um ótimo design de produção que cria uma casa completamente aconchegante, definindo muito bem os espaços através das movimentações de câmera. Isso faz com que o espectador fique mais à vontade naquele ambiente fechado.

Além disso, a câmera de Greta parece ser uma verdadeira "quinta irmã". Ainda que o foco em Jo seja evidente, a diretora  parece se preocupar em acompanhar as conversas das irmãs de perto, mas sem interferir. Não existe nada mirabolante: o foco aqui é a interação entre as personagens. Aliada a isso está a estupenda trilha sonora. Presente durante todo o longa, a música é importante para ditar o ritmo da história. Além de potencializar os momentos emotivos, a trilha sonora marca muito bem as transições entre as cenas. Aliás, um dos grandes desafios do filme se estabeleceu a partir da escolha de Greta em dividir a história em duas linhas do tempo. Apesar disso, a escolha pareceu acertada por favorecer o desenvolvimento das personagens. Ao passo que acompanhamos as irmãs no início da adolescência e no início da vida adulta, somos apresentados às decisões feitas no passado que influenciam no presente. É interessante notar como o roteiro preza por desenvolver suas personagens de maneira gradual, mesmo que não linear. Desse modo, as jornadas se tornam mais completas e, até mesmo, surpreendentes. Todavia, esse êxito também se deve à excelente montagem, capaz de encaixar as cenas nos momentos certos. É interessante notar como em "Adoráveis Mulheres" a montagem e a fotografia parecem se unir para transmitir um único sentimento. Por exemplo: existe uma cena em que Jo desce da escada e recebe determinada reação da mãe. O ambiente é arejado, iluminado, os passos são sonoros. A casa parece ter vida. Subitamente, somos transportados para o mesmo lugar. Porém, agora a iluminação é parca e os passos quase inaudíveis. Greta Gerwig mostra, em uma cena como essas, a grande diretora que é. Afinal, muitas vezes, o simples fato de utilizar os elementos técnicos para contar a história já é muito valioso para a narrativa como um todo. Nesse caso, a transição mostra como os momentos são efêmeros e como um mesmo lugar pode ser palco de alegrias e tristezas. Falando um pouco sobre a outra parte do elenco, Emma Watson, Florence Pugh e Eliza Scanlen apresentam boas atuações. O destaque fica com Florence Pugh na interpretação de Amy, já que esta é a irmã mais conflituosa com a protagonista Jo. Mas, assim como todas as outras, ela também é retratada sob um olhar carinhoso, o que nos impede de desgostar da personagem. Ainda que elas sejam completamente diferentes uma da outra, é perceptível o amor que nutrem entre si.

Por fim, é válido ressaltar a discussão que "Adoráveis Mulheres" traz à respeito do casamento. A protagonista, representando seu espírito contestador, participa de um excelente diálogo que assemelha a instituição do casamento a um acordo comercial, principalmente naquela época. Como as mulheres eram limitadas ao que o marido ordenava, seus ganhos estavam intimamente ligados a isso. Não havia autonomia, porque os postos de trabalho feminino eram praticamente inexistentes. Assim, Jo contesta o próprio casamento por amor, nessa sua postura ultra-realista. E, no fim das contas, "Adoráveis Mulheres" é um filme que se mostra relevante pelo seu comentário social sutil, ainda que as bases de um filme de época ainda estejam presentes. Greta Gerwig acerta em dar um frescor à obra, ainda que respeite muito o material original. Sendo este apenas o seu segundo filme na direção, é empolgante presenciar a ascensão de uma cineasta que tem tanto para falar. E não seria exagero dizer que a parceria com Saoirse Ronan tem se mostrado eficiente. O único problema de "Adoráveis Mulheres" reside no seu último ato, que se mostra mais arrastado do que o necessário. É como se o carinho de Greta pela obra a tivesse traído e ela não soubesse terminar a obra. Acho que 10 minutos a menos tornariam o filme perfeito. Mesmo assim, "Adoráveis Mulheres" é uma doce obra, capaz de emular sentimentos fortes não só através de um roteiro bem escrito, mas também pelo uso perfeito da montagem e da fotografia.

Nota: 

- João Hippert

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