sábado, 23 de fevereiro de 2019

Crítica de "A Favorita"

Existe determinado tipo de filme que, realmente, não se encaixa em um padrão palatável para todos. Às vezes, um roteiro escrito de uma forma não-convencional e uma direção mais autoral inspiram uma espécie de repulsa por parte do público, que considera o filme "diferentão" ou, talvez, pretensioso demais. "Trama Fantasma", por exemplo, que é o melhor filme da temporada de premiações de 2018, não foi completamente aceito, principalmente devido a suas inovações conceituais e seu jogo psicológico entre os personagens. Coube ao amável - porém pouco inspirado - "A Forma da Água" ser o grande vencedor do Oscar, o que demonstra uma certa aversão aquilo que é original pela indústria. Dito isso, chegamos na grande persona que caracteriza esse estilo de filme: Yorgos Lanthimos. O grego é responsável por obras cheias de criatividade, tais como "O Lagosta" e "O Sacrifício do Cervo Sagrado" - filmes nada óbvios que buscam desenvolver conceitos complexos por meio de um roteiro que tende ao absurdo. Nesse sentido, quando foi anunciada a produção de "A Favorita" houve um estranhamento inicial. Como um diretor desses seria capaz de realizar uma obra de época, baseada em personagens reais e que se passa, basicamente, dentro de uma Corte? O que Lanthimos demonstra, no entanto, é uma completa habilidade em transferir o seu estilo cinematográfico para qualquer tipo de história, o que corrobora a sua original voz artística. E é sempre bom quando artistas como ele são reconhecidos pelas premiações, pois isso estimula filmes que "pensam fora da caixinha" e contribui para a fuga do processo de padronização hollywoodiano. "A Favorita", portanto, conta a história da rainha inglesa Anne (Olivia Colman), em um período de guerra com a França. Ela é aconselhada pela Lady Sarah (Rachel Weisz), que parece ser quem, de fato, toma as decisões. As coisas começam a mudar quando uma serva, Abigail (Emma Stone), entra em cena e estimula uma série de conflitos.

O roteiro é, sem sombra de dúvidas, o ponto alto do filme. Isso porque o mérito de "A Favorita" está totalmente na abordagem diferente que se dá para o enredo, já que as passagens históricas são apenas plano de fundo para um profundo estudo de personagens. Os roteiristas Tony McNamara e Deborah Davis apostam no desenvolvimento conceitual acerca do poder nas relações, dentro de um próprio ambiente de poder. É como se todo o "storytelling" do filme se baseasse na relação entre o trio protagonista, e o eterno embate entre elas para ver quem tem o domínio de determinada situação. Dessa forma, é impossível não lembrarmos da dialética do senhor e do escravo de Hegel: o filósofo defendia uma tese de que todas as relações humanas são baseadas em um jogo de poder entre dominador e dominado, sendo tal jogo definidor dos alicerces da História. Assim, "A Favorita", por meio de uma construção de personagens incrível, traduz tal teoria a ponto de ser um filme que conta, basicamente, os conflitos entre as personagens. É interessante notar que, as três personagens, mesmo que ocupando classes sociais diferentes, assim como cargos de influência distintos, apresentam uma relação de poder bastante única. Por exemplo: a rainha Anne é claramente bastante subordinada aos desejos de Lady Sarah que, por sua vez, sente a chegada iminente de uma ameaça: Abigail. Mesmo assim, tais nuances narrativas nunca permanecem estáticas: somos apresentados sempre a situações que subvertem a posição de cada personagem em relação à outra, e esse é o grande mérito do roteiro em prender a atenção do espectador. "A Favorita" trata, basicamente, das intrigas nos bastidores do poder, em um contexto onde a amoralidade é celebrada. Além disso, é perceptível o revisionismo histórico a respeito da banalização das cortes, já que somos apresentados a jogos, festas, corridas de pato e ornamentos que tendem ao ridículo.

