sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Crítica de "Assunto de Família"

Uma das grandes maravilhas da sétima arte é a sua possibilidade de nos transportar para ambientes inimagináveis, e não precisa ser um filme de fantasia para atingir tal objetivo. Basta estarmos imersos em uma realidade diferente da nossa - seja no contexto social, histórico ou espacial - que já somos impelidos a exercer um dos sentimentos mais nobres do ser humano: a empatia. O cinema, como arte imersiva que se propõe, tem muita capacidade empática por, através da visão de um diretor, conseguir nos fazer enxergar realidades diferentes de maneiras distintas. É por isso que quando um filme totalmente original sobre um contexto diverso tem o poder de impactar tanto. Nesse sentido, "Assunto de Família" se ampara muito no impacto que produz, tanto sociologicamente quanto (por que não?) existencialmente. Vencedor da Palma de Ouro em Cannes e indicado ao Oscar de filme estrangeiro, o filme acompanha uma família de baixa renda no Japão, que vive de pequenos furtos e trabalhos temporários. Mesmo assim, não há espaço para tristeza - muito pelo contrário - somos apresentados a um ambiente que, apesar de contraditório, mostra-se bastante acolhedor, principalmente depois que a pequena Yuri se junta ao grupo. Porém, não se engane: o filme, em nenhum momento, busca romantizar a pobreza: as dificuldades são evidentes e os furtos, por exemplo, não são isentos de conflito moral. A qualidade do roteiro, contudo, é deixar tudo imersivo e verídico e, mesmo que possamos não concordar com as situações sob um ponto de vista frio, é impossível não se importar com os personagens sob um ponto de vista mais passional.

Aliás, o roteiro de Hirokazu Koreeda tem muito mérito na transmissão dos sentimentos ao público. Mesmo que os moradores da casa não apresentem grau de parentesco em sua maioria, as relações entre eles são construídas de uma forma bastante sutil. Repare que, embora existam 6 integrantes na casa (a avó, o casal adulto, a mulher adulta e as duas crianças), todos têm as suas características definidas, assim como a sua própria jornada. E é interessante notar como a mescla das diversas situações não complicam o filme, mas sim facilitam sua proposta. Por exemplo: por um lado somos apresentados a uma avó cuidadosa que recebe uma indenização pelo fato de morar sozinha, mas, na verdade, abriga 5 pessoas em sua casa. Nesse sentido, a senhora não segue a lei estritamente, mas ao mesmo tempo, tem seus últimos dias de vida ao lado de pessoas que, apesar de tudo, se importam com ela. Por outro lado, temos um casal aparentemente feliz, mas que, devido à correria do cotidiano, não se permite mais o prazer do sexo. Os dois parecem estar em uma busca por sintonia e um retorno à sensualidade, o que o roteiro desenvolve com certa destreza. Ainda assim, temos duas crianças com suas brincadeiras pelas ruas japonesas e uma jovem adulta que trabalha em uma espécie de bordel para obter uma renda maior. Embora o número de personagens pareça excessivo, assim como as suas histórias, o grande mérito do longa é juntar tudo isso de forma a transparecer o real retrato de uma família. Como o próprio nome em português já diz, "Assunto de Família" busca fazer um estudo meticuloso da reunião de pessoas queridas em uma casa, mesmo que não seja por laços sanguíneos. E a habilidade em definir o conceito de família como algo construído através de carinho e amor é gerada, também, pela apresentação de outros núcleos familiares, que, por sua vez, são tóxicos e prejudiciais ao desenvolvimento dos membros.

Nesse sentido, é impossível não interpretar tal história como um reflexo da modernidade líquida, afinal as relações parecem não ter fortaleça, mesmo sendo de sangue. A família a que somos apresentados, no entanto, apesar de seus meios ilícitos (aparentemente todos têm algo a esconder), parece sustentar uma base forte de relacionamento, o que torna tudo tão aconchegante. "Assunto de Família" é um filme doce, repleto de carinho e paixão, ao mesmo tempo que não se exime de realizar críticas sociais a respeito da diferença de classes. Outro grande ponto da metragem no que diz respeito ao conceito de família em si é a construção das diferentes relações possíveis em um ambiente familiar. Com a chegada da pequena Yuri, o espectador percebe a jornada da menininha se tornando irmã do menino Shota e filha de Osamu e Nobuyo, o que se desenvolve de maneira bastante calma, todavia verossímil. Nesse ínterim, a direção do também roteirista Koreeda é competente assertiva em criar tal ambientação agradável, desde o início da metragem. Como a principal proposta do filme é desenvolver a relação dos moradores daquela casa, as tomadas se desenvolvem de maneira muito fechada, e a movimentação se limita, basicamente, à própria casa. Mesmo assim, através de um movimento de câmera bem lento e, muitas vezes estático, Koreeda é capaz de criar esse senso de imersão, fazendo o público se sentir confortável em acompanhar a jornada diária daqueles personagens. Quando um filme consegue fazer com que nos importemos com seus personagens, não importando as consequências, o diretor merece muito mérito por conseguir arquitetar tal realização. E aqui, o que acontece é isso: em "Assunto de Família" nós achamos fofo, nós nos emocionamos, nós sentimos raiva - enfim, nós sentimos. É um filme de puro sentimento que desenvolve seu conceito principal de maneira cativante.

Ademais, é válido ressaltar a parte final do longa, quando o clímax é atingido. Koreeda toma uma decisão muito ousada, pois desconstrói tudo que foi apresentado durante o longa. Mas, ao invés disso invalidar o próprio discurso do filme, ele se engrandece, devido ao forte comentário social que acarreta. E, mais uma vez, o filme se afasta de uma possível romantização da pobreza para, no fim, defender, mais uma vez, a validade das relações familiares pautadas no carinho e na importância que se dá ao outro. "Assunto de Família" encanta mesmo pela versatilidade quanto aos temas, assim como em relação à profundidade como são abordados. Trata-se de uma película que diverte pelas situações cotidianas, emociona pelas chegadas e partidas e, simplesmente, retrata uma realidade completamente diferente da que estamos acostumados, de forma crítica e desconstruída. "Assunto de Família" é um poderoso estudo social que ganha força com o afeto transmitido, por meio de uma família que, mesmo sendo desfuncional, também mostra-se deveras amorosa e completamente aconchegante.

Nota: 


- João Hippert

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