segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Crítica de "1917"

Filmes de guerra sempre permearam a história do cinema mundial. Tendo em vista que o cinema é uma arte tipicamente do século XX, este comportamento é totalmente justificável. As duas grandes guerras mundiais formaram toda uma concepção de sociedade, influenciando, de diversas maneiras, na composição dos costumes e modo de viver ao redor do globo. Assim, o cinema sempre busca retratar tal realidade a fim de que não esqueçamos isso. Curiosamente, no entanto, a Primeira Guerra Mundial não costuma ser tão retratada nas telonas. Por isso, a ideia por trás de 1917 é deveras interessante. O filme acompanha a missão de dois soldados britânicos na entrega de uma carta para um pelotão que está adiante deles. E é basicamente essa premissa. A ideia de um filme que retrate uma missão ordinária de maneira extraordinária me agrada muito, principalmente pela ideologia por trás disso. Um pensamento de que a guerra não só foi feita de grandes batalhas e líderes famosos, mas também por homens comuns e missões consideradas secundárias. Dar espaço para esse tipo de história é interessante não só do ponto de vista histórico, mas também na diversificação dentro do gênero. Não é à toa que "Dunkirk" é um dos meus filmes recentes de guerra favoritos: ele trata as batalhas de soldados comuns de maneira grandiosa, promovendo uma imersão gigantesca. Porém, talvez o ponto que desbalanceie "1917" seja exatamente esse: imersão. A primeira metade do filme se mostra um pouco arrastada e os diálogos deveras expositivo. Ainda que seja importante situar o espectador no tempo e no espaço, certos momentos soam artificiais e retiram um pouco a veracidade daqueles acontecimentos.

Além disso, o roteiro de Sam Mendes e Krysty Wilson-Cairns peca no desenvolvimento dos personagens, de modo a impedir que sentimos maior afeição por eles. Tratando-se de um longa que se resume, basicamente, a dois personagens em uma missão, é essencial que o público crie apego desde o início. Porém, isso é prejudicado não só pelos diálogos previsíveis, mas também pela falta de uma maior preocupação com uma introdução da vida antecessora dos soldados. Com isso, a imersão também é defasada à medida que o visual vai, gradativamente, se tornando mais relevante do que os arcos dos personagens. E, aqui, reside o grande ponto do filme. A proposta de Sam Mendes foi de contar essa história em um grande plano-sequência, isto é, filmar de modo a não transparecer nenhum tipo de corte aparente. A ideia é fantástica, justamente para relatar, de maneira fiel, o andamento de uma missão em um ambiente inóspito de combate. Contudo, o que "1917" dá a entender é a ideia da direção antes do roteiro. Explico: Sam Mendes parece ter concebido uma direção sem cortes antes de elaborar o roteiro em si. Desse modo, a direção chega até a atrapalhar determinados momentos da metragem, já que certas conveniências parecem acontecer a todo o tempo. E, como a direção dá uma noção de continuidade, tais cenas parecem forçadas demais. Além disso, o filme perde o potencial dramático que a história acarreta. Certas dores não são sentidas o suficiente, assim como a tensão não é total. Isso prejudica o contexto final da metragem por impedir uma visceralidade e verossimilhança maior.

Por outro lado, "1917" também tem seus grandes méritos. Não é um filme ruim, longe disso. É uma experiência visual incrível. O trabalho do diretor Sam Mendes em aliança ao diretor de fotografia Roger Deakins resulta em uma composição visual impressionante. Tudo aqui é épico: as trincheiras, as filas de soldados, as cidades em destruição. Nesse sentido, o filme brilha ao criar uma ambientação estupenda que nos transporta de maneira muito crível àquele momento histórico. "1917" é um filme que, devido aos seus méritos técnicos, deixará alguns momentos na memória do espectador. A aliança da fotografia, da edição e mixagem de som, além da direção, fazem com que determinadas cenas de ação sejam potencializadas e causem uma empolgação maior. Nesse ínterim, o filme melhora de maneira absurda em sua parte final: as cenas são grandiosas e o peso finalmente é sentido. Ainda que o inicio seja mais lento e sem alma, o final consegue salvar "1917" de ser um desastre. E a escolha de Sam Mendes pelo uso de planos-sequência merece ser enaltecida devido à dificuldade técnica para se fazer isso. O diretor já se mostrou excelente pelos trabalhos em "Beleza "Americana" e "007: Operação Skyfall". Entretanto, em "1917" ele parece ter atingido o seu ápice. Aqui, Mendes é capaz de passear sua câmera nos diferentes cenários sem cortes aparentes, mesmo nas cenas de ação. Isso demonstra uma direção muito segura e competente: é claramente o ponto alto do longa. Porém, ao mesmo tempo, isso joga um pouco contra o filme à medida que as escolhas visuais sobrepõem-se às escolhas narrativas. Isto é: me vi mais impelido a assistir alguma cena grandiosa envolvendo efeitos práticos perfeitos e fotografia incrível do que acompanhar a história em si. É uma questão de sobreposição clara da forma ao conteúdo, o que, a meu ver, não combina com o peso dramático que a história carrega e acaba por prejudicar o resultado final da metragem.

Desse modo, "1917" é um filme que vai dividir opiniões. Talvez o grande ponto do filme seja a sua capacidade de se envolver com a história. Nesse quesito, o roteiro me frustou. Não foi um filme que engrenou de cara. Isso acabou por influenciar negativamente nas atuações dos dois protagonistas: George MacKay e Dean-Charles Chapman. Não que os atores sejam ruins ou tenham interpretado mal: ambos fizeram bons papéis. Todavia, a falta de carisma de ambos também prejudicou no envolvimento com a missão de seus personagens. Nesse caso, a culpa não pode ser concedida somente a eles, mas também ao roteiro que, como já dito, falha ao não desenvolver, de maneira eficiente, as relações entre eles, assim como o peso de suas decisões. Mesmo assim, o filme brilha em seu ato final: entregando algo grandioso, enérgico e emocionante. Uma pena que a obra inteira não tenha seguido essa linha. "1917" é um filme primoroso tecnicamente, mas falha em questões de desenvolvimento de personagens e coincidências narrativas. Um típico caso em que a técnica sobrepuja (e muito) a narrativa, o que prejudica o envolvimento do espectador com a metragem, ainda que a proposta do diretor Sam Mendes mereça elogios.

Nota: 


- João Hippert


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