Entretanto, mesmo que o roteiro original seja a base para um bom funcionamento da narrativa, "A Favorita" também é um filme de elenco. Afinal, seriam necessárias três grandes atrizes para interpretar toda a complexidade de cada personagem. Felizmente, aqui temos um dos melhores elencos do ano, com um nível de destaque altíssimo. Olivia Colman, no papel principal, é a que mais impressiona, principalmente, nas cenas em que a personagem reage a determinadas situações. Colman é capaz de transmitir uma espécie de inocência aliada a uma pitada de paranoia, envolta em um passado de perdas e tragédias que expulsam a rainha Anne de qualquer traço convencional. Colman retrata uma rainha quebrada, com graves problemas de autoestima e emocional, mas que nunca deixa de ser menos imponente por causa disso. A rainha Anne só parece recuar diante de Lady Sarah, interpretada por Rachel Weisz. Esta apresenta-se como um contraponto à rainha, mostrando confiança e certeza de suas próprias ações. Weisz consegue construir um tom ameaçador a cada fala da personagem, assim como uma passionalidade em tudo relacionado à rainha e à Inglaterra. Trata-se de uma atuação extremadamente poderosa, e que impacta devido à intensidade demonstrada. Por fim, Emma Stone demonstra sua versatilidade ao interpretar a personagem mais dúbia da história. Se ao início da sessão somos impelidos a torcer por Abigail, seja pelo seu jeito doce, seja pelo seu passado; com o decorrer da metragem não temos mais tanta certeza assim. E a cena em que a personagem diz: "Eu estou do meu lado. Sempre." corrobora muito esse fato, já que Abigail mostra jogar de acordo com o jogo, sendo capaz de ser gentil, mas também de ser má, variando de acordo com a situação. Emma Stone apresenta um domínio muito grande nas transições emocionais às quais a personagem é submetida, e, devido ao seu forte carisma, nunca é capaz de afastar completamente a torcida do público por Abigail.

Toda essa complexidade narrativa e de relações é competentemente orquestrada pelo diretor Yorgos Lanthimos, que parece ter controle sobre tudo que temos em tela. Aqui, Lanthimos utiliza do artifício dos planos abertos que exaltam a ambientação do longa. Além disso auxiliar no trabalho fotográfico, que é lindíssimo, tal decisão serve para enaltecer o ambiente de poder em detrimento à pequenez do ser humano. É como se o mundo fosse grande demais para tamanha mesquinharia e, dessa forma, uma Corte gigantesca reflete justamente essa desigualdade de poder que o filme tanto aborda. Além disso, Lanthimos também faz uso de lente "fish-eye" para prover um senso de profundidade interessante, que auxilia na imersão do espectador na história. Aliás, tecnicamente o filme também merece elogios devido ao seu figurino, maquiagem e direção de arte fantásticos. O contraste entre as intrigas das personagens e o ambiente fabuloso contribuem para o tom cômico que o filme procura. "A Favorita", apesar de abordar temas filosoficamente complexos, também pode ser analisado como uma peça teatral cômica, que se utiliza das situações absurdas e do desdém dos personagens em relação a determinadas construções sociais para conferir humor ao longa. Em aliança a isso, temos uma trilha sonora bastante oportuna e atuante, que dá tom sarcástico às inúmeras situações absurdas apresentadas. "A Favorita", logo, não é um filme para qualquer um, por apostar em conceitos muito diferentes, uma direção inovadora e um roteiro baseado em conflitos entre as personagens. Mesmo assim, trata-se de um complexo estudo filosófico acerca dos bastidores do poder que merece ser visto. Contando com uma limpeza visual estonteante, "A Favorita" se baseia em um roteiro atilado que trata das diferentes facetas acerca da relação dominador-dominado, expresso pelo melhor elenco do ano, sob uma direção inovadora e segura.

Nota: 


- João Hippert

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