quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Crítica de "Vice"

Se tempos atrás, alguém anunciasse que Adam McKay, responsável por filmes como "O Âncora" e "Tudo por um Furo", seria reconhecido pela Academia do Oscar essa pessoa receberia uma bela desacreditada. Contudo, para a surpresa de todos, Adam McKay, no ano de 2015, realizou "A Grande Aposta": filme que funciona demais, em diversos aspectos diferentes. Mesmo tratando de uma história real - a grande crise imobiliária de 2008 -, o filme aposta em uma abordagem mais divertida e cômica para explicar conceitos complexos e situações absurdas. Impossível esquecer da icônica cena em que a Margot Robbie, na banheira, explica diretamente para o espectador os significados de determinados conceitos de economia. Eis que chegamos em 2018, e Adam McKay surge com um projeto que apresenta o mesmo tom proposto por "A Grande Aposta", mas agora sob um viés político. "Vice" acompanha a trajetória política do estadunidense Dick Cheney (Christian Bale), figura deveras controversa e que ganhou destaque quando tornou-se o Vice-Presidente de George W. Bush. Também  somos apresentados à relação de Dick com sua família, principalmente com a esposa Lynne (Amy Adams). Primeiramente, é válido ressaltar a grande semelhança que esse filme possui com o cinema apresentado em "A Grande Aposta", no sentido de que não é para qualquer um. Trata-se de um humor bem ácido, ágil e absurdo - algo que pode vir a incomodar aqueles que esperam um filme pragmático sobre um político pragmático. Definitivamente não é o que se encontra em "Vice".

O roteiro, de autoria de McKay, tem grandes méritos, principalmente no desenvolvimento do protagonista. Desde o início somos impelidos a gostar de Dick, mas não pela sua índole, o que demonstra um trabalho de articulação narrativa bem interessante do roteiro. Por exemplo: existe uma cena em que um personagem específico exalta a capacidade de convencimento de Dick: é como se tudo que ele fala tivesse uma espécie de áurea de coerência e razoabilidade. E é exatamente esse Dick que é apresentado aqui: um homem que, mesmo com ações extremamente deploráveis, principalmente no que se refere à guerra ao terror, também tinha suas convicções e problemas pessoais. Essa opção por não demonizar totalmente a figura do vice-presidente também serve para ajudar na construção do arco dramático do longa. Uma grande virada narrativa, introduzida pelo desenvolvimento de Dick e sua família, acontece justamente no conflito entre o fato do político ter uma filha homossexual ao mesmo tempo que precisa ser contrário à união homoafetiva devido à sua base eleitoral. Esse pequenos devaneios inseridos na história de Dick trazem uma complexidade muito bem-vinda ao personagem e, não se assuste, se McKay optar por uma pegada similar a de "House of Cards" no final. Não seria absurdo compararmos Dick Cheney com Frank Underwood. Por outro lado, Lynne Cheney também apresenta uma jornada bem palpável: mesmo que acompanhe o marido em sua vida política, Lynne parece sempre tomar as rédeas da situação, mostrando muito segurança em todo o filme. Isso também é facilitado pela excelente atuação de Amy Adams que consegue, com habilidade, trazer diversas facetas à personagem, e seu senso de superioridade convence à medida que o público sempre acha que Lynne tem tudo sob controle, o que também remete à Claire Underwood de "House of Cards".

Aliás, em termos de atuação, "Vice" contempla um cenário muito satisfatório. Além da já citada Amy Adams, o elenco coadjuvante conta com o hilário Steve Carell interpretando um político lunático, que representa o exagero da cobiça de determinada classe política e tal opção reverbera a crítica proposta pelo filme, já que não é muito difícil pensar que podem existir políticos exatamente desse jeito atuando ao redor do mundo. Sam Rocwell interpreta o polêmico ex-presidente dos EUA, George W. Bush, e consegue realizar um trabalho eficiente, ainda que não fuja muito da caricatura expressa pela figura pública de Bush. Mas, sem sombra de dúvidas, o grande destaque fica com Christian Bale, que entrega uma das melhores atuações do ano, demonstrando, mais uma vez, sua versatilidade. E ela não se limita à transformação física: Bale incorpora o sotaque de Cheney, suas pausas para falar, sua respiração pesada, seu olhar ameaçador e confiante. Toda a complexidade que o roteiro oferece é extremamente aproveitada por Bale nessa atuação excelente, que consegue, também, criar química com os demais personagens. Os diálogos são bem escritos à medida que acompanham bem o desenrolar da história. Além disso, a quebra da quarta parede - um recurso humorístico pilar dos filmes de McKay - contribui para a quebra de expectativa gerada no espectador, além de conseguir, de forma simplificada, explicar o complicado mundo da política ao leigo. Mesmo que isso acarrete uma exposição demasiada e dificulte um pouco o ritmo da metragem - principalmente no início do terço final -, é importante pelo didatismo que o filme impõe e a relevância de sua mensagem consegue ser mais acessível. Desse modo, "Vice" pode ser controverso, pois tenta explicar demais, ao mesmo tempo que isso pode ser uma qualidade devido à sua preocupação com a didática do longa.

Nesse sentido, porém, a direção de McKay é assertiva durante praticamente toda a obra, contando também com uma montagem bem executada e transições muito meticulosas. O movimento de câmera é bastante coerente: sempre condiz com o que está sendo apresentado em cena. Talvez o grande problema do filme seja a sua duração elevada, pois como existem muitas informações passadas ao espectador, o terço final é realmente cansativo. Uma direção mais acelerada nessa parte em aliança a uma montagem mais corretiva teria dado mais dinâmica ao longa e impediria o enfado final. Mesmo assim, "Vice" é um grande deleite, por, justamente, apresentar um filme histórico, mas que não precisa ser necessariamente um drama. Ao mesmo tempo que é capaz de relatar fatos importantes para o entendimento da geopolítica mundial atual, o filme diverte pela abordagem leve e pelas gags inseridas, que apresentam um timing cômico perfeito. McKay acerta, também, em trazer atores familiarizados com o drama e com a comédia, o que permite a ele transitar com qualidade entre os diferentes gêneros. Ademais, o filme fala sobre os bastidores do poder de uma forma bastante acessível, e as discussões que ele propõe são extremamente pertinentes por, justamente, nos fazer pensar sobre a nossa democracia e o nosso papel como eleitor. "Vice" é uma comédia muito eficiente sobre os bastidores do poder, contando com um elenco de destaque e um roteiro que apresenta um timing cômico ideal.

Nota: 

- João Hippert

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