domingo, 2 de fevereiro de 2020

Crítica de "Joias Brutas"

Realmente é impressionante como as coisas podem mudar de uma hora para a outra na indústria cinematográfica. Adam Sandler estrelando um filme sério e sendo o dono do filme? Ainda que o ator tenha desempenhado um bom papel em "Embriagado de Amor", com PTA, Sandler tem a sua marca registrada nas comédias, que, por sinal, detêm um grande apelo do público em geral. Não é a toa que estamos falando de um dos atores mais conhecidos do mundo e seus conteúdos são sempre muito acessados. Na Netflix, por exemplo, os filmes que contam com a participação de Sandler possuem um alcance gigantesco. E espero que isso se estenda a essa nova produção, recém-chegada ao catálogo do streaming. Esnobado em praticamente todas as premiações de peso de Hollywood, "Joias Brutas" (do título original "Uncut Gems"), acompanha Howard (Adam Sandler) - dono de uma joalheria que vê a iminência de diversas coisas: um leilão importante se aproximando, a pressão pelo pagamento de uma dívida, um casamento se desfazendo. Aliás, é muito difícil explicitar uma sinopse básica para esse filme. O roteiro dos irmãos Safdie em parceria com Ronald Bronstein foca muito mais na apresentação do cotidiano de Howard ao invés de suas características em si. Aqui, não há espaço para diálogos expositivos: desde o começo somos impelidos a acompanhar a jornada de um homem repleto de obrigações a serem cumpridas, mas com um tempo não tão suficiente e vícios que o atrapalham.

À medida que o roteiro desenvolve as situações e os conflitos conseguimos entender melhor o personagem. Desse modo, a história se desenvolve de maneira frenética desde o início, sendo as situações casuísticas responsáveis pelo desenvolvimento de um personagem quebrado. Howard não parece ter certeza de nada: do casamento, do leilão, da joia em questão. E, assim, o filme nos convida a uma jornada tensa na vida de uma pessoa repleta de incertezas e totalmente mal resolvida com suas escolhas. Isso nos traz angústia, tensão e ansiedade, pois, apesar de Howard não parecer a melhor pessoa do mundo, o apego do público é inevitável. E é aí que chegamos na parte de enaltecer a excelente atuação de Adam Sandler. É impressionante a habilidade com que o ator carrega o filme nas costas. Toda a preocupação e a urgência são muito perceptíveis nos olhares do ator, no seu jeito de caminhar, no modo de atender o telefone. O ator também consegue trazer certos símbolos visuais para a construção do personagem muito oportunos. A presença constante do óculos, o uso de jóias no corpo, a presença de um aparelho no dente. Todas essas incorporações dão ao personagem um traço bem único, mas nada forçado. Sandler está completamente entregue ao papel e, desde o início, o público simplesmente esquece a persona por trás do ator. Em nenhum momento ele dá espaço para caricaturas ou alívios cômicos: a opção é sempre pela atenção. É uma pena que essa grande atuação não tenha sido reconhecido pela Academia, pois é, de fato, muito impressionante.

Como já dito, "Joias Brutas" é um filme que trata do cotidiano de um personagem teoricamente comum, mas exaltando a tensão e a urgência nas suas decisões. Assim, deve-se reconhecer o excelente trabalho de montagem que o filme realiza. A duração do longa é precisa, as transições são bem efetuadas e combinam muito com o trabalho de direção. A câmera dos irmãos Safdie também é um ponto alto da metragem: assim como o roteiro não se preocupa em respirar para apresentar os personagens, a câmera também não o faz. Tudo aqui é dinâmico: a movimentação dos atores, a movimentação da câmera, os cortes oportunos. Muitas vezes estamos situados dentro de um lugar específico, tal como a loja de Howard, por exemplo, mas nunca parecemos parados. A câmera faz questão de passear pelo cenário, o que, aliado a uma montagem ágil, potencializa o sentimento de urgência tão oportuno ao longa. Além disso, nas cenas que acompanhamos Howard na rua, por exemplo, a câmera brilha ao se tornar quase um personagem tentando acompanhar o protagonista. É como se estivéssemos tentando acompanhar o ritmo de alguém que tenha muita pressa. Desse modo, vale mais uma vez ressaltar a grande presença de Adam Sandler em tais cenas, demonstrando um comprometimento também com a fisicalidade e com os movimentos do personagem. Ainda falando da parte técnica, "Joias Brutas" conta com um trabalho de fotografia bem decente, que é mais visto nas cenas em um show noturno. Ali o filme tem uma de suas poucas pausas: ele foca em parte do show do The Weeknd e a câmera acompanha as diferentes partes da boate. Assim, o contraste entre o preto, o branco e o neon estabelecem quadros belíssimos, que demonstram um belo trabalho de fotografia.

 Além disso, vale ressaltar a trilha sonora que acompanha a toada do filme, sendo bem encaixada nos momentos oportunos. Ademais, o elenco de apoio é bem eficiente: todos os coadjuvantes conseguem contracenar de maneira satisfatória com Adam Sandler. Talvez o destaque vá para a participação de Kevin Garnett, ex-jogador de basquete da NBA que interpreta ele mesmo no filme. Toda a trama em torno do atleta é deveras interessante e serve como pano de fundo para desenvolver um lado da personalidade do protagonista Howard. Aliás, o que torna o filme tão incomum é justamente sua proposta narrativa: não estamos acompanhando uma única história linear. Acompanhamos a vida de Howard que é composta por diversas tramas secundárias. Nesse ínterim, é válido notar como cada coisa influencia no comportamento de Howard e em sua evolução como personagem. Trata-se de uma escolha ousada por parte do roteiro, mas que parece acertada. O roteiro brilha na apresentação de um personagem quebrado, mas carismático. E todas as reviravoltas que o script promove são acertadas e bem pontuadas, o que auxilia na manutenção da atenção do espectador. Tratam-se de 2 horas e 15 minutos na frente de uma obra muito especial: ágil, complexa e instigante. "Joias Brutas" não parece se deter em um gênero específico, mas foca na tensão e na urgência para prover uma experiência arrebatadora, contando com uma incrível e absoluta atuação de Adam Sandler.

Nota: 

- João Hippert

Nenhum comentário:

Postar um comentário