terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Crítica de "O Farol"

O gênero do horror, quando bem trabalhado, é capaz de despertar no espectador sentimentos que poucos conseguem. Clássicos como "O Iluminado", por exemplo, tratam de temas sérios á volta de uma história genuinamente aterrorizante. Dito isso, como grande fã de filmes que prezem por tal densidade narrativa em um ambiente de terror, "O Farol" se mostra um grande deleite, reforçando, mais uma vez, a qualidade das obras cinematográficas feitas em 2019. Dirigido por Robert Eggers - idealizador de "A Bruxa"- o filme acompanha dois homens responsáveis por um farol. E a premissa é basicamente essa. Não existem elementos adicionais: a história gira em torno da relação entre os personagens. Desse modo, "The Lighthouse" não é um filme comum, assim como não é palatável por qualquer um. O ritmo lento, a escolha pela fotografia em preto e branco, as constantes alucinações dos personagens: tudo isso afasta parte do público na apreciação da obra. Mesmo assim, tais elementos são vitais para a proposta de Eggers e funcionam muito bem na criação de um ambiente hostil, inóspito e enlouquecedor, fazendo com que o próprio farol se torne personagem central da trama. Nesse ínterim, as semelhanças com "O Iluminado" ficam ainda mais aparentes á medida que ambas obras realizam um estudo acerca da loucura humana mediante o confinamento em ambientes restritos. Assim como o Hotel Overlook foi motor para a transformação de Jack Torrance, o Farol parece influenciar, cada vez mais, a índole dos personagens, fazendo com que seja difícil diferenciar o que é real do que é imaginário.

Desse modo, o roteiro de Eggers brilha ao expor elementos clássicos de histórias de marinheiros para mostrar os efeitos da solidão em personalidades complexas. Ainda que não saibamos as reais motivações dos personagens, o roteiro é inteligente em prezar pela dúvida, em um jogo mental que se mostra deveras justo. Não sabemos, até o momento do clímax, de que lado a loucura está. Os elementos inseridos na estrutura física do farol auxiliam na manutenção dessa dubiedade. Aliás, o grande mérito do longa está na inserção de um ambiente completamente imersivo. A opção por um ritmo lento e vagaroso desde o início da película é importante para a criação desse contexto. Ainda que Thomas Howard (Robert Pattinson) seja o protagonista desde o princípio, as suas motivações são sempre uma dúvida para o público. Além disso, o roteiro se afasta da exposição gratuita: Eggers se preocupa muito mais em mostrar do que falar. Os diálogos presentes na metragem estão restritos aos momentos de jantar, quando conhecemos um pouco mais sobre os personagens. Vale ressaltar que tais momentos retratam a força do álcool, que parece uma verdadeira válvula de escape para os faroleiros. Além disso, é interessante notar a preocupação do script em sugerir diversos acontecimentos relacionados ao passado de ambos, o que deixa o julgamento moral do público muito mais confuso. As posturas são conflitantes, contrastantes, porém nunca óbvias. Tudo isso é maximizado devido ao primoroso trabalho de atuação da dupla. Tratando-se de um longa situado em um ambiente isolado, é ideal que as interpretações sejam críveis a ponto de segurarem a atenção o tempo todo. Resumindo: "O Farol" é um filme que depende excessivamente de seu elenco para que sua proposta seja bem sucedida. Nesse sentido, Robert Pattinson surpreende com uma atuação visceral, uma entrega absoluta. Personagens que passam por grandes transformações psicológicas tendem a exigir mais do ator, já que a jornada deve se afastar ao máximo da caricatura. Mesmo assim, o antigo protagonista da saga "Crepúsculo" desenvolve seu personagem com maestria, conseguindo transmitir a dubiedade necessária, assim como as diversas etapas de seu enlouquecimento. Por outro lado, William Dafoe se configura como o ápice da metragem, ao prover uma atuação segura e completamente envolvente. Ainda que o filme não aposte tanto nos diálogos entre os personagens, quando acontecem eles são extremamente marcantes, auxiliando em demasia o andamento da história.

Por sinal, a experiência de assistir "O Farol" se mostra bem incomum á medida que a direção de Eggers se preocupa muito mais na imersão do que no "storytelling". A câmera do diretor se mostra bem estática, focada nas expressões dos atores, assim como na representação dos ambientes fechados.    Além disso, Eggers conta com um trabalho de sonorização competente, que auxilia na construção dos momentos de tensão ao longo do filme. "O Farol" é um filme indigesto, difícil de ser assistido, justamente por exigir muito da parte sensorial do espectador. A narrativa dúbia em torno dos protagonistas em aliança com um trabalho de som metódico resultam em cenas surpreendentes, que ocasionam um verdadeiro "frio na espinha". Assim como havia feito em "A Bruxa", Eggers se afasta dos previsíveis "jump scare" para criar o terror através da atmosfera do filme. Outro fator que auxilia na construção do terror e na incerteza quanto ao que é real e o que é imaginado é a belíssima fotografia. A utilização do preto e branco aqui não é um mero capricho estético, mas também serve para situar o enredo em determinado tempo histórico (séc. XIX) e provocar o espectador. Comumente, os pesadelos são associados ao preto em branco: um momento em que não existe vida e a angústia do espectador pela volta da cor aumenta. Tratando-se de "O Farol", no entanto, o alivio de acordar e ver as cores de novo não chega. Assim, somos impelidos a nos sentir desconfortáveis o tempo todo e, á medida que a loucura aumenta, a fotografia auxilia na deturpação daquilo que é real. Tal tensão e confusão provocadas no espectador também são realçadas pela corriqueira presença de elementos incomuns, tais como sereias e pássaros. Aliás, toda a forma como Eggers filma as cenas com pássaros parece ser uma clara homenagem ao mestre do gênero - Alfred Hitchcock - emulando, com isso, filmes que também prezavam pela imersão.

Por fim, pode-se dizer que o filme busca analisar os impactos da solidão e do isolamento na saúde mental do indivíduo, potencializando as transformações dos personagens através do gênero do horror. É interessante notar que nenhum dos personagens termina o filme da mesma forma que começa: seus arcos são completamente influenciados pela presença do farol. E a luz do farol - um dos grandes mistérios do filme - parece simbolizar um momento de consciência, em que os personagens poderiam esquecer do ambiente opressor que os rodeia. Vivendo em um mundo preto e branco, a luz seria uma espécie de esperança, uma forma de não enlouquecer com a solidão arrebatadora. Mesmo assim, as formas para se obter a presença junto á luz parecem subverter seu próprio conceito, tendo em vista que a loucura potencializada parece levar a esse caminho. Por outro lado, a busca incessante pela luz pode se relacionar com o próprio espectador que, depois de imergido na história, apenas busca um respiro. E, no final das contas, o mérito de "O Farol" é claro: ainda que apresente metáforas interessantes, a experiência cinematográfica é grandiosa devido ao alto grau sensorial da narrativa, numa obra peculiar e absolutamente imersiva.


Nota:

-   João Hippert

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